Panorama EUA

USTR e China nos governos de Obama e Trump (2009-2020)

O então presidente Barack Obama se reúne com o presidente eleito Donald Trump no Salão Oval, na Casa Branca, em 10 nov. 2016 (Crédito: Pete Souza/WH)

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Por Rúbia Marcussi Pontes e Angela Sophia Jacomassi* [Panorama EUA]

Os Estados Unidos são reconhecidos pela implementação do desenho da república federativa moderna, baseando-se em uma Constituição federal que instituiu um conjunto de poderes separados, mas interligados. Esse modelo político visava a descentralizar o poder e a evitar abusos, de forma que o Poder Legislativo se tornou responsável por elaborar e aprovar leis, confirmar ou rejeitar indicações presidenciais de chefes de agências federais, juízes federais e da Suprema Corte, além de ter autoridade para declarar guerra. Ao Judiciário, coube, por sua vez, a interpretação e a aplicação das leis constitucionais, além de funcionar como árbitro final de disputas envolvendo o documento fundador da República.

Por fim, o Executivo se tornou responsável pela garantia de cumprimento das leis, por propor planos de ação e administração dos interesses públicos, com o presidente como chefe de Estado, comandante em chefe das Forças Armadas e representante máximo do país nas questões internacionais. Embora o presidente tenha papel proeminente, o Poder Executivo também é composto por um gabinete presidencial e seus membros, que servem como conselheiros do presidente, e por vários departamentos e agências especializadas que estão ligadas à Presidência. Vale mencionar que, no caso dos EUA, os membros desse gabinete são indicados pelo presidente e devem ser aprovados por maioria simples no Senado.

Casa Branca diz que não sabia de operação do FBI na mansão de TrumpFachada da Casa Branca, em 22 set. 2013, Washington, D.C. (Crédito: Gage Skidmore/Flickr)

Tal desenho de sistema político foi pensando ainda pelos Pais Fundadores, que, na escrita da Constituição, formaram um acordo que garantia que os poderes de política externa, os quais eram originalmente reservados ao Senado, fossem transferidos para o presidente, ou seja, passaram de domínio exclusivo do Legislativo para o Executivo. Tal circunstância propiciou que o Poder Executivo recebesse um potencial de governança integrada que, segundo Cox e Stokes (2018, p. 112, tradução nossa), “se tornaria estreitamente relacionado não apenas aos processos formativos do próprio governo federal, mas também às forças geradoras da política internacional e à construção da estrutura moderna de formulação de política externa”. Dessa maneira, podemos entender a criação do Executivo como grande precursor dos feitos de política externa, o que ilustra a importância de se olhar para atores desse poder, mesmo ciente da existência de outros.

Nesse sentido, em matéria de políticas comercial e econômica estadunidenses, ganha destaque o Escritório do Representante Comercial dos EUA (Office of the United States Trade Representative, USTR), devido ao papel decisivo que essa instância ganhou nas últimas décadas e, principalmente, por sua função na guerra comercial entre EUA e China.

O USTR é uma das principais agências especializadas ligadas ao Escritório da Presidência e é responsável pela publicação de alguns dos principais documentos executivos, como a Agenda de Política Comercial Presidencial (Presidential Trade Policy Agenda, PTPA) e o Relatório ao Congresso sobre a conformidade da China com a OMC (Report to Congress on China’s WTO Compliance, RCC).

Us Foreign Policy 3e | Amazon.com.brVale mencionar que a PTPA é publicada no início de cada ano, mostrando qual é a agenda comercial que o presidente pretende seguir no ano seguinte. Esse relatório tem como propósito evidenciar os principais projetos e objetivos da arena comercial do país, indicando seus movimentos, para que, assim, os públicos doméstico e externo tenham a possibilidade de considerar, disputar e/ou se adequar à agenda comercial dos EUA.

