Panorama EUA

Presença dos EUA no Afeganistão e as investigações do TPI

Crianças afegãs observam soldado americano da Equipe de Reconstrução Provincial (PRT, na sigla em inglês), nas montanhas da província do Nuristão, em 19 dez. 2009 (Crédito: Tauseef Mustafa/AFP/Getty Images)

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Por Marrielle Maia e Theo Nepomuceno Teixeira*

“Não fomos ao Afeganistão para formar uma nação”. A frase pronunciada por Joe Biden para justificar a retirada das tropas americanas no Afeganistão reforça a relevância das perguntas de alguns analistas: O que os Estados Unidos foram fazer no Afeganistão e por que permaneceram?

A primeira resposta remete, claro, aos atentados do 11 de Setembro. Justificada como legítima defesa, mas também pela recusa do governo (talibã) de entregar líderes da Al Qaeda (grupo terrorista que assumiu os atentados),  a entrada no Afeganistão era sustentada pela doutrina da guerra contra o terror que orientou a estratégia de inserção internacional dos Estados Unidos no período de George W. Bush (2001-2008).

A convoy of US Marine Corps (USMC) High-Mobility Multipurpose Wheeled Vehicles (HMMVW), assigned to D/Company, 1ST Light Armored Reconnaissance Battalion, 1ST Marines Division, arrives in Northern Iraq, during a sandstorm. USMC personnel are in Iraq in support of Operation IRAQI FREEDOM. Several vehicles are equipped with Tube-launched Optically-tracked Wire-guided (TOW) missile launchersComboio dos fuzileiros navais americanos chega ao norte do Iraque, em meio a uma tempestade de areia, em apoio à Operação Liberdade Duradoura, em 26 mar. 2003 (Crédito: LCPL Andrew P. Roufs, USMC)

Acontece que, quando os analistas fazem esse primeiro questionamento, pretendem chamar a atenção para outras questões, como a legitimidade da invasão e as verdadeiras razões da permanência. O fato é que, desde a aprovação da ação por parte do Congresso americano, o início daquela que foi nomeada “Operação Liberdade Duradoura” gerou o ingresso de um importante contingente militar do país.

Dois anos depois, o Pentágono anunciou que os objetivos do grande combate no Afeganistão estavam cumpridos. O reconhecimento de que os principais objetivos estratégicos haviam sido alcançados não reverteu, contudo, a presença no país. Pelo contrário, a presença militar dos Estados Unidos foi reforçada com a contratação de paramilitares para atuarem no interesse dos Estados Unidos. Sob a justificativa de reconstrução do país, aliados foram mobilizados, inclusive no âmbito do Conselho de Segurança da ONU e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Em agosto de 2003, a Aliança Atlântica assumiu o comando da Força Internacional de Assistência à Segurança (ISAF, na sigla em inglês) com a responsabilidade de pacificar e reestruturar o país.

O envolvimento dos EUA no Iraque e a incapacidade de compreender a dinâmica da sociedade e das forças sociais do Afeganistão, assim como o envolvimento de grupos e de forças de outros Estados, acabaram por ampliar cada vez mais a força armada no local. O emprego da violência não garantiu, porém, resultados de estabilidade, paz, nem a proteção das pessoas.

Logo no início de seu mandato (2009-2017), Barack Obama seguiu a recomendação do Pentágono de aumentar ainda mais as tropas no Afeganistão (decisão fortemente contestada por seu vice-presidente, Joe Biden). A partir daí, organizou-se um cronograma de retirada das tropas, várias vezes adiado. O plano era ajudar a criar condições para a transferência da responsabilidade pela segurança do país para um governo erigido de forma artificial, em um país altamente fragmentado.

Em 2011, o anúncio da morte de Osama Bin Laden por parte das forças da Marinha foi celebrado como uma grande vitória. Naquela altura, a administração já reconhecia a incapacidade de tornar o Afeganistão democrático (nos moldes ocidentais). Assim, a estada das tropas tinha a exclusiva razão de manter o Talibã sob controle e alcançar terroristas, inclusive novos movimentos, como o Estado Islâmico (EI), e novas articulações entre os diferentes grupos radicais na região. Algumas análises otimistas mostravam a melhora de números de desenvolvimento humano no Afeganistão, como o aumento do Produto Interno Bruto (PIB) real, o crescimento da economia, o acesso a serviços básicos de saúde por parte da população, acesso de crianças a escolas, entre outros.

