Panorama EUA

O textualismo a favor dos direitos LGBTs nos Estados Unidos de Trump

Manifestantes protestam em defesa dos direitos civis e contra discriminação no trabalho das pessoas trans e gays, diante da Suprema Corte dos EUA, em Washington, D.C., em out. 2019 (Crédito da imagem: Anna Moneymaker / NYT / Redux)

Panorama EUA_OPEU_O textualismo a favor dos direitos LGBTs v10 n3 Julho 2020

Por Celly Cook Inatomi*

Introdução

Como decidem os juízes e quais são os impactos políticos de suas decisões? Essas duas perguntas, sempre presentes no debate político, jurídico e acadêmico norte-americano, ganharam ainda mais proeminência no dia 15 de junho deste ano. Em uma decisão histórica, a Suprema Corte dos Estados Unidos estabeleceu que é ilegal demitir um indivíduo por ele ser homossexual, ou transgênero. A decisão chocou o atual governo e seus apoiadores, dado que ela foi redigida por Neil Gorsuch, um dos juízes conservadores nomeados por Donald Trump. Os juízes com votos dissidentes na decisão (Samuel Alito, Clarence Thomas e Brett Kavanaugh), bem como organizações conservadoras que trabalharam duramente para a nomeação de Gorsuch, não apenas questionaram sua forma de decidir, como também previram consequências políticas e sociais “desastrosas” e “perigosas” no futuro.

Não é de hoje, contudo, que juízes da Suprema Corte contrariam aqueles que os nomearam. E, por não ser novidade, o espanto do governo e de seus apoiadores parece desconhecer a história e as importantes pesquisas já realizadas, que há tempos mostram que os juízes decidem em função de diferentes fatores que não apenas a correspondência político-ideológica com o presidente que os nomeou.

Na verdade, o primeiro estudo é relativamente antigo, de 1948, quando C. Herman Pritchett criou escola ao analisar decisões de juízes nomeados por Franklin Delano Roosevelt que foram contrárias às linhas políticas do New Deal. E, mais atualmente, importantes estudos empíricos têm demonstrado que é preciso analisar os fatores institucionais e corporativos que fazem os juízes se comportarem de uma maneira completamente diferente do que se comportavam antes da nomeação. Além disso, autores mais voltados para a análise da atuação judicial conservadora vêm sugerindo que as interpretações constitucionais tão defendidas por juízes conservadores, como o originalismo e o textualismo, embora tenham bastante espaço nos meios acadêmicos, podem não ter espaço real e efetivo nas decisões jurídicas, como também podem ser mobilizadas estrategicamente por setores progressistas.

Tendo em vista a singularidade do atual governo americano, é compreensível o choque (assim como a surpresa positiva por parte da oposição) com qualquer tipo de “descarrilhamento” entre o presidente da República e seus juízes. A nomeação de juízes ultraconservadores por Donald Trump – que tinha entre seus requisitos de escolha a necessidade de um posicionamento explícito contras os direitos LGBTs – foi uma promessa de campanha para os setores da direita religiosa americana, além de ser uma etapa primordial no processo de implementação do seu “novo” movimento de direitos civis.

Manifestantes protestam, diante da Casa Branca, em 1965, contra a discriminação na contratação de homens e mulheres gays no funcionalismo público federal (Crédito: Kay Tobin ©Manuscripts and Archives Division, The New York Public Library)

Estava bastante claro que a função desses juízes seria a de auxiliar o governo federal a dar um fim a toda e qualquer política do governo Barack Obama, além de recuperar interpretações bastante retrógradas da Constituição e das leis para resgatar o que eles chamam de “verdadeira liberdade”. Já é inquestionável, inclusive, que o Judiciário conservador será um dos maiores, se não o maior, legado de Trump, dada a quantidade de juízes já empossados e o caráter ultraconservador de sua maioria. Em outras palavras, o espanto é compreensível, dado que os juízes estavam e ainda estão investidos de forte papel político-ideológico para desmontar políticas e interpretações judiciais progressistas.

Ainda que compreensível, contudo, podemos nos perguntar se, de fato, a decisão de 15 de junho pode ser considerada um completo choque para o governo e uma vitória definitiva para os movimentos LGBTs. Neil Gorsuch realmente contrariou a linha política e ideológica do governo em sua decisão, favorecendo e utilizando interpretações progressistas das leis? O originalismo, ou textualismo, não tiveram força alguma em sua decisão? E essas interpretações não foram usadas pelos setores LGBTs em suas estratégias de mobilização judicial? E qual seria o impacto da utilização de interpretações geralmente conservadoras por setores progressistas?