Já o RCC é um documento elaborado a pedido do Congresso e produzido pelo USTR desde 2002, com períodos de lançamento para o mês de dezembro de cada ano. O relatório tem como objetivo verificar se a China está cumprindo os compromissos firmados no acordo que definia sua entrada na OMC, em 2001. Toda a fiscalização do comportamento chinês frente a esses compromissos é detalhada no documento e, posteriormente, traduzida na ação dos EUA nessa instituição multilateral.

Assim, a política comercial e econômica dos EUA para a China pode ser depreendida, principalmente, a partir do trabalho do USTR e de seus documentos estratégicos. Nesse contexto, pergunta-se: quais foram as principais avaliações e ações do USTR nos governos Obama (2009-2016) e Trump (2017-2020) para com a China? Teria o USTR mudado sua linha de atuação em cada uma dessas administrações?

O Escritório do Representante Comercial dos EUA

A história dessa organização se inicia na década de 1960. Até então, o Departamento de Estado era responsável pela condução das questões referentes a comércio e investimento dos EUA. Mas a dinâmica comercial se tornava mais multifacetada no século XX, com a ascensão de arranjos multilaterais – como o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês) – e do avanço tecnológico que permitia um aumento considerável dos fluxos comerciais. Essa nova era resultou em uma organização governamental menos eficiente, na qual se tinha uma área imprecisa de poder compartilhado, com o Congresso sendo responsável pela regulamentação do comércio exterior, e o Poder Executivo – na figura do Departamento de Estado e do presidente – encarregado, essencialmente, dos tratados e acordos comerciais. Podemos observar, portanto, uma falta de alinhamento sobre definição e encargos entre os dois poderes, mas, sobretudo, a necessidade de um escopo específico e especializado para o trato das questões comerciais.

Diante disso, em 1962, legisladores se reuniram para promulgar a lei de Expansão Comercial (Trade Expansion Act) como um pedido do próprio Congresso para que o presidente nomeasse um representante especial para negociações comerciais. Essa autoridade seria responsável por conduzir as negociações comerciais dos EUA e liderar uma organização comercial criada para fazer recomendações ao presidente. Esse pedido também buscava garantir alinhamento e parceria entre os Poderes, de modo que todos os atores estivessem cientes dos objetivos comerciais estadunidenses e buscassem equilibrar interesses nacionais e internacionais concorrentes na formulação da política externa do país, especialmente na arena de política comercial.

Assim, em 1963, o então presidente Jonh F. Kennedy criou o Escritório do Representante Especial de Comércio (Office of the Special Trade Representative, STR) em seu gabinete Executivo, que, depois, seria reorganizado e renomeado oficialmente, em 1979, como Office of the United States Trade Representative. Desde sua criação, o Escritório tem a responsabilidade central de desenvolver e coordenar o comércio internacional dos EUA e suas políticas relacionadas, o que é reproduzido por meio da liderança e da experiência na negociação das principais áreas de atuação, como acordos de comércio e investimento nas esferas bilateral, regional e multilateral, expansão do acesso ao mercado para bens e serviços estadunidenses, acordos internacionais de commodities, questões relacionadas à proteção de propriedade intelectual e negociações que afetam as políticas de importação dos EUA. Ou seja, o USTR age como principal porta-voz do presidente no comércio internacional, representando todos os assuntos comerciais que impactam direta e indiretamente a vida do cidadão dos Estados Unidos.

O USTR e a China no governo Obama

Barack Obama tomou posse a Presidência em janeiro de 2009, com foco na renovação da liderança dos Estados Unidos. A China era vista como um importante parceiro para cooperação em assuntos como o combate às mudanças climáticas, mas a administração Obama – e o Congresso – sinalizavam preocupações com, por exemplo, o aumento do déficit dos EUA com a China e o programa de modernização militar chinês – impressões que foram transmitidas na Estratégia de Segurança Nacional (NSS) publicada em 2010.

