China e Rússia

O que pensa Katherine Tai, a USTR do governo Biden?

Indicada de Biden (ao fundo) para USTR, Katherine Tai discursa em Wilmington (DE), em 11 dez. 2020 (Crédito: Chip Somodevilla, Getty/AFP)

Por Filipe Mendonça e Débora Lemos*

A política comercial sempre foi um ponto nevrálgico no jogo político doméstico estadunidense. Com impacto direto no emprego, na renda e na segurança, a maneira como os governos planejam e executam sua política comercial impacta direta e indiretamente o jogo eleitoral e a correlação de forças, sempre suscetíveis a mudanças, do Congresso estadunidense. Quase sempre um pivô destas relações, embora com centralidade variável a depender do governo, é o United States Trade Representative (USTR), o/a Representante do Comércio dos Estados Unidos.

Nascido nos anos 1960 como Special Trade Representative (STR), ou Representante Especial para o Comércio, sua função seria intermediar os diferentes interesses e objetivos do Executivo, dos legisladores e de grupos de interesse norte-americanos em torno do comércio exterior. A escolha do USTR é, portanto, um sinal relevante sobre como um determinado governo pretende executar sua política comercial exterior.

Longa experiência e discurso anti-China garantem aprovação

Joe Biden escolheu Katherine Tai como a 19ª USTR, empossada em 18 de março de 2021. Tai é bacharel em história na Universidade de Yale e, em 2001, graduou-se em direito pela Harvard Law School. Filha de imigrantes chineses, mas que cresceram em Taiwan, Tai é fluente em mandarim e já morou em Guangzhou, na China, onde ensinou inglês. A despeito de ter exercido advocacia no setor privado, Tai passou a maior parte de sua carreira no serviço público, com foco na diplomacia econômica internacional, monitoramento e fiscalização.

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Vice-presidente Kamala Harris dá posse a Katherine Tai como USTR, em 18 mar. 2020, acompanhada da mãe, Chungyui ‘Betty’ Tai, e do marido, Robert Skidmore (Crédito: Shawn Thew/Press Pool)

De 2007 a 2011, foi conselheira-geral associada do USTR e advogada líder dos Estados Unidos (EUA) nas disputas contra a China na Organização Mundial de Comércio (OMC). Em 2014, ingressou na equipe do Acordo de Parceria Transpacífico (TPP, na sigla em inglês) e ficou responsável pelos assuntos comerciais na região da Ásia-Pacífico, bem como por questões específicas de comércio agrícola e segurança alimentar, política de concorrência, compras governamentais, sanções e fiscalização do comércio.

Antes de sua confirmação unânime no Senado (98 votos a favor, 0 contra e duas abstenções), Tai também trabalhou no subcomitê comercial do Ways and Means (correspondente a Assuntos Tributários, ou Orçamentos e Tributos, em português), onde desempenhou papel fundamental na formulação da legislação comercial dos EUA, nas estratégias de negociação e em acordos bilaterais e multilaterais, incluindo o recém-renegociado United States-Mexico-Canada Trade Agreement (USMCA). Agora, como membro do gabinete do presidente, Katherine Tai é a principal assessora comercial, negociadora e porta-voz da política comercial dos EUA. Além disso, ela é primeira norte-americana de origem asiática e quarta mulher a ocupar o cargo.

Durante sua sabatina de nomeação no Senado, diversos senadores levantaram questões sobre qual seria a posição e a atuação do USTR sob sua direção. Em resposta, Tai afirmou que, de modo geral, caso fosse confirmada, a região da Ásia-Pacífico seria uma prioridade. E, como muita coisa mudou desde a assinatura do TPP, em 2016, ela se comprometeria a trabalhar em estreita colaboração com países com interesses semelhantes aos dos EUA na região da Ásia-Pacífico para aprofundar o relacionamento comercial de forma a beneficiar amplamente os trabalhadores norte-americanos.

Em resposta a uma das perguntas do senador Chuck Grassley (R-IA), Tai afirmou que “os subsídios chineses prejudicaram os produtores americanos e colocaram em risco a resiliência das cadeias de abastecimento americanas em vários setores, incluindo aminoácidos”. Tai conclui com um duro recado aos chineses: “Se confirmada, terei como prioridade abordar toda a gama de práticas comerciais desleais da China que prejudicam nossos agricultores e trabalhadores”.