As respostas a essas questões não são tão simples, nem monocromáticas. Para respondê-las minimamente, é preciso considerar o caráter da argumentação jurídica da decisão de Gorsuch em si, assim como alguns fatores políticos relevantes acerca das estratégias históricas de atuação do movimento LGBT nos Estados Unidos e as políticas internas anti-LGBTs do governo Trump.

A argumentação de Neil Gorsuch

Três pessoas, que foram demitidas de seus trabalhos depois de assumirem publicamente sua homossexualidade, ou transgenia, processaram seus ex-patrões alegando discriminação por causa do sexo, sob o Título VII da Lei de Direitos Civis de 1964, que proíbe a discriminação no trabalho em função da raça, cor, religião, sexo, ou origem nacional. Depois de duas decisões de cortes de circuito favoráveis e uma contrária aos funcionários demitidos (tomadas respectivamente pelos , e 11º Circuitos), o caso seguiu para a Suprema Corte, que acatou a argumentação dos peticionários, estabelecendo que é incontestável a aplicação do Título VII aos casos, e que é, portanto, ilegal um empregador demitir funcionários em função da orientação sexual, ou da identidade de gênero.

A decisão recebeu resposta dissidente e bastante agressiva por parte de Samuel Alito e de Brett Kavanaugh (acompanhados por Clarence Thomas), que disseram que a Corte estava emendando a lei, em vez de simplesmente aplicar seu texto. A alegação é que o Título VII apenas proibiria a discriminação com base no sexo, e não com base na orientação sexual, ou identidade de gênero. Argumentaram que não era intenção dos legisladores incorporar homossexuais e transgêneros às suas proteções, alegando que isso era impensável para a própria população, ou opinião pública, da época, totalmente hostil à homossexualidade e que mal sabia o que era a transgenia.

Samuel Alito chega, inclusive, a comentar uma listagem de leis federais e de regulamentações que puniam e/ou tratavam como doença o que estava fora do comportamento heterossexual. Apontou que, por mais injustas que as leis da época fossem ao excluir grupos da sua proteção, os juízes não poderiam legislar em nome do Congresso como se fosse um órgão majoritário, passando por cima da vontade da população. Para ele, as leis são espelhos da cultura e da aceitação pública de um povo, não cabendo à Suprema Corte passar por cima dessa maioria. Diz ainda que, embora os tempos tenham mudado, e muitas dessas leis tenham caído, ainda não existe uma lei federal que proteja expressamente homossexuais e transgêneros da discriminação no ambiente de trabalho. E, por mais injusto que isso possa ser, não cabe aos juízes, mais uma vez, desempenhar o papel de representantes do povo.

Ele termina, alertando que a Corte estaria sendo irresponsável por não medir os impactos de sua decisão. Mais tarde, acrescenta, a Casa se veria em maus lençóis ao tentar defender liberdades essenciais aos americanos (como a liberdade religiosa e o direito de consciência), quando estas forem confrontadas com o precedente jurídico equivocado e abusivo que estava sendo aberto naquele momento. Alito diz que Gorsuch apenas afirmou diversas vezes que estava fazendo uma interpretação textualista da lei, mas apontou que apenas repetir diversas vezes uma mentira não a torna uma verdade.

Quando analisamos a decisão dada por Neil Gorsuch, no entanto, é possível perceber que Alito fala meias-verdades. Embora seja possível ver Gorsuch, de fato, afirmando diversas vezes sua defesa da interpretação textualista, ele não fica apenas na simples afirmação. E também não é possível ver em sua decisão qualquer tentativa de interpretar a lei ao modo progressista, falando em “lei viva”, ou em atualização necessária das leis de acordo com os novos tempos. Pelo contrário, o que vemos, por todo seu voto, é Gorsuch fazendo uma aplicação do textualismo para rebater, ponto a ponto, a argumentação dos empregadores e dos juízes dissidentes.