O fim das principais operações chegou a ser anunciado em 2014. Ao final do mandato, porém, entendeu-se não ser viável a saída das forças estadunidenses do país, devido a sua fragilidade. A OTAN se retirou, mas os Estados Unidos permaneceram com a decisão de manter o curso da contrainsurgência.

Em relato publicado em 2017 sobre os conflitos no Afeganistão, a Promotoria do Tribunal Penal Internacional (TPI) afirma que a piora da situação de segurança ocorreu, principalmente, em razão do aumento do nível de insurgência. Isso se deu, sobretudo, pelo próprio Talibã e pelos maiores grupos armados antigovernamentais que historicamente operam no país: o Haqqani e Hezb-e-Islami Gulbuddin (HIG). Desde 2015, grupos que se autodenominam Daesh-Província de Khorasan (ISIS-K, na sigla em inglês), do Estado Islâmico, também foram considerados responsáveis por ataques, ou reivindicaram sua autoria, em Cabul e na província de Nangarhar.

Trump, ainda candidato, prometeu trazer as tropas para casa, promessa essa alicerçada em sua política America First. O crescimento do Talibã gerava, no entanto, dificuldades. Abandonando a promessa de campanha, o governo Trump adotou uma política bastante agressiva com novas regras de engajamento e com a ampliação do número de tropas. Segundo Mehata, a nova abordagem aumentava a exposição de civis aos efeitos colaterais dos enfrentamentos.

Além disso, o personalismo que marcou a administração, a inconstância das lideranças e as divisões internas geraram uma política bastante controversa para o Afeganistão. Como um exemplo da crítica da oposição aos descompassos da administração W. Bush, merece atenção o artigo (de pré-campanha) de Biden publicado em abril de 2020 na revista Foreign Affairs. Nele, o autor argumenta que, na gestão do republicano, os Estados Unidos abriram mão de sua posição de liderança da comunidade internacional, ao menosprezar, ou mesmo abandonar, aliados; desconsiderar conselhos dos profissionais de sua própria administração e dos serviços de Inteligência; encorajar adversários; e desperdiçar vantagens para enfrentar desafios de segurança nacional, como no caso do Afeganistão – em clara alusão às negociações com o Talibã que escantearam o governo afegão e seu presidente Asharaf Ghani.

O então representante especial dos EUA para as discussões para Reconciliação no Afeganistão, Zalmay Khalilzad (à esq.), e o cofundador do Talibã mulá Abdul Ghani Baradar, após assinatura de acordo de paz durante cerimônia na capital do Catar, Doha, em 29 fev. 2020 (Crédito: Karim Jaafar/AFP via Getty Images)

Foi o diplomata afegão-americano Zalmay Khalizad que encabeçou as tentativas de acordo, até que, em 2019, uma reunião para negociação de paz em Camp David foi cancelada. A continuidade do diálogo com o diplomata logrou um pacto firmado em fevereiro de 2020 para a retirada das tropas, tendo como contrapartida a redução da violência e o rompimento dos laços do Talibã com grupos terroristas. O prazo final de 31 de maio de 2021 para a retirada das tropas foi, de fato, herdado por Biden.

Já nos primeiros meses de governo, o democrata foi avisado pela equipe de Segurança Nacional que a retirada das tropas poderia levar ao colapso do governo Afegão. A rápida retirada do pessoal e a entrega do campo de aviação de Bagram foram acompanhadas de um avanço dos talibãs nas cidades até que, em 15 de agosto, presenciamos pelos jornais as cenas da tomada de Cabul. Soldados estadunidenses voltaram ao país para garantir o transporte aéreo de militares e civis concidadãos, aliados e alguns afegãos escolhidos para serem protegidos (especialmente antigos colaboradores).

