Política Doméstica

Originalismo e resgate do Éden

Por Celly Cook Inatomi*

“O direito é a colocação de aduelas em um riacho”, afirmou o historiador jurídico Robert W. Gordon em 2017, ao analisar o originalismo, um projeto de interpretação da Constituição que vem sendo amplamente defendido e propagado por setores conservadores nos Estados Unidos. A afirmação cumpre bem o papel de ajudar a mostrar que muito do que se tem passado por “história originalista” é tão intencionado e tão notoriamente desonesto que dificilmente poderia pretender ser algo além disso.

Como diversos outros advogados, os juristas da nova direita também fazem seus usos seletivos da história, procurando soluções oficiais, ou autorizadas, para embasar suas reivindicações e interpretações constitucionais. E, ao fazerem isso, eles têm de escolher entre diversas fontes de autoridade e de significado, bem como entre diversas fontes de abstração, de momentos e de contextos de aplicação. Deveriam, necessariamente, dialogar com as evidências contrárias, com os fatores controversos, justamente para sustentarem sua visão e direcionarem o rio na direção desejada.

Contudo, esses mesmos juristas da nova direita não admitem que eles também fazem usos seletivos da história. Não falam do caráter extremamente variável da localização temporal das “origens”, que depende do tema e dos interesses conservadores em questão. Dizem, ao contrário, que suas interpretações são as únicas possíveis e verdadeiras, construindo uma espécie de “fundamentalismo constitucional” (Killian, 1959). E, em vez de banharem seus adeptos na história americana, fazem justamente o oposto, uma espécie de “história sem historicismo”, como bem denominou Stephen Griffin. Escapam da própria história, fogem das controvérsias e da contingência, ignoram o desenvolvimento e as mudanças sociais, amenizam, ou reinterpretam os elementos dolorosos e vergonhosos do passado, e desdenham das agitações da modernidade.

A ideia que procuram propagar é a de que eles não são como os outros juristas. Eles não escolhem entre diversas fontes: simplesmente buscam na história a única fonte que deveria ser buscada, a Constituição dita “original”. Argumentam que defendem um governo guiado pelas leis e não pelo desejo caprichoso dos homens, não dependendo, assim, da escolha humana. A Lei Maior, a Constituição, teria sido feita em uníssono pelos Pais Fundadores, em um momento de iluminação e amor profundo pela liberdade humana, não devendo, portanto, ser adulterada sob nenhuma condição.

Com isso, não dialogam e nem discutem com as visões e fatores controversos existentes, e sequer resgatam as controvérsias postas entre os próprios Pais Fundadores. Simplesmente rechaçam tais fatores, em nome de um passado “original”, que teria sido autoritariamente violado por governantes e juízes progressistas ao longo da história americana.

Liberdade individual acima de tudo

Desde que Donald Trump ascendeu à Presidência da República, esse tipo de discurso e de comportamento constitucional dos setores conservadores vem se tornando cada vez mais robusto. Com suas promessas de retorno a um passado americano idílico – de revalorização das tradições e costumes cristãos, bem como de reconstrução de uma sociedade econômica de laissez-faire –, Trump vem dando respaldos político-institucionais para aqueles que defendem uma visão originalista ou fundamentalista da Constituição.

E uma das principais manifestações dessa investida aparece de modo bastante claro no “novo” movimento de direitos civis que o governo e seus apoiadores procuram empreender. Trata-se de um movimento diferente daquele que ocorrera nos anos 1960, ao passo que procura “reeducar” os liberais dentro do que acreditam ser a tradição liberal americana, exigindo respeito à verdadeira liberdade, que é a liberdade individual. Nada deve prevalecer sobre ela.

O objetivo desse movimento de direitos civis conservador seria o de anular décadas do que chamam de supremacia judicial e de atuação inconstitucional de governos federais anteriores, que impuseram legislações e decisões judiciais que violaram a Constituição e os direitos civis dos cidadãos americanos. Nessa perspectiva, o que fora feito com base nas políticas de bem-estar social do New Deal, passando pelas importantes medidas para a igualdade conquistadas com as leis de direitos civis (Civil Righs Acts), bem como pelas sucessivas decisões dessegregacionistas e progressistas da Suprema Corte, foram invenções de direitos que acabaram por violar a liberdade individual dos homens.

