Política Doméstica

Discriminação como política de direitos: Suprema Corte e a normalização do absurdo

Suprema Corte e o teatro dos absurdos (Crédito: Phil Roeder/Flickr)

Por Celly Cook Inatomi* [Informe OPEU]

Parece que a Suprema Corte dos Estados Unidos está disposta a voltar aos tempos em que o país era um conjunto de estados confederados, sem uma Constituição que unificasse todos enquanto cidadãos e se esquecendo das décadas de luta por direitos civis dentro do país. Dentre uma série de decisões controversas tomadas recentemente, a maioria dos juízes da Suprema Corte, em uma decisão de 6 votos a 3, estabeleceu que a lei antidiscriminação do estado do Colorado não pode impedir uma webdesigner de discriminar os clientes com quem quer trabalhar por conta de sua orientação sexual. O argumento: uma interpretação radicalmente conservadora da liberdade de expressão.

Lorie Smith, proprietária de uma empresa de design gráfico em Littleton, no estado do Colorado, antecipou-se a uma possível punição e reivindicou na Justiça o direito de discriminar, chamado por ela e pela organização conservadora que a representa no caso, a Alliance Defending Freedom, de “liberdade de expressão”. Smith quer expandir seu negócio oferecendo serviços de criação de websites para casamentos, mas quer deixar claro em seu site que fará isso apenas para casais heterossexuais, por conta de sua crença religiosa. Temendo punições do estado do Colorado, devido a uma lei que proíbe a discriminação contra minorias, a designer entrou na Justiça, chegando até a Suprema Corte dos Estados Unidos.

Em sua petição, mobilizou uma série de exemplos para justificar que seria absurdo obrigar uma pessoa a professar uma opinião imposta pelo estado, dando inclusive jurisprudências que favoreceram progressistas no passado. Segundo Smith, seu trabalho é uma expressão criativa, que passa mensagens por meio de textos, símbolos e outros elementos gráficos. Logo, uma lei que pode impedi-la de expressar seus pensamentos e opiniões, ou que a obriga a propagar mensagens com as quais não concorda, viola a Primeira Emenda da Constituição. A maioria conservadora da Suprema Corte concordou com ela.

O voto da maioria foi dado por Neil Gorsuch, primeiro nomeado de Donald Trump para a Corte. Ele foi seguido pelos demais juízes conservadores: Clarence Thomas, John Roberts, Samuel Alito, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett. Segundo Gorsuch, a pergunta central trazida por Lorie Smith e à qual a Corte deveria se concentrar em responder é se o estado pode forçar um indivíduo a fornecer seus serviços criativos e artísticos para propagar mensagens com as quais não concorda, sendo obrigado a abandonar sua consciência e suas crenças por medo de punição. Para ele, qualquer outra pergunta ou argumento que fuja dessa questão central, levantando, por exemplo, argumentos acerca de possíveis e futuras discriminações de teor racial, seria pura confabulação, ou, em suas palavras, “pura ficção” – uma dura crítica ao voto dissidente dado por Sonia Sotomayor, acompanhada por Elena Kagan e Ketanji Brown Jackson.

ImagemA ala conservadora da Suprema Corte americana (em sentido horário): Samuel Alito, Clarence Thomas, Brett Kavanaugh, John Roberts, Neil Gorsuch e Amy Coney Barrett (Fonte: The Harvard Gazette)

Segundo Sotomayor, não existe na Constituição nenhum direito à recusa de serviços para grupos desfavorecidos. Para ela, a lei antidiscriminação do Colorado, assim como leis semelhantes adotadas por mais da metade dos estados americanos, proíbe não a liberdade de expressão, mas a discriminação em razão da orientação sexual, gênero, raça, nacionalidade ou religião. A lei não regula ou impõe um determinado discurso. A webdesigner continuaria, assim, livre sob a lei estadual para decidir que mensagens incluir ou não em seu trabalho, mas o que ela não poderia fazer é recusar de antemão atender a um público específico, especialmente de grupos socialmente desfavorecidos. Como enfatizou a juíza, o principal efeito simbólico da decisão que estava sendo dada era o de marcar gays e lésbicas como cidadãos de segunda classe.

Casos muito parecidos já sinalizavam que a atuação da Suprema Corte iria por esse caminho. O famoso caso do boleiro, Masterpiece Cakeshop v. Colorado Civil Rights Commission (2018), do mesmo estado, serviu para mostrar que a maioria conservadora da Suprema Corte estava disposta a pesar mais o direito de religiosos cristãos na balança com os direitos civis de pessoas LGBTQs. Em outro caso, ainda, Boston v. Clayton County (2019), que pode ser considerado uma vitória para o movimento gay, Gorsuch deixou claro que, caso estivesse envolvida uma questão de liberdade religiosa, outra decisão precisaria ser tomada. O caso tratava da discriminação de pessoas transgêneros no ambiente de trabalho, mas, como o empregador acusado não argumentou em termos religiosos, a discriminação foi entendida como inconstitucional.

