Panorama EUA

O crescente recurso a sanções econômicas pelos EUA e seus impactos nas cadeias globais de valor

Barris de petróleo russos sob sanção (Crédito: Marco Verch/Flickr)

Panorama_EUA_OPEU_Crescente recurso a sanções econômicas_v15_n1_Dez_Fev_2024

Por Aline Gonelli* [Panorama EUA]

A crescente utilização de sanções como instrumento de política externa pelos EUA, seu principal promotor, e pelas potências ocidentais tem marcado o cenário internacional contemporâneo e as recentes mudanças nas dinâmicas globais.

Nicholas Mulder, autor do livro The Economic Weapon (Yale University Press, 2022), destaca que o uso de sanções como mecanismo de política externa se tornou uma das inovações mais duradouras do internacionalismo liberal. Observa-se, entretanto, que a estratégia tem demonstrado sinais recentes de eficácia limitada, especialmente quando direcionadas a economias com significativa participação no mercado global. Seus resultados, por sua vez, têm aprofundado as tendências em curso de reorganização das cadeias globais de abastecimento e dos fluxos de comércio globais.

Cover Image of The Economic Weapon and Nicholas Mulder

Nicholas Mulder e a capa de seu livro (Fonte: Belfer Center for Science and International Affairs)

Até a Segunda Guerra Mundial, as sanções internacionais foram usualmente aplicadas como resposta a ações agressivas de Estados. Nas décadas posteriores, motivações humanitárias e disseminação de valores democráticos também foram consideradas legítimas, como evidenciado pelo conjunto de sanções dirigidas aos regimes de Apartheid na África do Sul. O desenvolvimento mais recente no regime de sanções é a aplicação direcionada a indivíduos e entidades, abordagem que visa a punir de forma direcionada responsáveis por práticas ilícitas. Essas medidas estão fora do âmbito das Nações Unidas, sendo, portanto, impostas unilateralmente por países economicamente poderosos. Os Estados Unidos são pioneiros nesse tipo de sanção.

A origem das sanções direcionadas pode ser localizada nos anos 1990, inicialmente concebidas como forma de mitigar o impacto na população civil, causado por medidas mais amplas, e como alternativa ao uso da força. Contudo, a evolução para aplicações unilaterais ocorre sem escrutínio do Conselho de Segurança da ONU, sendo, portanto, a maioria das sanções impostas fora desse quadro, e a legitimidade das medidas, uma exceção. Dos 67 casos da década de 1990, dois terços eram sanções unilaterais impostas pelos Estados Unidos. A partir dos anos 2000, quando foi possibilitado aos EUA maior controle sobre as redes financeiras globais, o número de indivíduos e de entidades na lista de sanções americanas aumentou mais de dez vezes.

Sob a Presidência do republicano Donald Trump, os Estados Unidos tiveram uma escalada significativa no uso de sanções, mantida no governo do democrata Joe Biden. Atualmente, conforme listado no site do Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros do Tesouro (OFAC, na sigla em inglês), o país mantém mais de 30 programas de sanções financeiras e comerciais ativos, dos quais cerca de 20 são direcionados a países com alinhamento e interesses políticos divergentes dos americanos, como Cuba, Síria, Irã, Afeganistão, Coreia do Norte e Iêmen.

O número de indivíduos e entidades sujeitos a sanções na lista de Pessoas Especificamente Designadas e Bloqueadas (SDN, na sigla em inglês) registrou um significativo aumento em 2022, principalmente, devido à intensificação das sanções contra a Rússia. Dados do think tank americano Center for a New American Security indicam que, em 2022, os Estados Unidos incluíram 2.275 novos nomes na lista SDN, em comparação com 743, em 2021. Dessas novas adições, 1.698 foram motivadas pela invasão russa, e 577 indivíduos, adicionados pelo Departamento do Tesouro em outros programas que abrangem temas como anticorrupção, crimes cibernéticos, terrorismo global e drogas ilícitas, refletindo a contínua tendência das sanções como instrumento na política externa dos EUA.

Em uma edição especial de 2022 dedicada ao tema, a revista The Economist atribuiu esse aumento vertiginoso à transição da supremacia incontestável dos EUA nos anos 1990 para um momento de diminuição do apetite do Ocidente pelo uso da força militar, após as guerras no Iraque e no Afeganistão. As sanções surgem nesse cenário como uma alternativa ao permitir que o Ocidente exercesse poder por outros meios.