Como afirmou Robert Bork, um juiz conservador de grande destaque no movimento conservador, por mais abominável que seja, por exemplo, o discurso racista, deve-se levar em conta os custos à liberdade individual que são pagos em nome de uma legislação federal que busca homogeneizar a moralidade de um povo. Para ele, assim como para alguns defensores do originalismo, a pauta central não deve ser o racismo, ou a discriminação de qualquer tipo, como se fez durante os anos 1960, mas sim a liberdade como estando acima da igualdade a qualquer custo, ou simplesmente a defesa das liberdades garantidas originalmente pela Constituição americana, inclusive a liberdade de discriminar. A mesma argumentação valeria hoje contra aqueles que defendem direitos das mulheres, homossexuais e de estrangeiros. A ideia central é de que não cabe ao governo federal impor um comportamento não discriminatório sobre os indivíduos, ainda que tal comportamento seja moralmente desejável.

Partindo dessa perspectiva, os conservadores vêm ocupando diversos espaços de contestação e de construção de significados dos direitos civis, seja na sociedade civil (especialmente por intermédio da educação e da cultura), seja nas políticas estaduais e no Congresso, seja nas cortes. E, como mostram Theda Skocpol e Vanessa Williamson (2016), ao analisarem em profundidade a atuação dos membros do Tea Party americano, eles têm-se organizado e se mobilizado de forma bastante efetiva nesses diferentes espaços de atuação.

Ação conservadora nos diferentes espaços sociais

No plano educacional, os conservadores vêm agindo há décadas como verdadeiros “cães de guarda” dos valores tradicionais americanos e dos significados originais da Constituição, como bem apontou Christopher Schmidt (2011a, b, c). E não é por acaso que a educação foi escolhida por Trump como um dos palcos principais para a construção do seu novo movimento de direitos civis. Pela educação, os conservadores procuram promover uma espécie de alfabetização constitucional da população, incentivando a leitura e o estudo da Constituição desde cedo, por meio da realização de encontros locais e nacionais, e por meio de campanhas de valorização da Constituição. O objetivo central é fazer com que os americanos se eduquem, saibam quais são seus direitos e aprendam também o que o governo federal pode, ou não, fazer a partir de suas atribuições constitucionais – tudo segundo o pensamento conservador obviamente. Skocpol e Williamson relatam, inclusive, que os movimentos conservadores incentivam a distribuição de exemplares de bolso da Constituição, para que os americanos a tenham sob um braço, e a Bíblia, sob o outro.

No plano da publicidade e propaganda, os esforços são bastante robustos, utilizando-se de programas de televisão e de outros meios de comunicação para a propagação dos verdadeiros valores da Constituição. Glenn Edward Lee Beck, personalidade midiática, comentador político e uma das figuras mais ativistas do Tea Party americano, é um dos inúmeros responsáveis por esse movimento, chamando seus seguidores a se reunirem regulamente com suas famílias e vizinhos para discutir a importância dos Pais Fundadores da Constituição.

George Washington assina a Constituição americana na Convenção Constitucional de 1787 (tela de Junius Brutus)

Para Beck, ler a Constituição é como ler a Bíblia, ao passo que ela está viva e somente vem à vida quando você precisa dela. Sua atitude, como a de muitos outros, é de total reverência (por vezes até mesmo emocionada) à geração fundadora, apontando a necessidade de os americanos de se reapoderarem da Constituição. Nela estariam todas as respostas, sempre muito claras e consistentes para os dilemas da América moderna.

No plano político estadual e nacional, as táticas vão desde a elaboração de leis para garantir a soberania dos estados, até tentativas de anulação de leis federais que, em seu julgamento, violam a Constituição. Alguns governos estaduais e até mesmo juízes atuam com rebeldia às leis federais e às decisões da Suprema Corte, recusando-se a aplicá-las em seus estados. Chegaram, inclusive, a assinar um manifesto contra a Suprema Corte, Manhattan Declaration, chamando todos a uma desobediência civil contra a “supremacia judicial”.

No plano nacional, demandam que os congressistas conheçam a Constituição, transformando os períodos de eleições em um debate sobre o escopo apropriado do poder governamental. Deram início a uma série de seminários feitos para os membros do Congresso, como os “Conservative Constitutional Seminars”, cujo primeiro encontro foi liderado na época por ninguém menos que Antonin Scalia, que foi juiz da Suprema Corte, ícone do originalismo, e um dos principais ídolos do movimento conservador.