前美國貿易代表柯克(Ron Kirk)(維基百科)(Arquivo) Embaixador e USTR Ron Kirk, em entrevista coletiva na 7ª Conferência Ministerial da OMC, em Genebra, em 3 dez. 2009 (Crédito: Missão dos EUA em Genebra)

As políticas econômica e comercial da China não foram, porém, duramente criticadas na NSS de 2010. Nessa mesma linha, as PTPAs de 2009 e 2010, sob a liderança de Ron Kirk, demonstraram um aspecto mais discreto da política comercial do país: com objetivos mais amplos e vagos, o texto expressa como foco principal o bem-estar das famílias estadunidenses e a geração de empregos, mais concentrada no fortalecimento de regras comerciais existentes e menos na negociação de novos negócios internacionais.

Isto fica particularmente claro na primeira publicação: a PTPA de 2009 declarou respeito pelo empreendedorismo e pela competição de mercado, alegando que, para que esses fatores prosperassem, era necessário um sistema de negociação baseado em regras que fosse fortalecido, pois um sistema de comércio transparente e comprometido seria benéfico não só para todos os estadunidenses, como também para seus parceiros.

As propostas de 2011 e 2012 mantiveram o foco na recuperação econômica doméstica, mas passaram a indicar uma agenda propositiva em torno de negociações de grande porte, como a Parceria Transpacífica (Trans-Pacific Partnership, TPP), que estava sendo negociada. Nesse período, o USTR ainda estava sob a chefia de Ron Kirk: o ex-prefeito de Dallas tinha a reputação de ser construtor de coalizões e aproveitou esse comportamento mais ativo da organização para estimular novas negociações no exterior[1].

Já no segundo mandato de Obama, o novo Representante Comercial dos EUA, Michael Froman, liderou uma política comercial mais ativa internacionalmente e mostrou ter inclinações semelhantes às de seu antecessor, voltadas para interesses comerciais multilaterais. Em discurso anunciando Froman como indicado para o USTR, Obama disse: “Ele tem sido um negociador-chave ao lado de Ron Kirk nesses acordos comerciais para a Coreia do Sul, Colômbia e Panamá, que sustentam dezenas de milhares de empregos americanos”, e continuou: “Ele também conquistou a reputação de ser um negociador extraordinariamente duro ao fazê-lo (…) Ele lutou para garantir que os países que violam as regras sejam responsabilizados”. Assim, Froman avançou nas negociações da parceria transatlântica TTIP e chegou à conclusão do TPP.

(Arquivo) Presidente Barack Obama anuncia as indicações de Penny Pritzker como secretária do Comércio e de Mike Froman como USTR, no Rose Garden da Casa Branca, em Washigton, D.C., em 2 de maio de 2013 (Crédito: Chuck Kennedy/WH)

Em relação ao RCC, pode-se afirmar que um dos instrumentos econômicos mais marcantes do governo Obama diz respeito aos registros rigorosos de fiscalização, avaliando se a China estava em conformidade com as diretrizes da OMC[2]. Vale observar que, diferentemente do que será visto nos relatórios da administração Trump, o RCC inicial da administração Obama mencionava a expansão da parceria comercial China-EUA que acontecera nos últimos anos, para, em seguida, criticar o uso da abordagem não mercantil liderada pelo Estado chinês. Segundo o documento, essa abordagem chinesa gerava atrito com os critérios da OMC e com os parceiros comerciais, além de prejudicar empresas e trabalhadores dos EUA – padrão de análise seguido nos demais relatórios.

Nesse sentido, o USTR, sob a administração Obama, buscou combater as políticas protecionistas da China, principalmente por meio da aplicação de tarifas em determinados produtos. Por fim, a administração Obama apresentou 20 queixas de fiscalização na OMC, sendo 11 ações contra a China, três contra a Índia e diversas outras contra países como Filipinas, Indonésia e Argentina, além da União Europeia.

Com tais elementos em mente, pode-se observar que, apesar de ter acontecido em outro contexto e tido implicações diferentes, os desgastes na política bilateral e, principalmente, na política comercial e econômica dos EUA para a China, já apresentavam raízes na administração Obama. Esta última foi, gradativamente, sendo mais incisiva em seus documentos estratégicos que mencionavam a China.