Onde está então o verdadeiro ponto de discordância entre os juízes conservadores da Suprema Corte? Ao realizar uma análise estritamente textual do Título VII, discutindo seus termos e trabalhando com precedentes da própria Suprema Corte, Neil Gorsuch realizou uma inversão bastante interessante e inteligente nas críticas feitas por Samuel Alito e Brett Kavanaugh, voltando para eles as acusações de querer emendar o texto da lei, pelo simples receio de consequências futuras que não estavam sendo discutidas naquele momento da decisão.

Gorsuch entende que o Título VII é uma lei de caráter amplo, o que significa que ela não estabelece exceções, não faz diferenciações, ou especificações, nem coloca graus de importância sobre quem deve ter sua proteção, nem sobre os temas específicos relacionados ao sexo. Todos os indivíduos teriam proteção contra a discriminação baseada em fatores relacionados ao sexo. Para isso, cita precedentes importantes da Suprema Corte em que o Título VII foi justamente aplicado de forma ampla, protegendo não apenas mulheres (como requeria a época em que a lei foi aprovada), mas também homens (Oncale v. Sundowner Offshore Services, Inc., de 1998). E comenta também precedentes em que a Corte lidou com estereótipos relacionados ao sexo e que levaram à discriminação de mulheres em seus ambientes de trabalho (Phillips v. Martin Marieta Corp, de 1971, e City of Los Angeles Dept. of Water and Power v. Manhart, de 1978).

A partir desses precedentes e da interpretação textualista da lei, Gorsuch conclui: se a Corte já julgou que o Título VII tem eficácia ampla, cabendo sua proteção também a homens e a outras situações discriminatórias baseadas nos estereótipos relacionados ao sexo, é mais do que claro que os empregadores dos casos em questão deviam ser enquadrados pelo Título VII, ao passo que demitiram indivíduos com traços e comportamentos que aceitariam tranquilamente em pessoas do sexo oposto. Ou seja, eles não demitiriam aqueles indivíduos, caso fossem mulheres que gostassem de homens, nem homens que se comportassem e se vestissem como se espera dentro dos estereótipos socialmente criados para eles.

Assim sendo, dizer que homossexuais e transgêneros não teriam proteção sob o Título VII é que seria exercer o papel de legislador, pois a Corte estaria procedendo sem o guia daquela lei, emendando e criando exceções a uma lei que é ampla, para fazer o que os juízes pensam ser melhor para o futuro da boa convivência da população norte-americana. Não importa para a Corte, argumenta Gorsuch, se leis federais não conseguiram ser feitas para incluir expressamente homossexuais e transgêneros ao Título VII, pois este já é amplo o suficiente para garantir sua inclusão, não precisando juiz algum mover uma palha para realizá-la, mas apenas aplicar o texto da lei.

A questão é que essa interpretação textualista ampla do Título VII casa com a estratégia interpretativa que organizações de direitos LGBTs vêm fazendo há décadas em cortes menores e em cortes federais de circuito. E tal interpretação vai na contramão dos interesses de religiosos conservadores que se veem ameaçados em seu “direito” de poder discriminar homossexuais e transgêneros em nome da liberdade religiosa e do direito de consciência. Vê-se, assim que a fúria de juízes conservadores e de outros apoiadores de Trump não se dá em função de Gorsuch não ter usado o textualismo, ou em função de as leis não estarem sendo entendidas ao pé da letra, mas justamente porque Gorsuch atestou (justamente por meio de sua decisão textualista e que entende as leis ao pé da letra) o que a advocacia LGBT já havia percebido faz tempo: a brecha existente na própria interpretação textualista conservadora para usá-la ao seu favor.

O que vemos é que o textualismo, assim como o originalismo e qualquer outra forma de interpretação constitucional e interpretação das leis, não estabelece verdades incontestáveis, que podem ser mobilizadas apenas por um grupo de pessoas para a defesa de apenas alguns ideais de sociedade. Elas são fluidas e porosas a mobilizações diversas. Os juízes conservadores que posam como donos da verdadeira origem das leis e do verdadeiro sentido de suas palavras monopolizam descaradamente tanto as leis quanto a história. Quando pegos em suas fraquezas, estes juízes reagem furiosamente, dizendo que as leis não foram respeitadas, quando elas simplesmente foram mobilizadas com outros objetivos opostos aos seus.