O caso recente apresenta, no entanto, algumas diferenças centrais. Primeiramente, chama atenção o fato de a Suprema Corte se antecipar a um evento que ainda não ocorreu para garantir à webdesigner o direito de discriminar futuramente sem ser importunada pela lei estadual. Em segundo lugar, e ainda mais instigante, é um dos argumentos utilizados por Gorsuch para criticar o voto dissidente dado por Sonia Sotomayor. Segundo ele, o voto dissidente quer ver benevolência na lei estadual antidiscriminatória apenas porque as juízas em questão concordam com o conteúdo da lei, não enxergando que ela pode ser extremamente prejudicial para a liberdade de expressão. Para Gorsuch, as juízas em dissenso estão apenas dizendo que se deve confiar na boa-fé do Legislativo estadual, porque elas concordam com o conteúdo da lei, e não porque a lei é de fato promotora dos valores de liberdade postos na Constituição.

Lorie Smith, proprietária do site 303 Creative (Fonte: Allianxce Defending Freedom)

Esse argumento de Gorsuch é bastante curioso quando comparamos com o voto da maioria dos conservadores dado nas questões sobre racismo nos processos de gerrymandering estaduais. Aparentemente, os dois temas parecem não se tocar, mas o fazem de modo bastante revelador. Em decisões sobre redistritamentos eleitorais estaduais, como Gill v. Whitford (2018) e Rucho v. Common Cause (2019), a maioria conservadora disse que seria preciso confiar na boa-fé do Legislativo dos estados, e não partir do pressuposto de que estavam fazendo redistritamentos eleitorais racistas. Com isso, poderíamos voltar para Gorsuch a acusação feita a Sotomayor: a boa-fé do Legislativo estadual deve ser valorizada apenas quando se concorda com o conteúdo da lei em discussão? Quando se deve confiar na boa vontade desse Poder?

Como já apontado por estudiosos, os direitos da Primeira Emenda da Constituição vêm sendo o carro-chefe de uma política de direitos que pretende transformar o sentido dos direitos civis no país, que fora firmado a partir dos anos 1960, sobretudo, com o movimento negro. No novo léxico, direitos como a liberdade de expressão e de religião são tomados como absolutos e estruturantes da democracia estadunidense, ainda que eles atropelem outros direitos arduamente conquistados ao longo da história, como os direitos civis de grupos minoritários no país. Esse argumento, inclusive, de que a liberdade de expressão deve ser absoluta, devendo-se punir apenas a conduta dos indivíduos, é antiga e faz parte do arsenal de justificativas daqueles que defendiam uma sociedade de “separados, mas iguais”, como o que acontecia na era Jim Crow.

Aliás, é sempre bom lembrar a oposição contundente e marcante dos conservadores a Brown v. Board of Education, que deu fim à segregação racial nos Estados Unidos. Também é bom frisar a impressionante semelhança entre as ideias hoje defendidas pela maioria conservadora da Suprema Corte no caso da webdesigner e as ideias propagadas pelo juiz conservador Robert Bork nos anos 1960 contra decisões judiciais que visavam acolocar um fim à segregação racial. Para Gorsuch, qualquer expressão ou discurso, por mais abominável que seja, deve ser preservado, como parte de um dos princípios mais importantes para o país, a liberdade. Em seu discurso, a resposta a esses problemas é sempre a tolerância e não a coerção. Para Bork, de forma semelhante, deve-se sempre pesar os custos à liberdade que serão pagos em nome de uma legislação que visa a homogeneizar a moral de um povo, por mais feia e abominável que fosse a discriminação racial.

File:President Ronald Reagan announces the nomination of Robert Bork.jpg - Wikimedia Commons(Arquivo) O então presidente Ronald Reagan anuncia a indicação de Robert Bork à Suprema Corte, na sala de imprensa da Casa Branca, em As Associate Justice of Supreme Court in The Press Room, em Washington, D.C., em 1º jul. 1987 (Crédito: Arquivos Nacionais/Coleção da Casa Branca)

Robert Bork chegou a ser indicado para a Suprema Corte pelo presidente republicano Ronald Reagan, mas foi vetado pelo Senado. O veto se justificou, sobretudo, por seus ideais que acabavam permitindo a continuidade de uma sociedade institucionalmente segregada, racista e violenta. Hoje, esses ideais estão vivos, sob respaldo da maioria conservadora sentada na mais alta Corte do país, e com uma mobilização bastante retrógrada dos direitos da Primeira Emenda. Diante disso fica a pergunta: qual é o limite do retrocesso para essa Suprema Corte? O esvaziamento que ela já promoveu da Lei de Direitos de Voto de 1965, do direito ao aborto, das ações afirmativas e agora das leis antidiscriminatórias são exemplos mais do que claros de que esse limite parece não existir.

 

Celly Cook Inatomi é colunista do Opeu e pesquisadora colaboradora da Unicamp. Especialista em relações entre política, direito e judiciário, é autora de As análises políticas sobre o Poder Judiciário: Lições da ciência política norte-americana (Editora Unicamp, 2020). Contato: celoca05@yahoo.com.br.

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** Edição e revisão: Tatiana Teixeira. Recebido em 7 jul. 2023. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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