No plano judicial, a mobilização conservadora vem de encontro direto às táticas do governo Trump, tornando-se cada vez mais aguerrida e articulada. Christopher Schmidt (2015) analisa as razões de os conservadores apostarem há décadas na mobilização judicial, mesmo saindo derrotados sucessivas vezes, especialmente nas cortes federais e na Suprema Corte. O autor nos mostra que a “fé” dos conservadores no processo judicial, que vem desde os anos 1960, tem colhido seus frutos nos dias de hoje, e que isso se deu, principalmente, em função da tática de tradução do linguajar moralista, racista e discriminatório para a linguagem constitucional do liberalismo clássico.

Segundo o mesmo autor, os conservadores não utilizam mais, por exemplo, a defesa pura e simples da segregação, ou da discriminação, mas sim da linguagem dos princípios constitucionais, calcados, sobretudo, no direito dos estados e nas liberdades individuais, como visto anteriormente com o pensamento do juiz conservador Robert Bork. Sob essa abordagem, não defendem mais diretamente o período Jim Crow como uma política social, mas como um subproduto de uma escolha constitucionalmente protegida, unindo a abordagem das liberdades individuais e dos estados ao constitucionalismo segregacionista. Seria, para eles, uma linguagem mais politicamente aceitável de resistir aos direitos civis dos progressistas.

Esse discurso possibilitou algumas vitórias duradouras para o movimento conservador, vitórias estas que não são geralmente analisadas pelos estudiosos dos movimentos por direitos civis dos anos 1960. Estes insistem apenas em mostrar que as leis federais, o Judiciário Federal e a Suprema Corte do país atuaram em prol da dessegregação e dos direitos civis das minorias excluídas. Segundo Schmidt (2016), essas vitórias conservadoras foram possíveis justamente em função da aprendizagem e do uso da linguagem constitucional pelos movimentos conservadores. Eles se conformaram aparentemente às leis federais e às decisões judiciais de dessegregação, mas conseguiram das cortes a legitimação da autoridade estadual para implementar tais normativas da maneira que quisessem e no tempo que escolhessem.

Além disso, por meio do uso exaustivo da mobilização judicial nas cortes locais e estaduais, continuaram a atuar de forma rebelde às normativas federais, visando a objetivos de curto prazo, tais como: intimidar os protestantes por direitos civis dentro de seus estados; forçá-los a pagar fiança, ou a irem para a cadeia por algum tempo; além de forçar os grupos defensores de direitos civis a investirem tempo e dinheiro para se defenderem na Justiça de acusações de desordem pública.

A tática sempre foi, portanto, de transformar questões de ordem moral que nunca iriam mudar para os conservadores em uma questão de litigação eterna, ou de eterna implementação a conta gotas. A partir disso, fizeram todo o tipo de torção jurídica na 14ª Emenda e em outros marcos jurídicos dos anos 1950 e 1960 (como a famigerada decisão Brown v. Board of Education de 1954; o Civil Rights Act, de 1964; o Voting Rights Act, de 1965; e o Faire Housing Act, de 1968). Conseguiram respostas bastante nebulosas da Suprema Corte no que tange aos processos de implementação dessas normativas.

Como mostrou Risa L. Goluboff (2007), isso possibilitou que dilemas morais sérios, como a segregação racial, fossem transformados em puros legalismos técnicos, torcidos e retorcidos para se encaixarem dentro dos valores da liberdade individual e do direito dos estados. A ideia aceita e acordada era a de que o governo poderia até interferir nas ações do Estado nacional, mas esbarraria na autonomia dos estados para a implementação de suas normas, e não poderia jamais interferir nas ações de indivíduos e em suas propriedades privadas para lhes ditar meios morais de como agir.

Legado trumpista

O que vemos acontecendo hoje, com a vitória eleitoral de Trump e as fortes mobilizações dos setores conservadores, seriam, portanto, muito mais do que um backlash contra os direitos civis de liberais e progressistas. Frente a isso, ao analisar o regime político e as relações institucionais da época do movimento dos direitos civis, Bruce Ackerman (2014) defende que devemos analisar as normativas de direitos dos anos 1960 não apenas como vitórias definitivas dos liberais progressistas, mas como processos de construção de acordos e conciliações entre setores divergentes, apontando que os conservadores também obtiveram vitórias. Para o autor, esses marcos jurídicos devem ser entendidos da mesma maneira que entendemos outros episódios de recriação constitucional.

Mas, como ressaltou Gordon em trabalho já citado, o projeto originalista, que está na raiz dos movimentos conservadores, possui duas audiências: uma popular, e a outra, formada pela elite jurídica. E Trump vem acenando para as duas, embora ainda tenhamos de verificar como as novas elites jurídicas vêm interpretando de fato a Constituição. Além, claramente, da importância simbólica/concreta das falas politicamente incorretas de Trump, que dão legitimidade e autoridade para a defesa pública de coisas que antes seriam vergonhosas e até mesmo abomináveis, o presidente vem procurando, de fato, reverter desde o primeiro ano de seu governo, toda e qualquer política de caráter liberal progressista. E isso se dá sempre sob a justificativa de defesa das liberdades individuais e do direito dos estados, dando força para o originalismo popular.