Nas últimas décadas, os Estados Unidos têm utilizado cada vez mais sanções financeiras como ferramenta de política externa, aproveitando sua posição no centro do sistema financeiro global. Segundo o professor Ernani Torres Filho (PEPI/UFRJ), o alcance das sanções americanas está ancorado na posição de poder e hegemonia da moeda norte-americana no sistema econômico moderno, caracterizado por elevados níveis de integração comercial e financeira. O dólar é majoritariamente utilizado nas transações financeiras internacionais e como reservas dos Bancos Centrais. Essa condição possibilita aos EUA exercerem pressão financeira e comercial sobre as demais nações, uma vez que a restrição do acesso à moeda resulta em rupturas das relações entre o país-alvo e a comunidade internacional, com impactos significativos na economia doméstica e na estrutura político-social.

Historicamente, as sanções têm consistentemente desencadeado instabilidade política e desorganização dos mercados internos, levando, em última instância, a crises nos países afetados. Concebidas como forma de exercer pressão política para combater alegadas violações de valores democráticos e de direitos humanos em determinadas regiões, muitas vezes se transformam em instrumentos de punição, resultando em impactos significativos na economia e no modo de vida da população dessas nações.

No contexto da globalização, essa dinâmica é intensificada, devido à elevada dependência do comércio internacional. Por meio desse mecanismo, os EUA impedem que atores dos sistemas internacionais usem o dólar para realizar transações financeiras com qualquer entidade vinculada a um país sancionado até que o alvo adote um comportamento que seja considerado aceitável e condizente com a “ordem internacional”. Conforme ressaltado pelo autor, os resultados alcançados em termos de restrição da atividade econômica se assemelham aos de um contexto de guerra ao país sancionado, com a vantagem de apresentar baixo custo financeiro.

Em entrevista concedida em 2022 acerca da ampliação das sanções à Rússia, a atual secretária do Tesouro americano, Janet Yellen, afirma: “Nós, os países que impuseram as sanções, estamos dizendo à Rússia que, ao desrespeitar as regras, normas e valores que sustentam a economia internacional, não iremos mais conceder a você o privilégio de negociar, ou investir, conosco. Ao unir forças, demonstramos que essas sanções não são motivadas pelos objetivos de política externa de um único país. Pelo contrário, estamos agindo em apoio aos nossos princípios: nossa oposição à agressão, à violência generalizada contra civis e em alinhamento com nosso compromisso com uma ordem global baseada em regras que protege a paz e a prosperidade”.

Jackson Hole 2017: What Happened?(Arquivo) Secretária do Tesouro americano, Janet Yellen, em 3 fev. 2014 (Crédito: Fed/Flickr)

Sanções econômicas a partir dos anos 2000

A posição central do dólar no cenário financeiro internacional é resultado de um longo processo histórico. Durante a Segunda Guerra Mundial, o dólar solidificou sua predominância como moeda principal após a implementação do Acordo de Bretton Woods. Na década de 1970, os Estados Unidos, de forma unilateral, abandonaram as condições de Bretton Woods, transformando o dólar em uma moeda plenamente fiduciária e estabelecendo sua centralidade nas transações internacionais. Consolida, assim, a posição dos EUA como a única potência financeira.

Nos anos 1990, as autoridades fiscais e de combate ao tráfico de drogas dos EUA criaram mecanismos para rastrear a circulação de dinheiro e de ativos em dólares. Esses instrumentos enfrentavam, no entanto, desafios legais e políticos em outras jurisdições. O uso de sanções financeiras por parte dos EUA foi ampliado a partir do início dos anos 2000, após os atentados do 11 de Setembro, quando as autoridades americanas puderam ter livre acesso aos dados do sistema financeiro internacional para monitorar transações internacionais, visto a necessidade de rastrear fluxos de financiamento e operações de organizações terroristas.

Até 2001, os bancos internacionais e a rede SWIFT, sistema usado por instituições financeiras para pagamentos transfronteiriços, tinham conseguido resistir às tentativas americanas de acessar os dados de movimentações financeiras. A partir de 2001, entretanto, no contexto de “Guerra ao Terror”, o SWIFT concordou em dar acesso irrestrito às informações das transações financeiras realizadas pelo sistema global para autoridades de segurança americana. Como ressalta Torres Filho, o exemplo do SWIFT é relevante, pois se trata de uma empresa belga, sujeita às leis daquele país e da Comunidade Europeia, a qual não estava formalmente obrigada a seguir as determinações dos EUA.

Nesse novo contexto, as instituições financeiras se tornaram operadoras diretas das sanções, impedindo o acesso de partes sancionadas ao sistema financeiro internacional. Até então, os bancos internacionais investigavam seus clientes quando acionados por mandados judiciais, e a punição para o envolvimento em transações com partes sancionadas com frequência se restringia à aplicação de multas. Após 2001, os bancos passaram a evitar associações com partes envolvidas em atividades terroristas, devido ao risco de comprometer sua reputação no mercado. Esse constrangimento reputacional emergiu como um eficiente mecanismo para cooptar instituições financeiras em favor dos interesses estratégicos americanos.