 

SCOTUS

Juízes da Suprema Corte (Neil Gorsuch é o penúltimo, da esq. para dir.) – Crédito da imagem: Progress Texas

 

Teremos que esperar, no entanto, para verificar como a Suprema Corte e o próprio Gorsuch irão decidir em casos em que essa proteção para homossexuais e transgêneros no trabalho venha a se confrontar com a liberdade religiosa e o direito de consciência de empregadores. Embora não seja referente ao ambiente de trabalho, é importante lembrar um caso decidido recentemente pela Suprema Corte, em que ela optou por proteger o direito de consciência e a liberdade religiosa acima dos direitos civis básicos de pessoas homossexuais (Masterpiece Cakeshop v. Colorado Civil Rights Commission, de 2018).

E também é importante destacar que o próprio Gorsuch ponderou que, caso a Corte venha a se deparar com ações envolvendo o Título VII e a liberdade religiosa no futuro, novos investimentos de raciocínio e interpretação deverão ser feitos, pois a liberdade religiosa é uma das liberdades mais caras aos cidadãos americanos. Setores da direita religiosa, inclusive, já se manifestaram esperando que a “promessa” de Gorsuch seja cumprida, caso a questão religiosa seja colocada em xeque, garantindo aos setores conservadores o “direito de discriminar”, ou o que eles chamam polidamente de “direito de consciência” e de “liberdade religiosa”.

Além disso, também é importante dizer que os juízes dissidentes não perceberam a importância de alguns argumentos de Gorsuch ao tratar homossexuais e transgêneros como indivíduos e não como um grupo minoritário especial que mereça mais proteções para se garantir o mínimo de equidade. Como algumas críticas progressistas já alertaram, em nenhum momento, Gorsuch defendeu esse tipo de argumento. Embora ele tenha respondido a uma reivindicação histórica do movimento LGBT, ele “apenas” garantiu a inclusão de indivíduos homossexuais e transgêneros a direitos individuais já disponíveis para todos os demais.

Ou seja, a Corte não se portou no argumento como uma instituição contramajoritária, no sentido de proteger “grupos minoritários” (que é um movimento feito pelo Judiciário no Pós-Segunda Guerra que o setor conservador geralmente não aprova). Ela atuou, sim, como uma corte que protege unicamente “indivíduos” sob uma interpretação textual das leis. Esse fato é importante, porque esse entendimento estritamente liberal pode ser usado para derrubar políticas especiais de proteção da comunidade LGBT, como as que foram desenvolvidas durante o governo Obama. Tais políticas podem ser julgadas pelos juízes conservadores como inconstitucionais por “romperem” com a ideia de igualdade dos indivíduos perante a lei.

Estratégias de mobilização LGBT e impactos políticos da decisão de Gorsuch

Preocupados com os impactos negativos da mobilização judicial de grupos minoritários sobre sua própria capacidade política, estudiosos sócio-jurídicos mainstream (a exemplo de Andrew Flores e Scott Barclay) vêm apontando as limitações das vitórias alcançadas nas cortes. Nessa visão, o tipo de vitória obtida pelos advogados LGBTs no caso aqui discutido deveria ser mais um motivo de preocupação do que propriamente de comemoração. Tais estudos, na esteira de Gerald Rosenberg, sustentam que as cortes são instituições fracas para realizarem mudanças sociais efetivas.

Segundo eles, os efeitos políticos, jurídicos e sociais de decisões judiciais, aparentemente e momentaneamente favoráveis aos grupos minoritários, seriam nefastos, produzindo um forte backlash por parte dos opositores, que, por sua vez, acirrariam ainda mais as leis e políticas discriminatórias, e também incitariam ainda mais a população – por meio de práticas diretas e semidiretas de participação política – a se colocarem contra as medidas judiciais. Todo esse movimento poderia gerar instabilidade, desordem social e até mesmo reações violentas por partes dos opositores dos direitos LGBTs.

Há também um grupo de estudiosos da teoria crítica e das críticas de gênero radicais do movimento LGBT (a exemplo de Dean Spade) que aponta que a utilização da mobilização judicial pelo movimento, além de ser uma alternativa cara e restrita aos interesses de membros de elite da comunidade, acabaria por não destinar os recursos necessários para aqueles que sofrem com limitações e exclusões ainda mais drásticas do que seus membros de elite. Apontam, ainda, que buscar a inclusão por intermédio do individualismo liberal e de instituições historicamente marcadas pela opressão, como é a instituição do casamento, por exemplo, não possibilitaria nenhum tipo de emancipação real e verdadeira daqueles que não se encaixam nos padrões heteronormativos da sociedade. Sem falar que de nada adiantaria defender homossexuais e transgêneros por discriminação no trabalho se, no plano geral do capitalismo norte-americano, o patrão não precisa mais sequer justificar as razões de uma demissão.

E há também alguns conservadores da Federalist Society que, ao admitir que a decisão de Gorsuch não saiu dos limites estabelecidos pela interpretação textualista conservadora, apontam que ela pode ter impactos imprevistos e indesejados não apenas para os conservadores, mas também para os próprios movimentos LGBTs. Por serem “impacientes”, conseguiram um precedente jurídico que não os reconhece como um grupo especial, mas apenas como indivíduos; além de esse precedente pensar o sexo apenas em sua forma binária, e não como uma categoria fluida, como alguns setores radicais LGBTs vêm argumentando.

Embora seja preciso reconhecer os claros limites da atuação judicial e também levar em consideração algumas ponderações feitas por diversas dessas críticas, o que elas parecem não observar, principalmente os críticos mainstream, é que suas colocações parecem mais preocupadas com a desordem social do que com as próprias minorias excluídas. E, nesse sentido, algumas críticas acabariam se assemelhando às críticas dos próprios conservadores, que alegam que se deveria esperar uma mudança cultural e societária completa para que grupos minoritários fossem incluídos nas leis, assim como defendeu Gerald Rosenberg em um artigo bastante perturbador de 2009 (publicado na série Studies in Law, Politics, and Society, em seu volume 48).

Trata-se uma crítica bastante problemática, ao passo que desconsidera a velha questão das minorias e maiorias na política democrática norte-americana, e também sustenta entendimentos bastante limitados não apenas das leis e dos direitos (como se fossem coisas fechadas em seu significado e interpretação), mas também da própria ideia de cultura. Eles ignoram os resultados importantíssimos dos estudos constitutivos do direito, que têm mostrado uma relação dialética entre a construção dos direitos e a questão cultural, na qual o Judiciário e as decisões judiciais aparecem como mais um espaço de construção possível (e não definitivo) dos significados culturais, sociais e políticos dos direitos.

Além disso, as teses mainstream têm sido relativizadas por diversos estudos empíricos mais recentes que analisam a relação do movimento LGBT com a opinião pública e com as diferentes esferas dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (como é o caso de Benjamin Bishin, Thomas Hayes, Matthew Incatalupo e Charles Smith; Jami Taylor, Daniel Lewis e Donald Haider-Markel, Jason Pierceson e Thomas Keck). Esses estudiosos têm chamado a atenção para a multidimensionalidade que envolve a construção dos direitos LGBTs, apontando exageros nas teses do backlash, bem como defendendo a importância dos resultados judiciais alcançados para a vivência e sobrevivência de pessoas homossexuais e transgêneras, por mais que sejam direitos postos dentro dos limites individualistas liberais.

Protesto pelos direitos dos homossexuais, em frente à Casa Branca, em 1965 (Crédito da imagem: Bettmann/Getty Images)

No que tange especificamente a decisão do dia 15 de junho, esses estudiosos certamente apontariam, assim como fez a organização “Lambda Legal” – responsável pela defesa LGBT no caso – que a decisão é ainda mais importante e impactante do que a que legalizou o casamento homossexual em todo território americano (Obergefell et al v. Hodges, Director, Ohio Department of Health et al, de 2015), pois nem todos querem e vão se casar, mas todos precisam trabalhar de forma digna para sobreviver, e essa é uma luta que os movimentos LGBTs vinham encampando há décadas, tanto no plano judicial quanto no plano executivo.

Estudos que analisam a relação do movimento LGBT com a opinião pública e com os poderes legislativos e executivos mostram o caminho fragmentado e lento, porém progressivo, que o movimento percorreu. Ao mesmo tempo em que ele conseguiu apoios de executivos e legislativos locais e estaduais em algumas questões, ele se apoiou crescentemente, a partir dos anos 1970, na litigação estadual para anular terríveis leis locais e estaduais (como as leis de sodomia e de tratamentos de “cura” da homossexualidade). E, mais recentemente, sobretudo a partir dos anos 2000 e 2010, o movimento vem obtendo respostas positivas de cortes de circuito federais e até mesmo da Suprema Corte, tanto no que diz respeito à questão do casamento quanto à famigerada interpretação do Título VII da Lei de Direitos Civis. Isso foi possível, devido a um processo de aprendizagem litigatória do movimento, juntamente com ações conjuntas com os poderes executivos dispostos a implementar políticas governamentais, ainda que passageiras e limitadas.