Para além da questão dos subsídios chineses, pontos como roubo de propriedade intelectual e empresas estatais que adotam práticas desleais de comércio ganharam destaque na plataforma da nova USTR. De acordo com o negociador comercial da administração Trump, Clete Willems, lidar com a China não será uma tarefa simples, mas parece ser consensual entre democratas e republicanos que Tai terá capacidade de defender os interesses dos EUA contra o país, ajudando a manter uma linha dura contra Pequim.

Experiência não falta. Tai já trabalhou como principal executora dos EUA contra as práticas comerciais desleais da China e, conforme afirmou na cerimônia de abertura do Comitê de Finanças do Senado: “[…] sei, em primeira mão, como é extremamente importante termos um plano estratégico e coerente para responsabilizar a China por suas promessas e competir efetivamente com seu modelo de economia dirigida pelo Estado”. Para Tai, “a China é simultaneamente um rival, um parceiro comercial e um ator descomunal, de cuja cooperação também precisaremos para enfrentar certos desafios globais”.

Continuidade na política comercial para a China

Em relação à administração anterior, Tai reconheceu publicamente que o governo Trump “não estava 100% errado em suas políticas comerciais”, o que mostra que, a despeito das divergências latentes entre as plataformas de governo de Biden e Trump, a política comercial dos Estados Unidos tem características bipartidárias. A administração Biden reconhece que as práticas comerciais coercitivas e injustas da China prejudicam os trabalhadores norte-americanos, ameaçam a vantagem tecnológica dos EUA, enfraquecem a resiliência de sua cadeia de suprimentos e minam seus interesses nacionais. Deste modo, para enfrentar o desafio chinês, a administração Biden, sob liderança de Tai, propôs-se a conduzir uma revisão abrangente da política comercial dos EUA em relação a Pequim como parte do desenvolvimento de sua estratégia geral para a China.

No que concerne ao acordo comercial entre Estados Unidos e China, Tai afirmou que utilizará as ferramentas à sua disposição para assegurar que a China cumpra as obrigações do acordo, comprometendo-se a garantir que o mercado chinês “esteja aberto e permaneça aberto aos produtos dos EUA, em particular aos agrícolas”. Afirmou ainda ser partidária de uma “revisão integral sobre a China” e da estratégia dos Estados Unidos com relação ao país asiático.

Isso posto, Tai aparenta estar à vontade para confrontar agressivamente a China, quando necessário. O equilíbrio não é fácil, porém, já que há forte pressão, por parte dos setores que se beneficiam de relações harmoniosas com a China, para uma revisão do uso de tarifas como uma ferramenta para lidar com práticas comerciais desleais.

A Contract With Big Business And Wealthy Citizens | by Dave Olsen | Dialogue & Discourse | Medium

O então USTR, Robert Lighthizer, Katherine Tai, o então secretário do Tesouro dos EUA, Steven Mnuchin (à esq.), reúnem-se com o vice-premiê chinês, Liu He, em 3 abr. 2019, na sede do USTR, em Washington, D.C. (Crédito: Andrea Hanks/Casa Branca)

Outro aspecto destacado pela atual USTR foi o desejo de pôr fim ao conflito entre Estados Unidos e União Europeia sobre os subsídios ao setor aeronáutico. Especificamente sobre o litígio da Boeing/Airbus na OMC, em andamento há mais de 15 anos, Tai visa a solucionar a disputa de forma que garanta que a Boeing e seus trabalhadores possam competir em igualdade de condições. Já no que diz respeito à OMC, a nova administração pretende “aproveitar as oportunidades apresentadas para tomar um olhar renovado para reformar a OMC e habilitá-la a ser uma força para criar um mundo melhor e mais justo”.