Em 26 de outubro de 2001, foi promulgado pelo então presidente George W. Bush a Patriotic Act, lei que permitiu o congelamento dos ativos das entidades que fossem consideradas financiadoras de atividades terroristas, impulsionando as instituições financeiras a adotarem controles robustos para impedir a entrada de clientes envolvidos nessas atividades. A legislação também autorizou o secretário do Tesouro a considerar qualquer instituição financeira uma ameaça, caso se relacionasse com partes envolvidas em lavagem de dinheiro e no financiamento ao terrorismo. Posteriormente, a integração do sistema SWIFT ao CHIPS, uma câmara de compensação que processa diariamente US$ 1,5 trilhão em pagamentos, permitiu aos EUA exercer controle total sobre as transações em dólares transferidos globalmente. Criou-se, com isso, um mecanismo robusto de monitoramento do sistema financeiro internacional, sujeitando indivíduos e instituições à jurisdição americana.

O primeiro programa de sanções pós-2001, direcionado à Coreia do Norte, foi considerado um sucesso, pois levou as autoridades norte-coreanas a iniciarem negociações diretas com os Estados Unidos, devido aos impactos da desmontagem de sua rede financeira e do congelamento de seus ativos internacionais na economia local. O segundo programa de sanção foi direcionado ao Irã, motivado pelo envolvimento de bancos do país no financiamento de armamentos e de tecnologia nuclear para grupos considerados extremistas, como o Islamic Revolutionary Guard Corps e a Atomic Energy Organization of Iran.

Diferentemente da experiência anterior, o Irã é uma economia de maior porte, dependente da exportação de petróleo e do dólar, tendo sido amplamente afetado pelo mecanismo americano. As sanções direcionadas ao país se iniciaram com o fechamento de contas de iranianos nos bancos estrangeiros, seguida pela desconexão sucessiva de bancos do país ao sistema internacional SWIFT, até a desconexão do banco central do país em 2012. Em paralelo, medidas foram direcionadas a empresas privadas de transporte marítimo e de seguro, com o objetivo de afetar a capacidade do país em comercializar petróleo. Entre 2012 e 2015, os EUA engajaram países europeus aliados, e os impactos se aprofundaram. Com a desorganização do mercado e dos níveis de atividades, a recessão econômica se intensificou, levando à contração do Produto Interno Bruto (PIB), à escassez de produtos essenciais, à alta inflação e à rápida desvalorização da moeda.

Chanceleres e outros funcionários dos países P5+1, da União Europeia e do Irã, ao anunciarem o quadro de um acordo abrangente sobre o programa nuclear iraniano, em Écublens-Lausanne, Suíça, em 2 abr. 2015 (Crédito: Departamento de Estados dos EUA/Flickr)

Em 2015, o Irã aceitou limitar seu programa nuclear em troca da suspensão das sanções. Em 2018, apesar de o país ter-se mantido dentro dos termos firmados no Plano de Ação Conjunto e Abrangente (JCPOA, na sigla em inglês), os EUA retomaram unilateralmente as sanções, alegando preocupações com o programa nuclear do país e buscando um novo acordo com termos mais rigorosos. Dessa forma, as sanções econômicas contra o Irã resultaram em prejuízos econômicos, na piora das condições de vida da população e em um relativo isolamento do país do sistema econômico internacional, sem alcançar os propósitos previamente definidos com sua aplicação.

Sanções aplicadas à Rússia a partir de 2022

O sucesso alcançado na implementação de sanções contra países como Coreia do Norte, Irã e Venezuela levou os EUA a adotarem a mesma medida contra a Rússia em 2022. Em contraste com os episódios anteriores, o novo pacote de medidas visou à 11ª maior economia do mundo, significativamente mais integrada em termos comerciais, financeiros e industriais do que os países que até então haviam sido alvo.

Em resposta à invasão da Rússia à Ucrânia em 22 de fevereiro de 2022, os Estados Unidos lideraram um esforço com aliados e parceiros, incluindo União Europeia (UE), Reino Unido, Canadá, Austrália, Japão e Coreia do Sul, autorizando sanções contra a Rússia por violações de princípios do direito internacional, como o respeito pela integridade territorial dos Estados soberanos, conforme anunciado pelo Tesouro americano.

De acordo com Fiori, até então, nenhuma economia do G20 havia enfrentado sanções econômicas dessa magnitude no período de maior integração global. Mulder ressalta que a década de 1930 é a única que oferece um precedente para sanções contra Estados com um peso semelhante na economia mundial, quando a Liga das Nações direcionou sanções contra a Itália, então oitava maior economia do mundo, após a invasão à Etiópia.