São políticas passageiras e limitadas, porque elas podem ser desmontadas pelo governo sucessor, caso não haja força no Legislativo para garanti-las por meio da promulgação de leis protetoras. As investidas executivas de Barack Obama para a proteção LGBT exemplificam bastante esse processo, ao passo que foram feitas num contexto de domínio dos republicanos no Legislativo (especificamente na Casa dos Representantes). E, agora, no governo Trump, dada a derrubada das políticas de Obama, o movimento precisou continuar se pautando nas suas atuações políticas fragmentadas subnacionais, bem como na litigação estadual e federal.

A busca da litigação judicial sempre se deu, portanto, com o uso conjunto de outras estratégias de mobilização, e ela se deu de forma bastante eficaz a ponto de conseguir dar fim a leis extremamente discriminatórias e efetivar leis de inclusão. Tudo isso em uma sociedade onde a comunidade LGBT representa uma minoria da população americana, e seus representantes políticos somente recentemente têm despontado com mais força no cenário político. A construção dos seus direitos, portanto, não foi e não é uma investida fácil, nem livre de obstáculos, mas, ainda assim, ela tem sido feita em todas as arenas possíveis. É estranho, portanto, que os críticos não reconheçam sequer os benefícios desses resultados, apontando somente a existência de backlashes. Thomas Keck, inclusive, ao fazer um estudo minucioso dos impactos de decisões judiciais envolvendo direitos LGBTs, verifica que, de fato, ocorrem backlashes, mas que eles são superestimados, ao passo que também ocorre muita mudança política e de conscientização sobre os direitos LGBTs.

Esses estudos reconhecem que as decisões judiciais, até mesmo vindas da Suprema Corte, não são capazes de apaziguar a sociedade por completo, mas elas permitem respiros e se constituem, construtivamente, em instrumentos de luta jurídica e política para mobilizar argumentos a favor da inclusão e contra a discriminação. Isso é especialmente verdade no caso aqui discutido, ao passo que, alguns dias antes da decisão de 15 de junho, o governo Trump determinou o fim de uma regulação do Obamacare que garantia proteções para pacientes transgêneros contra a discriminação feita por médicos, hospitais e companhias de planos de saúde – tudo isso em plena pandemia.

O diretor do Escritório de Direitos Civis do Departamento de Saúde e Serviços Humanos, Roger Severino, disse que o movimento foi equivalente ao de uma “limpeza”, e que o governo Trump estava apenas fazendo com que as políticas federais voltassem a refletir a “realidade jurídica”, qual seja, a de que a discriminação por sexo não se refere à discriminação de pessoas transgêneras, ou homossexuais. Katie M. Keith, professora de Direito da Saúde da Universidade de Georgetown, e que tem acompanhado de perto a área dos direitos civis em intersecção com a questão do Obamacare, disse que a medida de Trump precisa ser vista como parte de um amplo padrão de mudanças regulatórias que eliminam proteções de direitos civis para pessoas transgêneras.

Diante de um projeto desses e de outras possíveis investidas do governo Trump, o que devem fazer os movimentos LGBTs? Alguns dias antes da decisão do dia 15 de junho, as organizações disseram que iriam entrar com uma ação judicial contra o governo por conta da retirada de proteções aos LGBTs do Obamacare, provavelmente utilizando sua interpretação ampla acerca da discriminação baseada no sexo. Depois do dia 15, no entanto, elas passam a ter a seu favor um precedente da Suprema Corte, confirmando sua interpretação. E isso é uma vitória. A questão é saber se, no processo, tal interpretação será confrontada com a liberdade religiosa e com o direito de consciência de médicos e outras entidades. O que vai acontecer não sabemos. Mas as organizações podem e devem utilizar as armas que têm disponíveis no momento. Ou elas deveriam esperar o governo instalar algum tipo de Lavender Scare do século XXI?

 

* Celly Cook Inatomi é doutora em Ciência Política pela Unicamp, pesquisadora colaboradora do INCT-INEU e coordenadora do Grupo de Estudos sobre Mobilização do Direito no IFCH/Unicamp.

** Recebido em 12 de julho de 2020. Este Panorama EUA não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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