A proposta norte-americana de reformar a organização, que ganhou uma pauta ainda maior no governo Trump, é endossada por Tai, que afirmou que trabalhará para “reengajar parceiros com ideias semelhantes que reconhecem a importância e a necessidade da reforma da OMC”. Na sua visão, o Órgão de Apelação da organização extrapolou sua autoridade e errou ao interpretar acordos em diversos contenciosos, além de falhar no cumprimento das regras existentes criadas para garantir que as disputas sejam resolvidas em tempo hábil. Em suas palavras: “reformas são necessárias para garantir que as causas subjacentes de tais problemas não voltem à superfície e que o Órgão de Apelação não diminua os direitos e as obrigações dos membros da OMC”.

Papel vital para aprovação bipartidária do USMCA

Ainda na via multilateral, dois anos antes de sua nomeação ao USTR, no governo Trump, Tai era membro integrante do grupo que renegociou duramente o Acordo de Livre-Comércio da América do Norte (Nafta, na sigla em inglês). Em tal renegociação, coube a ela equilibrar as conflitantes demandas de sindicatos, grupos ambientais, lobistas corporativos e do governo, desempenhando um papel fundamental na elaboração das reivindicações democratas no texto final. Com isso, ajudou a fechar um acordo que foi aprovado em ambas as casas do Congresso por ampla margem. Nas palavras do representante (deputado) Earl Blumenauer (D-OR), presidente do subcomitê comercial do Ways and Means: “Katherine desempenhou um papel inestimável na liderança da equipe do Ways and Means, enquanto trabalhava com membros e grupos externos no Nafta renegociado. Ela é experiente, paciente e criativa”.

Destarte, certos de que Tai desempenharia um papel vital em garantir que os termos do USMCA fossem cumpridos, os democratas do Congresso lutaram por sua nomeação. Visando a cumprir totalmente a nova versão do Nafta, como afirmado pela então USTR ao Senado, foi estabelecido o primeiro painel de disputa do USMCA para fazer cumprir os compromissos do Canadá no setor de laticínios. Nele, pretende-se revisar as medidas adotadas pelo governo do Canadá que, segundo acusações, prejudicam a capacidade dos exportadores de laticínios norte-americanos. Conforme Tai: “[o] lançamento do primeiro pedido de painel sob o acordo garantirá que [a] indústria [norte-americana] de laticínios e seus trabalhadores possam aproveitar novas oportunidades sob o USMCA para comercializar e vender produtos dos EUA para os consumidores canadenses”.

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Tai promete pulso firme com Canadá e México, parceiros dos Estados Unidos no USMCA (Crédito: GettyImages)

Já em relação à covid-19, a USTR divulgou em maio um comunicado, anunciando o apoio do governo Biden-Kamala Harris à dispensa das proteções de propriedade intelectual para as vacinas. Para Tai, “tempos extraordinários exigem liderança, comunicação e criatividade extraordinárias. Crises extraordinárias desafiam todos nós a sair de nossos moldes confortáveis, do nosso pensamento imediato, dos nossos hábitos instintivos”.

De modo geral, é possível dizer que Tai pretende explorar tanto as vias multilaterais quanto bilaterais de negociação, atuando em consonância com objetivos e prioridades do governo Biden. Ainda é cedo para detalhar como estas ideias se materializarão em ações, mas não é exagero dizer que Tai será peça importante na compreensão da formulação da política comercial dos Estados Unidos na atual gestão. Passará por ela a tentativa de reconstrução da imagem dos Estados Unidos no sistema multilateral de comércio, o cumprimento dos termos renovados do USMCA, a reconstrução das alianças e parcerias internacionais dos EUA, a contenção da China e o reengajamento dos Estados Unidos com instituições internacionais, buscando políticas comerciais que sejam ambiciosas na obtenção de um apoio bipartidário robusto.

 

* Filipe Mendonça é professor do Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). É autor do livro Poder e Comércio: a política comercial dos Estados Unidos (Editora Unesp, 2018), reconhecido com o Prêmio de Melhor Obra Científica no Concurso Brasileiro ANPOCS de Obras Científicas e Teses Universitárias em Ciências Sociais – Edição 2019. Contato: mendonca@ufu.br .

Débora Lemos é graduada em Relações Internacionais pela UFU. Foi bolsista de Iniciação Científica pelo Instituto de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu).

** Recebido em 24 ago. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do Opeu, ou do INCT-INEU.

 

Edição e revisão final: Tatiana Teixeira.

Assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti. Contato: tcarlotti@gmail.com.

 

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