As medidas rápidas e abrangentes aplicadas à Rússia tiveram como objetivos causar impactos imediatos na economia, dificultando a capacidade de financiamento à invasão. No longo prazo, visavam a afetar a capacidade produtiva e tecnológica do país, impedindo novas ações bélicas pelos próximos anos. Implementadas dois dias após o início das hostilidades, as medidas incluíram sanções econômicas multilaterais, restrições financeiras, proibições de importação e controles de exportação em setores-chave.

No geral, as sanções iniciais foram dirigidas a membros do alto escalão do governo e ao sistema financeiro, com a desconexão de grandes bancos do sistema SWIFT, bloqueio do Banco Central, além do congelamento de cerca de US$ 300 bilhões das reservas internacionais do país. No decorrer de 2022, a OFAC aplicou sanções aos cinco maiores bancos da Rússia, incluindo o banco estatal Sberbank, principal credor do país. Sanções também foram direcionadas aos setores de energia, tecnologia, defesa e transporte, além de bloqueios das elites políticas e empresariais. Nos meses seguintes, governos ocidentais bloquearam todos os investimentos mantidos pelo país no exterior, assim como exportações para a Rússia de componentes de alta tecnologia, transporte marítimo, serviços de manutenção e seguros. Além disso, quase 1.000 empresas estrangeiras encerraram, ou reduziram, suas operações no país.

Medidas de grande impacto sistêmico foram impostas desde o início, diferenciando-se de experiências anteriores, em que as sanções foram aplicadas de maneira escalonada. Em resposta, o governo russo introduziu controles de capital, limitando a movimentação de fundos para o exterior e proibindo transações com moeda estrangeira, elevou a taxa de juros e fechou as bolsas de valores, conseguindo reverter a queda do rublo rapidamente.

A importância imediata dos insumos energéticos russos para a Europa contribuiu para o sucesso das medidas implementadas. Apesar das amplas sanções direcionadas ao setor financeiro, não houve medidas imediatas sobre alguns bancos comerciais, o que permitiu que o país continuasse a exportar gás e petróleo. O setor representa quase 40% das receitas do orçamento do governo, e 60%, das exportações, facilitando o acúmulo de reservas e a mitigação parcial dos impactos.

Dada a integração significativa da economia russa ao cenário internacional, os sancionadores buscaram atenuar o impacto de uma desconexão mais radical no fornecimento em setores estratégicos. No setor energético, as consequências negativas de uma desconexão abrupta do fornecimento russo na oferta e na estabilidade de preços nos mercados globais de energia foram ponderadas pelos países sancionadores. Dessa forma, as medidas direcionadas ao setor evitaram impactos diretos nas exportações para a Europa.

Ao contrário da Europa, a proibição de importações de petróleo, gás natural e carvão russo para os EUA foi emitida rapidamente, por meio da Ordem Executiva 14066 em março de 2022. O escalonamento das sanções segue, no entanto, em curso. Em maio do mesmo ano, a UE emitiu uma exceção temporária para petróleo bruto entregue por dutos, considerando que, com a mobilização de novas fontes, eventualmente proibirá a importação total. Em dezembro, os países do G7, a UE e a Austrália implementaram um limite de preço (price cap) para o petróleo bruto de origem russa, proibindo o transporte marítimo acima do teto estabelecido. Em fevereiro de 2023, foi implementado pelos mesmos países um teto de preço para produtos de petróleo refinado de origem russa. Torres Filho destaca a versatilidade das sanções, que deixam margem para a implementação de medidas adicionais com o intuito de promover uma asfixia progressiva, conforme a evolução da situação.

Apesar das expectativas iniciais negativas para a economia russa, os efeitos foram parcialmente controlados. Enquanto as previsões do mercado financeiro indicavam, em um primeiro momento, uma queda de 30% no PIB, dados do Fundo Monetário Internacional (FMl) indicam que a contração foi de 2,1% em 2022, com uma previsão de crescimento de 2,2% para 2023. Esses números são comparáveis ao crescimento esperado para o PIB americano no mesmo período (2,1%) e superiores aos da União Europeia (0,7%).

Diante desse cenário, a Rússia ofereceu petróleo e gás com descontos, encontrando compradores interessados, com destaque para China e Índia. Segundo Mulder, as matérias-primas baratas da Rússia estão incentivando a evasão de sanções em uma escala inédita. No caso do diesel, com as sanções a produtos refinados adotadas em fevereiro de 2023, as exportações russas foram direcionadas para países sul-americanos, liderados pelo Brasil, e do norte da África. Segundo matéria publicada pela revista The Economist, alguns países com refinarias próprias também aumentaram significativamente suas importações. Dados da Turquia, principal comprador, sugerem que o país importa diesel russo com desconto para atender à demanda interna, enquanto vende sua produção mais cara para a Europa. A Arábia Saudita também adotou estratégia semelhante desde abril de 2023, tendo registrado aumento notável nas exportações para a Europa no mesmo período.