Antes fortemente favorável à retirada das tropas, a opinião pública estadunidense ficou dividida, sobretudo, depois de 26 de agosto de 2021. Neste dia, o grupo EI-K (rival do Talibã) cometeu dois atentados contra o aeroporto e um hotel próximo em Cabul. A ação resultou na morte de 13 oficiais estadunidenses e 170 afegãos.

Na mesma data, o mundo presenciou a consternação do presidente Joe Biden em um pronunciamento que foi considerado pela imprensa nacional e internacional como uma “tragédia anunciada”, uma demonstração de fragilidade do governo e uma derrota importante para a potência.

Em episódio do Diálogos INEU, o professor Reginaldo Nasser (PUC-SP) fez uma análise, trazendo outros elementos para interpretar os eventos e seu impacto para os Estados Unidos. Recorda que a maior parte das tropas já havia sido retirada antes do início do mandato de Biden e que o governo do Afeganistão nunca ganhou legitimidade doméstica, até em razão da heterogeneidade do país. Lembrou também que os 20 anos de presença e os US$ 3 trilhões gastos são parte de um grande projeto dos EUA: a guerra contra o terrorismo. Nela, muitos atores públicos e privados lucraram. E Washington encontrou um espaço para que a “máquina de guerra dos Estados Unidos” se aprimorasse.

Para Arlene Clemesha, as abordagens das diferentes administrações que se seguiram nestas duas décadas de ocupação parecem não ter levado em consideração o mosaico étnico existente no país e a forte rejeição, por parte dos dos muçulmanos, maioria da população local, dos valores ocidentais.

O fato é que a situação é complexa. A chamada “guerra desnecessária”, termo cunhado por Tariq Ali, gerou e vai gerar inúmeras vítimas. Algumas das conquistas econômicas e sociais conseguidas durante o período da ocupação não amenizam uma realidade de corrupção, imensas desigualdades, pobreza extrema, violações de direitos e crimes contra o direito internacional. Também não eximem os Estados Unidos da responsabilidade pelas inúmeras violações de direitos humanos no contexto da ocupação, mas também do pós-ocupação. Tampouco isentam os Estados Unidos da responsabilidade de crimes cometidos por lideranças e liderados em ações que expuseram que a barbárie também se encontra nas ações daqueles que se colocam como modelo de civilização.

EUA e o TPI: uma relação marcada pela política da guerra ao terrorismo

A criação em 1998 do instrumento de justiça permanente, independente e com jurisdição complementar para crimes de agressão, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes de genocídio gerou controvérsias no âmbito da política doméstica estadunidense sobre como deveria se dar o relacionamento com o mecanismo.

ICC sets date for Darfur janjaweed leader Kushayb war crimes trial | Radio DabangaSede do TPI em Haia (Crédito: Andrew Bergman/RD)

A razão da tensão se encontra no fato de o mecanismo ter o potencial de julgar situações de intervenções armadas com envolvimento do país, uma vez que o Estatuto de Roma (documento constitutivo do TPI) permite investigações e julgamentos de Estados não membros quando as violações ocorrem em países-membros. O desacordo com a amplitude da jurisdição do TPI gerou medidas das diferentes administrações para limitar seu alcance.

Apesar de assinar o Estatuto nos dias finais de seu mandato, Bill Clinton (1993-2000) recomendou a não assinatura do documento e ações diplomáticas com vistas a rever os dispositivos do Estatuto em conferências de revisão. Já no início de seu governo, W. Bush anulou a assinatura do mecanismo e adotou inúmeras políticas de oposição ao TPI. Entre as preocupações, estava o alto envolvimento de forças militares estadunidenses na guerra contra o terror. O uso preventivo e preemptivo da força contra terroristas e rogue states e os meios adotados pelas Forças Armadas não combinavam com os constrangimentos de um tribunal internacional de justiça.

Medidas para reduzir os possíveis danos de um julgamento de pessoal estadunidense foram adotadas em negociações multilaterais (como as ações para garantir imunidade no âmbito do Conselho de Segurança) e bilaterais (como os acordos bilaterais de não entrega). Com cortes de ajuda econômica e militar, medidas legislativas também retaliavam países-membros do TPI.