O USTR e a China no governo Trump

Sob o slogan Make America Great Again, Donald Trump foi eleito presidente dos EUA em novembro de 2016. Ele assumiu o cargo em janeiro de 2017, com um discurso de preservação da proeminência dos EUA e de implementação de uma política mais dura em relação à China, que vinha sendo acusada de comércio desleal para com os EUA, entre outras questões. Nesse sentido, a NSS de dezembro de 2017 enfatizou a percepção de um mundo competitivo e perigoso, com destaque para Rússia e China como concorrentes dos EUA e como Estados revisionistas, que “querem moldar um mundo antitético aos valores e interesses dos EUA”.

Tais percepções transparecem na Agenda Comercial publicada pelo USTR, sob a liderança de Robert Lighthizer[3] (foto abaixo), em março de 2017. A introdução do documento mencionava a insatisfação do eleitorado estadunidense com a política comercial do governo anterior, a qual não transparecia benefícios claros para os EUA, e que, como um requisito do presidente Trump para uma nova abordagem, o USTR iria cumprir tal objetivo. Deixava-se claro que esta não seria contra o livre-comércio e os mercados abertos, mas buscar-se-ia “expandir o comércio de uma forma mais livre e justa para todos os americanos”.

Logo em seguida, no entanto, a declaração do objetivo geral da administração Trump é pouco inovadora e mantém as linhas tradicionais que orientaram a política comercial dos EUA até então: defender a soberania nacional sobre a política comercial, aumentar o crescimento econômico, gerar empregos nos EUA, promover a reciprocidade com parceiros comerciais, fortalecer a base industrial e a capacidade de defender e expandir a indústria agrícola e de serviços de exportação. E isso deveria ser feito, especificamente, pela preferência de negociações bilaterais a multilaterais, bem como por meio da revisão de acordos bilaterais que não estejam promovendo os benefícios esperados pelo país. É na forma de implementar esses objetivos gerais – os quais são similares em sua totalidade – que podemos observar a divergência na política de Obama em relação a Trump.

O documento faz menção à Seção 301 da Lei de Comércio de 1974, que autorizava o USTR a tomar medidas para responder às ações estrangeiras que violassem um acordo de comércio internacional, ou que fossem injustificáveis e discriminatórias com o comerciante estadunidense, alegando que usar dessa medida pode encorajar os países estrangeiros a adotar políticas mais favoráveis ao mercado externo.

(Arquivo) USTR Robert Lighthizer, em Washington, D.C., em 15 jun. 2017 (Crédito: USDA/Lance Cheung/Flickr)

Ainda com relação às críticas semelhantes às do governo Obama, tem-se três tópicos principais: garantir que produtores nacionais tenham oportunidades justas de competir tanto no mercado doméstico quanto no exterior, impor subsídios que dão vantagens aos produtores estrangeiros sobre os concorrentes estadunidenses e proteger a propriedade intelectual. A China é, mais uma vez, um dos principais alvos de crítica no que diz respeito a esses temas. O relatório enfatiza os efeitos dos acordos comerciais como prejudiciais aos EUA, incluindo o NAFTA, mas se concentra, principalmente, na entrada da China na OMC em 2000. Afirma-se que, apesar de a estrutura globalizada gerar, sim, crescimento econômico e mais oportunidades, o sistema não é benéfico para todos. A administração argumenta que, a partir desse período, houve uma desaceleração do crescimento do PIB dos Estados Unidos, fraco crescimento de emprego e um aumento da perda líquida de empregos no setor de manufaturas do país.

A PTPA de 2018 recolocava o discurso passado, sem novidades significativas. O documento condenava a legitimidade da OMC, principalmente no que se refere ao seu Órgão de Solução de Controvérsias, pois “em vez de restringir países que distorcem o mercado, como a China, a OMC, em alguns casos, lhes deu uma vantagem injusta sobre os EUA e outras economias baseadas no mercado”. Como Rocha (2020) bem pontua, os EUA, em suas declarações, não parecem querer romper com a globalização, mas com a globalização desequilibrada, exageradamente benéfica à China. Não se quer voltar ao protecionismo total, mas estabelecer uma agenda mais favorável aos interesses estadunidenses para a globalização.