IMF | Bruno Sanchez-Andrade Nuño | FlickrFMI: contração da economia russa foi de 2,1% em 2022, com previsão de crescimento de 2,2% para 2023 (Crédito: Bruno Sanchez-Andrade Nuño/Flickr)

É interessante observar que, apesar do relativo controle dos impactos, as sanções afetaram diversos setores da economia russa, as receitas do governo e o padrão de vida no país. Dados do Economic Observatory indicam que a proibição de importação de petróleo bruto e o teto de preço impactaram significativamente a receita do governo. A escassez de peças e a dificuldade em obter matérias-primas e componentes impactaram a indústria e a exportação de bens, como alta tecnologia, componentes e veículos, e há relatos de uma fuga de trabalhadores qualificados. Mulder destaca que as crises financeiras de 1998 e 2008 e a recessão econômica de 2020 causaram impactos mais graves no crescimento do PIB do que as sanções impostas em 2022. No médio e no longo prazo, entretanto, os danos serão, provavelmente, intensificados.

Conforme destacado em um artigo do jornal The Guardian, as sanções impostas à Rússia estão gerando um “efeito bumerangue” que afeta não apenas a economia russa, mas que também tem repercussões significativas no Ocidente. Esse efeito se manifesta nas próprias economias dos países que implementaram as sanções, resultando em energia mais cara, aumento nos preços dos alimentos e declínio no padrão de vida. Os efeitos nos mercados de energia e no fornecimento de commodities, principalmente de alimentos, contribuem para um cenário de alta inflação, e efeitos políticos podem surgir com o aprofundamento da recessão nos países sancionadores. Isso é particularmente impactante, se considerarmos que se trata do ano eleitoral mais importante deste século, com mais de 40 países tendo eleições gerais.

Diferentemente dos regimes de sanções até então em vigor, aplicados a países com uma presença econômica e comercial relativamente menor na economia global, e dada sua posição significativa como principal exportadora de commodities entre os mercados emergentes, o impacto das medidas impostas à Rússia teve outra proporção. Segundo Mulder, entre as economias avançadas, apenas Estados Unidos, Canadá e Austrália têm participação comparável nos mercados globais de energia, agricultura e metais. Além disso, mais de duas décadas de integração progressiva tornaram a Rússia uma economia muito aberta, com uma proporção de comércio para PIB de 46%, de acordo com dados do Banco Mundial.

Além de acarretarem encargos para os países sancionadores e para a economia global, os Estados Unidos e seus aliados não conseguiram isolar a Rússia do sistema econômico e político internacional. Apenas 21% dos países-membros da ONU apoiaram as medidas contra a Rússia, que conseguiu manter e expandir suas relações comerciais com diversas nações, incluindo China e Índia, e países da Ásia, do Oriente Médio, da África e da América Latina. As economias em desenvolvimento que não aderiram às sanções contra a Rússia, estão, em sua maioria, vulneráveis a uma crise de balanço de pagamentos, se as sanções às exportações russas forem intensificadas por um período prolongado. Países que dependiam dessas importações, especialmente na África, são os mais prejudicados, enfrentando escassez de grãos e aumentos inflacionários Segundo matéria publicada em 2022 na revista The Economist, muitos países não desejam impor políticas “ocidentais”, e os embargos totais, ou parciais, estão sendo aplicados por cerca de 100 países, que representam 40% do PIB mundial.

Dessa forma, a experiência russa tem-se mostrado relativamente resiliente aos pacotes de sanções ocidentais, indicando que os efeitos de imposição de sanções em uma economia de grande porte, integrada ao mercado global podem ser limitados, principalmente no curto prazo. A falta de apoio universal possibilitou que a Rússia contornasse as sanções, e diversos bens têm sido direcionados para o país por rotas indiretas.

Outro ponto relevante são as estratégias de contorno às sanções identificadas pelos intermediários, que encontram maneiras de disfarçar a origem dos envios apesar das intensas pressões das medidas. Análises de registros de transporte e seguro feitas pelo jornal Financial Times indicam que a Rússia tem contornado o limite de preço (price cap) imposto pelas sanções por algumas vias, possibilitando a venda de petróleo a preços mais próximos do valor do mercado internacional. Segundo a análise, quase 75% do fluxo de petróleo russo por via marítima viajou sem seguro de empresas ocidentais em agosto de 2023, um aumento em relação aos cerca de 50% do ano anterior. O aumento das vendas acima do teto está sendo acompanhada por uma tendência de alta nos preços do petróleo no mercado global.