Vale esclarecer que o Tribunal começou sua atuação em 2001 e, em seu início, os trabalhos da Promotoria do TPI se concentraram em casos encaminhados pelos próprios Estados-membros (todos remetidos por Estados africanos), não contrariando os interesses dos EUA. O contexto do sucesso de algumas das medidas para blindar oficiais estadunidenses, a atuação do mecanismo centrada em Estados periféricos e os constrangimentos de algumas das políticas de combate ao TPI (para interesses estratégicos de avançar cooperação com países-membros do mecanismo de justiça) foram o pano de fundo para o abrandamento da política de W. Bush, inclusive com a abstenção na aprovação de endereçamento do caso de Darfur, por parte do Conselho de Segurança, ao Tribunal.

Obama manteve uma política de colaboração seletiva com o Tribunal. Apoiou o encaminhamento do caso da Líbia para julgamento, financiou a busca e a entrega de indiciados. O presidente sempre deixou clara, porém, sua abordagem pragmática de colaboração com o TPI, em ações consistentes com os interesses do país e desde que com garantias para a imunidade de seu pessoal.

Contraditória e repleta de oscilações, a política dos Estados Unidos para o TPI teve reflexos também para a legitimidade e para a sobrevivência do mecanismo. Durante o mandato de Moreno Ocampo, primeiro promotor do TPI, a sobrevivência da organização deu a tônica de uma atuação caracterizada pelo não confronto com os Estados Unidos. À época, o Tribunal chegou a declarar que não investigaria a situação do Iraque. Coincidência ou não, após o anúncio, observou-se o abrandamento da oposição da administração W. Bush.

O início de investigações autônomas da Promotoria com foco em situações do continente africano gerou inúmeras críticas com relação à seletividade e ao uso político do tribunal. De fato, mesmo com a mudança da administração e com uma política de maior colaboração com o Tribunal, a administração Obama não escondia que o apoio ao mecanismo se limitava a ações de interesse e que não alcançassem seu pessoal.

Naquele período, o clima de tensão entre os países africanos e o TPI foi marcado, por um lado, por fortes manifestações de chefes de Estado (o sudanês Omar Al Bashir, o líbio Muammar Gaddafi, o queniano Uhuru Kenyatta) indiciados pelo mecanismo na União Africana. Foram convocadas reuniões, sugerindo a retirada em massa do TPI, o que acabou não se concretizando. Por outro, também foi marcado pela defesa do TPI e de seu papel no combate à impunidade por outros Estados-membros do órgão de justiça, muitos do próprio continente africano e também de organizações da sociedade civil.

O então secretário de Estado americano, Mike Pompeo, e a então procuradora-geral do TPI, Fatou Bensouda (Créditos: AFP)

O fato é que a primeira transição da Promotoria (em 2011) colocou Fatou Bensouda à frente das investigações. A gambiana assumiu o cargo cercada de expectativas com relação à direção que seria dada ao tratamento de denúncias que envolviam a atuação de potências em conflitos internacionais. Em 2016, iniciou investigações sobre crimes ocorridos na Geórgia (o que gerou a anulação da assinatura do TPI por parte da Rússia) e investigações preliminares em casos relativos a Afeganistão e Palestina.

Durante o primeiro ano da administração Trump (2017-2020), pareceu que a política para o TPI adotada na administração anterior seria mantida. O anúncio que formalizou em 2017 as investigações de supostos crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos (a partir de 1º de maio de 2003 em território afegão, e a partir de 1º de julho de 2002, em território de Estados signatários do Estatuto de Roma) no conflito do Afeganistão acarretou, porém, uma reação desproporcional do governo. Foram ressuscitadas medidas anti-TPI vistas no governo W. Bush, assim como medidas de retaliação não apenas contra a organização, mas também contra seus funcionários. Besouda, por exemplo, teve seu visto cancelado.

Em 2018, a sala de questões preliminares do TPI rejeitou o pedido da Promotoria de abertura de investigações sob o argumento de que o contexto local não permitiria seu avanço – ou seja, não seria alcançada a cooperação necessária para levar o procedimento adiante. A decisão foi comemorada pela administração Trump como uma vitória.