Com isso, vemos sucessivas investidas do Executivo Federal contra programas como o Obamacare, as políticas de cotas e medidas contra o discurso de ódio em universidades, as políticas de gênero nas escolas, as políticas de reforma de policiais acusados de racismo institucional, as políticas de memória sobre a Guerra Civil americana e as políticas integração de proteção do imigrante ilegal.

Além dessas tentativas via políticas diretas do Executivo Federal, os respaldos político-institucionais de Trump aos conservadores originalistas também têm-se dado na arena judicial, na esperança de reversão de entendimentos jurisprudenciais históricos da Suprema Corte, sobretudo, nas questões referentes ao aborto e ao casamento homoafetivo. Para isso, Trump alcançou, em comparação com presidentes anteriores, a maior cota de nomeações de juízes para o Judiciário Federal, além de emplacar dois juízes na Suprema Corte, conseguindo alcançar uma maioria conservadora. E um ponto comum entre a maioria dos juízes nomeados é a defesa de um ultraconservadorismo político e do originalismo como método de interpretação constitucional, além de um histórico de frases, depoimentos, ou comportamentos polêmicos.

A questão que nos cabe investigar é como que essa nova elite jurídica nomeada por Trump vem interpretando de fato a Constituição. Embora o presidente tenha nomeado muitos juízes conservadores para o Judiciário Federal, ele não reverteu nenhuma corte liberal em conservadora. E estudiosos mostraram que a Suprema Corte vem atuando de maneira bastante equilibrada quando recebem processos vindos de cortes liberais, ou conservadoras. Isso pelo menos até as nomeações feitas por Trump. Ao mesmo tempo, o fato de os novos juízes externarem falas e posicionamentos fundamentalistas com relação à Constituição e de terem sido escolhidos justamente por isso, coloca dúvidas quanto à esperança de Robert Gordon com o fracasso do projeto originalista entre a elite jurídica conservadora, que, até a ascensão de Trump, veio rejeitando na prática o uso de argumentos originalistas em suas decisões.

Algo mudou drasticamente na democracia americana. E até mesmo os acordos de tolerância feitos no passado, entre conservadores e liberais, parecem não mais se sustentar. Esse fenômeno precisa ser analisado e compreendido, para que não se corra o risco de voltarmos a um Éden inexistente.

 

Referências

ACKERMAN, Bruce. We the People. Vol 3 – The Civil Rights Revolution. Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 2014.

GORDON, Robert. Originalism and Nostalgic Traditionalism. In: ______. Taming The Past: Essays on History and History of Law. New York: Cambridge University Press, 2017. p. 369.

KILLIAN, Lewis M. The Purge of an Agitator. Social Problems, 7, 1959.

GOLUBOFF, Risa L. The Lost Promise of Civil Rights. Massachusetts: Harvard University Press, 2007.

SCHMIDT, Christopher W. Conceptions of Law in the Civil Rights Movement. UC Irvine Law Review, 1:3, Sept. 2011a. p. 641-76.

______. The Tea Party and the Constitution. Hastings Constitutional Law Quarterly, 39, March 2011b. p. 193-252.

______. Popular Constitutionalism on the Right: Lessons from the Tea Party. Denver University Law Review, 88:3, June 2011c. p. 523-57.

______. Litigating Against the Civil Rights Movement. University of Colorado Law Review, 86, 2015. p. 1173-220.

______. Beyond Backlash: Conservatism and the Civil Rights Movement. American Journal of Legal History, 56, 2016. p. 179-94.

SKOCPOL, Theda; WILLIAMSON, Vanessa. The Tea Party and the Remaking of the Republican Conservatism. New York: Oxford University Press, 2016.

 

* Celly Cook Inatomi é doutora em Ciência Política pela Unicamp, pesquisadora colaboradora do INCT-INEU e coordenadora do Grupo de Estudos sobre Mobilização do Direito no IFCH/Unicamp.

** Este Informe é uma versão reduzida do trabalho preparado pela autora para a Conferência Brasileira de Estudos Políticos sobre os Estados Unidos, promovida pelo INCT-INEU e realizada de 25 a 28 de novembro de 2019, em São Paulo.

 

 

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