A prestação de serviços ocidentais sob o limite de preço, como transporte marítimo ou seguro, é um mecanismo que permite que os sancionadores controlem o teto imposto. A Rússia tem encontrado, porém, alternativas a esses serviços. As produtoras de petróleo russas e suas afiliadas formaram diversas empresas de fretamento de petroleiros domiciliadas em países que não participam de sanções internacionais, para que possam continuar as exportações sem o limite de preço.

Segundo apuração da The Economist, com base em entrevistas com intermediários do mercado de petróleo e em dados da cadeia de abastecimento, empresas ocidentais antes dominantes recuaram do comércio, transporte e seguro do setor de energia russo, tendo sido substituídas por novos e discretos atores, geralmente com base em Hong Kong, ou Dubai. Essa nova e extensa rede tornou o petróleo russo difícil de rastrear. Desde o estabelecimento do limite de preço e as sanções à logística, a maior parte do petróleo russo migrou para as chamadas redes cinzentas (do inglês grey trade ou grey networks) que, apesar de desconsiderarem o teto de preço, por usarem logística não ocidental e entregarem a países que não fazem parte do bloqueio, não são ilegais.

Custos de transporte inflacionados também tem sido uma forma de burlar o limite de preço. Uma análise do custo de transporte de navios que vão da Rússia para a Índia feita pelo Financial Times estimou que o preço médio do transporte do petróleo bruto nessa rota é de US$ 14,90 por barril desde fevereiro de 2023, acima da média de mercado, de cerca de US$ 9 por barril.

Oil pumps in southern Russia | Oil pumps, in southern Russia… | FlickrInstalações de petróleo no sul da Rússia (Crédito: Gennadiy Kolodkin/Banco Mundial/Flickr)

A Rússia também buscou obter importações críticas por meio de cadeias de abastecimento e de fluxos financeiros envolvendo países como Turquia, Emirados Árabes Unidos e países da Ásia Central. Essa mudança de rota tem direcionado a aplicação de sanções a grupos privados desses territórios. Como exemplo, diversas sanções também foram impostas contra grupos turcos pelo fornecimento de tecnologia e eletrônicos para a Rússia. As medidas também estão visando a rotas alternativas via “países amigos”.

Em suma, ao visar à 11ª maior economia do mundo, um dos maiores exportadores de energia, grãos e outras commodities, o embargo à Rússia leva as sanções para um novo patamar, representando uma ameaça para a globalização econômica. A eficácia limitada das sanções contra a Rússia deriva de sua resposta política, de seu porte, de sua posição comercial e da relevância de países não alinhados na economia global. Sem mandato da ONU, os EUA formaram sua própria coalizão de países dispostos a ficar ao seu lado, excluindo-se China, Índia e alguns países da América Latina e África, que continuaram a comprar energia e commodities russas, o que tem permitido, junto a outros mecanismos, o contorno das sanções.

As sanções direcionadas a uma economia de grande porte e altamente integrada também tiveram impactos diretos na economia global. Os preços mais altos contribuíram para pressões inflacionárias, ameaçando a segurança energética e alimentar e alterando os fluxos comerciais em muitos países.

Tendências e impactos das sanções nas cadeias globais de valores

A interdependência na econômica global amplia a vulnerabilidade a interrupções nas cadeias de abastecimento globais. Elas ocorrem por diversos mecanismos e processos, incluindo a aplicação de sanções. Os choques das sanções são intensificados pela integração de mercado, resultando em custos econômicos e efeitos políticos não intencionais, especialmente quando direcionadas a economias altamente integradas.

Chairman Gallagher's Remarks to Center for a New American Security's Update  on Relations With China | Select Committee on the CCPDados do Center for a New American Security (CNAS) indicam que as sanções à Rússia estão causando impactos imediatos nas cadeias de suprimentos. A interrupção do comércio de commodities e de insumos industriais da região tem elevado preços e afetado indústrias como as de manufatura e alimentos. De forma geral, o conflito na Ucrânia e outros eventos recentes, como a pandemia da covid-19 e a disputa tecnológica entre Estados Unidos e China, têm representado obstáculos ao comércio internacional, intensificando o debate acerca de alternativas para as cadeias de valor, como estratégias de “reshoring” (transferência da cadeia de produção de volta para o país de origem) e de “friendshoring” (identificação de canais de suprimento alternativos e a formação de alianças). De forma geral, os governos ocidentais têm procurado estimular políticas que incentivam o desacoplamento de indústrias estratégicas, buscando reestruturar cadeias de suprimentos para potências “amigas”, com o objetivo de fortalecer a segurança.