Em maio de 2020, a Câmara de Apelação do TPI anulou a decisão da primeira instância e autorizou as investigações do caso do Afeganistão. O então secretário de Estado, Mike Pompeo, manifestou-se sobre o que considerou insensatez da Corte e reforçou as ameaças de retaliação, alardeando o que julgou como “a melhor oportunidade de paz de uma geração” com o “acordo histórico de paz no Afeganistão”. Em declaração oficial, o TPI lamentou as ações dos Estados Unidos e declarou seu compromisso com a independência e a imparcialidade.

A ascensão de Joe Biden gerou expectativas de uma nova abordagem para o TPI. De fato, as medidas de Trump, especialmente dirigidas aos funcionários do TPI, foram suspensas. Mas não há clareza ainda com relação ao futuro da relação com o mecanismo. Pressões sobre a administração são esperadas. Think thanks, como a Heritage Foundation, têm promovido publicações que defendem políticas que permaneçam garantindo a blindagem de oficiais do país de julgamentos internacionais.

Um exemplo deste posicionamento é o artigo de Steven Groves publicado em maio de 2021 que equipara justiça do TPI aos julgamentos de americanos na corte do rei George III, o que foi listado como ofensa às liberdades fundamentais da Declaração de Independência. Nas palavras do autor, “depois de 250 anos, outro tribunal externo está trabalhando para emitir mandados de prisão para cidadãos americanos por supostos abusos contra prisioneiros no Afeganistão”.

De toda forma, o caos gerado com a concretização da retirada das tropas dos Estados Unidos e a retomada do poder pelo Talibã não é um cenário que favoreça as investigações do TPI. Não há que se esperar a colaboração do Talibã, ou mesmo que o país permaneça membro do Estatuto de Roma.

Investigações da Promotoria e a responsabilidade de autoridades dos EUA

Investigações da Promotoria dão conta de uma série de documentos, inclusive levados ao conhecimento do Congresso americano, que revelam detalhes de interrogatórios conduzidos pelas Forças Armadas e pela Agência Central de Inteligência (CIA, na sigla em inglês), no Afeganistão, com indícios de violações de direitos de prisioneiros. As primeiras comunicações e denúncias chegaram à Promotoria em junho de 2006, e as investigações começaram em 2007. Os Relatórios sobre as Atividades de Investigação avaliaram 125 de denúncias sobre crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos durante os conflitos, dentre eles:

– Crimes contra a humanidade e crimes de guerra cometidos pelo Talibã e pela afiliada Rede Haqqani;

– Crimes de guerra cometidos pelas Forças de Segurança Nacional Afegãs (ANSF, na sigla em inglês), especificamente, membros do Diretório Nacional para Segurança (NDS, na sigla em inglês) e da Polícia Nacional Afegãs (ANP, na sigla em inglês);

– Crimes de guerra cometidos (especialmente entre 2003 e 2004) por membros das Forças Armadas dos EUA e da CIA em território afegão e de outros Estados signatários do Estatuto de Roma.

Os crimes denunciados se referem ao tratamento dado por agentes do Estado a pessoas que foram detidas para interrogatório (54 prisioneiros das Forças Armadas e 24 pessoas interrogadas por agentes da CIA). Segundo as informações, agentes estadunidenses são suspeitos de cometerem crimes de guerra, como tortura e tratamento cruel, ultrajes contra a dignidade pessoal, estupro e outras formas de violência sexual durante os conflitos no Afeganistão. Esses crimes ocorreram no território do Afeganistão e em outros Estados-membros do Estatuto (a saber, Polônia, Romênia e Lituânia em instalações da CIA em seus territórios). As técnicas de interrogatório utilizadas em suspeitos de pertencerem a grupos terroristas, ou suspeitos de cooperar com eles, eram implementadas como parte de uma política para obter Inteligência acionável e parecem ter sido discutidas, revisadas e autorizadas nos Estados Unidos pelo Departamento da Defesa, CIA e outros órgãos do governo.