Em um tom mais agressivo em comparação aos documentos do governo Obama, o USTR sob Trump lançou seu primeiro RCC, em 2017, denunciando a abordagem não mercantil liderada pela China para a economia e o comércio, o que daria vantagem a suas empresas e seus trabalhadores locais, desfavorecendo severamente concorrentes estadunidenses. Em seguida, o documento traz, mais uma vez, a questão das denúncias de violação e de desrespeito às regras da OMC por parte da China.

É interessante notar que Obama – como já observado acima – e Trump trazem as mesmas críticas em relação ao comportamento da China no comércio internacional e no engajamento com as instituições. Fazem-no, contudo, de maneiras diferentes. Obama opta por fazer esse apelo ao mesmo tempo que tenta realçar a possibilidade da cooperação como solução, enquanto o relatório de Trump faz essas denúncias de uma forma muito mais direta, pragmática.

Nesse sentido, o documento de 2018 segue as mesmas linhas do ano anterior, sem mudanças significativas, em um padrão seguido nas outras RCCs. Nesse contexto do início da administração Trump e da relação do USTR com instâncias como a OMC e renegociação de acordos, vale destacar que, em sua primeira semana no cargo, Trump retirou os EUA do TPP, o qual estava em processo para ser ratificado. Em um memorando para o USTR sobre a saída da parceria, ele escreveu que “é intenção do meu governo lidar diretamente com países em uma base ‘um para um’ (ou bilateral) na negociação de futuros acordos comerciais”, alegando que estava fazendo isso com o objetivo de “promover a indústria americana, proteger os trabalhadores americanos e aumentar os salários americanos”.

Os 11 países signatários restantes continuaram as negociações com o objetivo de salvar o acordo sem os EUA e avançaram com uma nova versão conhecida como Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífico (Comprehensive and Progressive Agreement for Trans-Pacific Partnership, CPTPP), a qual mantinha a maior parte do original intacto. Stephen Walt (2019) observa que, logo após a saída estadunidense, Pequim percebeu o vácuo na organização como uma oportunidade de se posicionar na região e, em setembro de 2021, solicitou sua adesão ao acordo. Além disso, o autor menciona que a China imediatamente se ofereceu para organizar o comércio regional sob os indícios de uma Parceria Econômica Abrangente Regional (Regional Comprehensive Economic Partnership, RCEP) que excluía os EUA.

Em abril de 2017, o governo Trump iniciou duas investigações sob a Seção 232 da Lei de Expansão Comercial de 1962, questionando se as importações de aço e alumínio representavam uma ameaça à segurança nacional. Além disso, no ano de 2017, começa a renegociação do Acordo de Livre-Comércio da América do Norte (NAFTA, na sigla em inglês).

Em 2018, o USTR publicou um relatório sobre sua investigação da Seção 301. O documento registrava diversas práticas desleais que o governo chinês suspostamente implementou desde sua adesão à OMC para transferir a força tecnológica dos EUA para empresas chinesas. Essas práticas incluíam a obrigatoriedade de joint ventures, ou seja, novos acordos com empresas locais (incluindo empresas estatais), espionagem industrial patrocinada pelo Estado, ciberhacking, transferência forçada de tecnologia e a criação de condições de concorrência desiguais por meio de subsídios estatais a empresas chinesas.

Logo em seguida, em 3 de abril, a administração Trump anunciou formalmente tarifas de 25% sobre US$ 50 bilhões em importações da China. Quando o dia terminou em Washington, a China já tinha anunciado, em contrapartida, que retaliaria com tarifas de 25% sobre US$ 50 bilhões em exportações dos EUA. No curto período de dois dias, Trump intensificou as tensões e orientou o USTR a encontrar outros US$ 100 bilhões em importações da China para impor tarifas. Já considerando uma resposta chinesa, o então presidente exigiu que seu secretário da Agricultura, Sonny Perdue, apresentasse um plano que protegesse os interesses agrícolas dos EUA, antecipando as tarifas retaliatórias da China que atingiriam produtos como a soja.

Nesse contexto, Bown (2021) comenta que, nos dois anos que se seguiram, o governo estadunidense desembolsou dezenas de bilhões de dólares em subsídios aos agricultores que estavam sendo prejudicados pelas respostas das tarifas chinesa. Portanto, as tarifas iniciais de Trump desencadearam tarifas chinesas, que, juntas, geraram uma guerra comercial de grandes proporções.

O conflito prolongado atingiu seu ponto de virada em janeiro de 2020, com a implementação do acordo comercial chamado “Fase 1”, que incluía a suspensão de tarifas planejadas e a promessa chinesa de aumentar as importações dos EUA em US$ 200 bilhões acima dos níveis de 2017, assim como de fortalecer as regras de propriedade intelectual. Pelo lado dos EUA, o país cedeu em reduzir pela metade algumas das novas tarifas impostas à China.

Ao observar os resultados causados pela guerra comercial sino-americana, Bown (2022) afirma que o “acordo comercial histórico” – assim chamado por Trump – apresentava, como único aspecto histórico, seu fracasso. Alegando que sua assinatura foi “problemática, se não irrealista, desde o início”, devido a alguns fatores, o autor faz uma crítica à falta de políticas complementares necessárias para que o acordo tivesse sucesso, alegando que, nos dois anos que se passaram, havia um cenário extremamente incerto, no qual se tinha o crescimento recorrente de tarifas, e que nada se fez para minar essa insegurança, o que desencorajou o investimento empresarial necessário para reiniciar as exportações estadunidenses.

Outro ponto de destaque se refere às tarifas sobre insumos por parte de Trump, que permaneceram em vigor mesmo com o acordo, o que gerou um aumento dos custos no processo de produção das empresas estadunidenses. Além disso, ao não negociar a remoção das tarifas retaliatórias da China, o acordo pode ter criado espaço para uma substituição de exportações do setor privado dos EUA pela compra de empresas estatais chinesas. A pandemia da covid-19 deteriorou ainda mais qualquer chance de sucesso que o acordo pudesse ter. Nesse contexto, ainda segundo Bown (2022), “a China comprou apenas 58% das exportações dos EUA que se comprometeu a comprar sob o acordo, nem mesmo o suficiente para atingir seus níveis de importação de antes da guerra comercial. Em outras palavras, a China não comprou nenhum dos US$ 200 bilhões adicionais em exportações que o acordo de Trump havia prometido”.

USTR e o futuro da competição entre EUA e China

Tendo em mente os principais documentos e ações do USTR nas administrações Obama e Trump, podemos observar que existiram elementos de continuidade importantes em matéria de política comercial para a China, como evidencia a comparação entre relatório comercial de 2016 e o chamado “duro” relatório de 2017.

Comparação de relatório das políticas comerciais – Obama e Trump

Image for article titled Trump’s “tough on China” trade report is much the same as Obama’s in 2016

Fonte: Timmons, 2017.

É, contudo, na forma de implementação dos objetivos estratégicos finais que observamos mudanças. A administração Obama e a própria postura do presidente mostravam um comportamento mais diplomático e negociador para com a China, incluindo-a na governança global, ao mesmo tempo em que buscava constranger a ascensão econômica e comercial chinesa com iniciativas como o TPP. A administração Trump e o USTR mostraram ter o mesmo propósito final de conter o avanço chinês no Sistema Internacional, mas tratando a China como um Estado revisionista e como uma clara ameaça aos interesses dos EUA. Figura polêmica, Trump tratava os assuntos de política externa e comercial com a China de maneira conflituosa e até mesmo desrespeitosa.

Nesse sentido, como observado por Bojikian e Pontes (2021), “na chegada de Joe Biden e de seu pessoal à Casa Branca, não se notou o alívio ao persistente estado de hostilidade verificado durante os anos de Donald Trump nas relações sino-americanas”, com a alta cúpula da administração Biden sinalizando, ao longo de 2021 e de 2022, que seguiria constrangendo Pequim por “abusos”, tanto nos temas de direitos humanos quanto econômicos e comerciais.

Isso é particularmente visível na competição tecnológica que se acentua cada vez mais. Nesse contexto, a administração Biden, que busca revitalizar a economia e a indústria estadunidenses de forma geral, adotou medidas que limitaram a circulação de tecnologia que sai dos EUA com destino à China – e vice-versa – nos últimos anos. Um dos maiores exemplos nesse sentido foi a aprovação da CHIPs and Science Act, em agosto de 2022, com apoio bipartidário no Congresso, o que garantiu mais de US$ 280 bilhões de investimentos em pesquisa e desenvolvimento, com destaque para US$ 52 bilhões em subsídios para a fabricação de semicondutores, e US$ 24 bilhões, em isenções para novas indústrias de fabricação de chips nos Estados Unidos.

Essas orientações estão alinhadas com a NSS publicada em outubro de 2022 pela Casa Branca. Também é importante mencionar que a ação do USTR para a China continua atenta no governo Biden, agora com a liderança de Katherine Tai. Evidentemente, a PTPA de 2022 deu grande destaque para os efeitos devastadores da pandemia da covid-19, mas a China continua ocupando lugar de peso, revelando, mais uma vez, que a disputa entre EUA e China, principalmente nas arenas econômica e tecnológica, continuará a se aprofundar.

 

* Rúbia Marcussi Pontes é professora nas Faculdades de Campinas (FACAMP), doutoranda em Ciência Política na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com bolsa CAPES, e pesquisadora do INCT-INEU. E-mail: rubiamarcussi@gmail.com. Angela Sophia Jacomassi é graduada em Relações Internacionais pelas Faculdades de Campinas (FACAMP). E-mail: angelajacomassi@gmail.com.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 6 fev. 2023. Este Panorama EUA não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora Tatiana Teixeira, no e-mail: tatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas Newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mail: tcarlotti@gmail.com.

 

Rúbia Marcussi Pontes é professora nas Faculdades de Campinas (FACAMP), doutoranda em Ciência Política na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com bolsa CAPES, e pesquisadora do INCT-INEU. E-mail: rubiamarcussi@gmail.com. Angela Sophia Jacomassi é graduada em Relações Internacionais pelas Faculdades de Campinas (FACAMP). E-mail: angelajacomassi@gmail.com.

Notas

[1] Ron Kirk liderou negociações para concluir acordos bilaterais de livre-comércio com Colômbia e Panamá, trabalhou na Parceria Transatlântica do Comércio e Investimento (Transatlantic Trade and Investment Partnership, TTIP), alegando que o comércio com a União Europeia era essencial para a recuperação dos EUA. Dentro do seu legado de “pró-negócio”, vale mencionar também que, ainda em 2010, Kirk concluiu um acordo de livre-comércio com a Coreia do Sul que eliminou a maioria das tarifas de exportação e solidificou importante aliança com o país.

Death by China: Confronting the Dragon - A Global Call to Action: Navarro, Peter, Autry, Greg: 9780134319032: Amazon.com: Books[2] O RCC, como mencionado anteriormente, é elaborado pelo USTR, de acordo com a Seção 421 da Lei de Relações EUA-China, e tem o dever de relatar anualmente ao Congresso o cumprimento dos compromissos assumidos pela China quando da entrada na OMC em 2001. Ou seja, esse documento anual avalia a adesão chinesa aos critérios e às regras da OMC. O documento identifica, ainda, as áreas de progresso e ressalta as áreas de preocupação e que precisam ser revisadas para a implementação de compromissos ao longo do tempo.

[3] Lighthizer era conhecido por ser um duro crítico da entrada da China na OMC; e Peter Navarro, que assumiu como diretor do Conselho Nacional de Comércio e influenciou a política comercial dos EUA sob Trump, era autor do livro Death by China (2011), que associava as dificuldades econômicas dos EUA ao comércio com a China.

 

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 6 fev. 2023. Este Panorama EUA não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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