Em uma declaração de 2022, a secretária do Tesouro americano, Janet Yellen, destacou a importância de mitigar riscos da ruptura de acesso a mercados e a necessidade de cooperar com parceiros comerciais confiáveis: “Daqui para frente, será cada vez mais difícil separar questões econômicas de considerações mais amplas de interesse nacional, incluindo segurança nacional (…) Em algumas questões, como comércio e competitividade, isso envolverá reunir parceiros comprometidos com um conjunto de valores e princípios fundamentais (…) Não podemos permitir que os países usem sua posição de mercado em matérias-primas, tecnologias, ou produtos-chave, para terem o poder de interromper nossa economia, ou de exercerem uma alavancagem geopolítica indesejada. Então, vamos construir e aprofundar a integração econômica e as eficiências que ela traz em termos que funcionem melhor para os trabalhadores americanos. E vamos fazer isso com os países, com os quais sabemos que podemos contar”.

Na definição de Yellen, é essencial fortalecer as relações econômicas apenas com “amigos”, aplicando sanções e outras medidas para restringir as possibilidades de interação com todos os “outros” – no geral, a Rússia e regimes antagônicos ao capitalismo liberal ocidental.

Segundo Veiga & Rios, essa tendência já está em curso há algum tempo. Desde a disputa presidencial americana de 2016 já era possível observar sinais de afastamento da narrativa do livre-comércio e um consenso de ambos os partidos sobre a importância de fortalecer a resiliência econômica do país. A primeira etapa do processo de retração das cadeias de valor foi, entretanto, anterior e refletiu, principalmente, as percepções dos agentes privados quanto aos riscos da fragmentação da produção após os desastres naturais de Fukushima, no Japão, em 2011, e da Tailândia, em 2012. Ambos impactaram amplamente as cadeias internacionais. Até 2016, no entanto, o processo não teria causado ruptura no modelo de fragmentação da produção, ou resultado em intensos debates acerca da “nacionalização” das cadeias.

Após 2016, as percepções de risco por parte do setor privado foram somadas a preocupações de Estados com a vulnerabilidade das cadeias para a segurança nacional. Como exemplo, desde 2018/2019, conforme a competição tecnológica e geopolítica com a China avançava, o governo americano implementou medidas para restringir os investimentos chineses nos EUA e desvincular as conexões entre empresas de setores estratégicos dos dois países. Uma decisão significativa foram as sanções e os controles direcionados à Huawei, empresa chinesa de telecomunicações, impedindo a importação de seus produtos para o mercado americano e a exportação de software para a companhia por empresas americanas.

Nos últimos anos, com o objetivo de retardar o progresso dos programas militares chineses, os Estados Unidos expandiram o escopo das sanções contra empresas do gigante asiático. O presidente Biden proibiu investimentos dos Estados Unidos no setor de alta tecnologia da China, assim como trabalhadores americanos de atuarem na indústria chinesas de chips. O governo também anunciou, em outubro de 2022, um amplo pacote de restrições à exportação de tecnologia de ponta, direcionado a uma série de empresas do país, tendo colocado 603 organizações chinesas na lista SDI da OFAC por motivos de segurança nacional.

Na percepção de Brancaccio & Califano, embora os Estados Unidos e aliados tenham estabelecido as regras da globalização capitalista nos anos 1990, uma inversão de papéis tem ocorrido nos últimos anos, com a China defendendo o livre-comércio, enquanto o Ocidente demonstra reações protecionistas na defesa contra a centralização de capital nos países que não consideram “amigos”. Essa mudança reflete desequilíbrios que se acumularam no período de abertura global dos mercados, com os Estados Unidos e a maioria dos países ocidentais acumulando déficits externos, enquanto a China e alguns países emergentes e exportadores de energia acumularam superávits. Os autores também ressaltam que a tendência para o “protecionismo discriminatório”, com o uso de instrumentos como sanções e guerra comercial, resulta dos desequilíbrios gerados pela competição econômica em condições de livre-comércio e de capitais.

Em geral, as sanções se diferenciam de medidas protecionistas, como tarifas, que, em princípio, são utilizadas para defender interesses econômicos. A distinção entre elas tem-se tornado, no entanto, cada vez mais tênue. O ajuste de tarifas, que originalmente seria uma resposta a práticas anticompetitivas de parceiros comerciais, tem sido utilizado como um mecanismo para pressionar países a mudar políticas, justificativa usualmente utilizada para aplicação de sanções econômicas. Nesse contexto, as sanções seriam um mecanismo para restringir as indústrias que estejam mais avançadas que os Estados Unidos, deixando a distinção entre sanções e políticas protecionistas cada vez mais obscura, à medida que ambas se entrelaçam com objetivos de defesa.