Jesse Kline: In Afghanistan we won the war, but lost the battle for human rights | National PostSoldados americanos levam presos afegãos suspeitos de serem talibãs, ou membros da Al-Qaeda, no Afeganistão, em 2003 (Crédito: Darren McCollester/AFP/Getty Images)

Com base nas informações disponíveis, dentre as técnicas de tortura aplicadas repetidamente estavam: confinamento solitário, privação e sobrecarga sensorial; exposição a altas e baixas temperaturas; afogamento simulado; privação de sono e de comida; e suspensão e outras posições de estresse. Além disso, atos como se despir na frente de outros, fotografias de nudez, molestamento, estupro e uma técnica de violação corporal conhecida como rectal feeding (consiste na penetração de um tubo na região retal para aplicação de líquidos e pastas alimentícias) também teriam sido praticadas.

Outro aspecto que foi ressaltado é o de que os crimes alegados foram cometidos com crueldade particular, o que envolveu a imposição de danos físicos e psicológicos por períodos prolongados, incluindo atos cometidos de forma a ofender valores culturais e religiosos, deixando as vítimas profundamente traumatizadas. Assim, foram empregados o uso e o aproveitamento de tabus sexuais, religiosos e culturais. Entre as práticas adotadas, estariam, por exemplo, uso de itens religiosos em situações humilhantes e ofensivas; detentos homens eram expostos nus às detentas, e vice-versa; e o uso de cachorros como forma de ameaça e intimidação. Na religião islâmica, estes animais são vistos como impuros.

O relato dá conta de que, até 2017, nenhuma investigação, ou processo, haviam sido abertos sobre os crimes alegadamente cometidos. Informa-se ainda que, embora os Estados Unidos tenham afirmado que fizeram inúmeras investigações, eles se concentraram em supostos atos cometidos por agressores diretos, ou por seus superiores imediatos. Nenhuma investigação examinou a responsabilidade daqueles que planejaram, autorizaram, ou supervisionaram as ações orientadas pelas técnicas de interrogatório que resultaram na alegada prática de crimes.

No Afeganistão, tampouco foram feitas investigações sobre crimes supostamente cometidos por forças internacionais, em consonância com o status dos acordos (de jurisdição exclusiva sobre crimes) em vigor entre o Afeganistão e os Estados Unidos, bem como entre o Afeganistão e os países que contribuem com as tropas da ISAF.

Interessante que Polônia, Romênia e Lituânia iniciaram suas próprias investigações. A Promotoria afirma que, no caso de autorização das investigações pela Câmara de Julgamento, procederão uma avaliação para determinar se abrangem as mesmas pessoas e condutas e se os processamentos são genuínos.

Nesse quadro, uma das coisas que mais chamam a atenção é o esforço que os Estados Unidos já empreenderam para afastar a jurisdição do TPI de seus cidadãos. De acordo com o Estatuto de Roma, sua jurisdição é complementar às nacionais. Isso significa que atua somente quando há incapacidade, ou falta de disposição, de um Estado de julgar as atrocidades cometidas por seus cidadãos. O país que alardeia a superioridade das suas instituições não tem condições, ou interesse, em confrontar abusos de direitos humanos cometidos pelos próprios agentes?

Diante de uma política que incorpora violações dos direitos humanos como tática que usa o terror para combater o terror, o escrutínio da justiça internacional é revelador de uma face obscura conhecida, mas que não pode ser reconhecida pelas lideranças estadunidenses. Com o potencial de iluminar essa situação, um tribunal com jurisdição para crimes internacionais permanece um problema.

 

* Marrielle Maia é doutora em Política Internacional pela Unicamp, professora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (PPGRI-UFU), coordenadora do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Direitos Humanos do Instituto de Economia e Relações Internacionais da UFU (NUPEDH-IERI/UFU) e coordenadora do Grupo sobre Direitos Humanos do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). Theo Nepomuceno Teixeira é graduando em Relações Internacionais pela UFU, pesquisador voluntário do NUPEDH-IERIUFU e do INCT-Ineu.

** Recebido em 2 set. 2021. Este Panorama EUA não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

 

Edição e revisão final: Tatiana Teixeira.

Assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti. Contato: tcarlotti@gmail.com.

 

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