180813-A-JP684-151 | President Donald J. Trump speaks to 10t… | Flickr(Arquivo) O então presidente Donald Trump discursa e assina a National Defense Authorization Act de 2019, em 13 ago. 2018, no Forte Drum, NY (Crédito: Fort Drum & 10th Mountain Division/Flickr)

Um exemplo da relação entre sanções e política protecionista é a National Defense Authorization Act de 2019, lei que estabelece as despesas militares anuais dos Estados Unidos, aprovada após debates sobre as ameaças à segurança nacional de investimentos estrangeiros em território americano e da transferência de tecnologias para o exterior. Outro exemplo foi a emissão da Ordem Executiva (EO) 14107 – “Cadeia de suprimentos dos Estados Unidos” – pelo presidente Biden em fevereiro de 2021, que faz uma avaliação abrangente das cadeias de valor críticas, visando a identificar riscos e a desenvolver estratégias para promover resiliência. A EO identifica quatro cadeias de valor críticas: semicondutores, baterias de alta capacidade, materiais críticos e farmacêutica, com instruções para revisão das relações comerciais considerando-se cadeias de suprimentos desenvolvidas com aliados e parceiros que compartilhem valores americanos.

O que se observa é o crescimento da influência política sobre o comércio, com afinidades ou hostilidades políticas começando a moldar os fluxos comerciais. Dessa forma, considerações de segurança estão desempenhando um papel crescente na política comercial, evidenciado pelo aumento das restrições sob a justificativa de segurança nacional e pela expansão da parcela do comércio global afetada por sanções internacionais.

Segundo relatório do FMI publicado em 2022, haverá um grau de desacoplamento do comércio e do investimento entre a China e o “Ocidente”, especialmente em tecnologias sensíveis. O relatório aconselha a diversificação de suprimentos a países e empresas, mas alerta que, além de certo ponto, a dependência de alguns fornecedores próximos pode ser arriscada e custosa. Embora essas políticas reduzam a dependência de países rivais, há custos associados à eficiência da produção e, dada a interdependência das cadeias, mesmo importando menos da China, fornecedores dos países “amigos” continuarão a depender de forma contínua de insumos desse país. O documento ressalta que a China não pode se desvencilhar totalmente das cadeias de abastecimento, situação que afetaria tanto indústrias chinesa quanto as de países ocidentais.

Dados da análise do FMI indicam ainda que, apesar da tendência, não há evidências de diversificação sistemática pelas maiores economias nos últimos cinco anos. Previsões antecipam, também, que o friendshoring é prejudicial a longo prazo para a maioria das economias, resultando em perdas reais de produção global, que podem variar de 0,1% a 4,7% do PIB.

De forma geral, as sanções politicamente motivadas fortaleceram a tendência de busca por soberania econômica e financeira e o desejo dos países de encontrarem formas de se proteger dos riscos de pressões externas. Em resumo, as iniciativas de desacoplamento do sistema internacional liderado pelos EUA já estavam em andamento, sendo as sanções um catalisador dessas dinâmicas.

Por fim, observa-se que as sanções aprofundam as tendências de interrupções nas cadeias globais de abastecimento, já em curso. As estratégias recentes dos EUA e de países aliados incluem sanções e controles de exportação. Buscam estreitar os benefícios do sistema globalizado, ao fortalecer as cadeias de suprimentos com países considerados amigos, caracterizando, assim, um processo de “globalização excludente”. As cadeias de valor são, agora, vistas como fontes de riscos por parte de empresas e autoridades governamentais, subordinando questões de eficiência econômica a esses fatores. Essa mudança de dinâmica e de percepção pode resultar em retração das cadeias globais e na abertura de espaços para a construção de alternativas aos mecanismos financeiros ocidentais.

 

* Aline Gonelli é economista, analista na área de compliance internacional e mestranda no Programa de Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais da PUC-SP. Contato: aline.gonelli@gmail.com.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 1º fev. 2024. Este Panorama EUA não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora Tatiana Teixeira, no e-mailtatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas Newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mailtcarlotti@gmail.com.

 

Assine nossa Newsletter e receba o conteúdo do OPEU por e-mail.

Siga o OPEU no InstagramTwitterLinkedin e Facebook e acompanhe nossas postagens diárias.

Comente, compartilhe, envie sugestões, faça parte da nossa comunidade.

Somos um observatório de pesquisa sobre os EUA, com conteúdo semanal e gratuito, sem fins lucrativos.

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais