Sociedade

O fim das ações afirmativas nos EUA: mais um golpe da Suprema Corte contra os direitos civis

Sala vazia (Crédito: rawpixel.com/Flickr/Domínio público)

Por Celly Cook Inatomi* [Informe OPEU]

Nesta quinta-feira, 29 de junho de 2023, a Suprema Corte dos Estados Unidos deu mais um importante passo rumo à redefinição dos direitos civis no país. Após uma série de decisões altamente contraditórias e que derrubaram leis federais e precedentes judiciais pilares da democracia americana, a maioria conservadora da Corte decidiu pela inconstitucionalidade das ações afirmativas nos processos de admissão universitários. A justificativa é uma leitura enviesada de uma pauta que sempre foi progressista (tema já abordado aqui no OPEU): o combate ao racismo institucionalizado. Segundo os peticionários e a maioria conservadora dos juízes, a raça não deve ser um critério para os processos de admissão em universidades, pois isso viola a igualdade entre os indivíduos.

As ações julgadas fazem parte de uma mobilização de longa data encabeçada pelo ativista conservador Edward Blum, fundador da organização Students for Fair Admissions, que é a autora nos dois casos avaliados pela Corte – um, envolvendo a Universidade de Harvard, e outro, uma da Carolina do Norte. Segundo os peticionários, as duas universidades cometeram discriminação contra candidatos brancos e asiáticos ao aplicarem critérios de raça nos processos de admissão, dando preferência para negros, hispânicos e nativos. Ao perderem nas cortes menores, a organização recorreu à Suprema Corte, que por uma decisão de 6 votos a 3, concedeu mais uma vitória na trajetória de Blum, lado a lado da impactante decisão de 2013, Shelby County v. Holder, que esvaziou a Lei de Direitos de Voto de 1965 ao defender que não é mais preciso medidas de prevenção e de combate ao racismo nos procedimentos eleitorais dos estados.

‘Igualdade. Justiça para republicanos’, na charge de Chris Matthews (Fonte: Washington Monthly)

Segundo as duas universidades que tiveram seus procedimentos de admissão questionados pela organização, e outras que também utilizam ações afirmativas para garantir diversidade em seus quadros discentes, a decisão impactará decisivamente as oportunidades disponíveis para estudantes de grupos minoritários, reduzindo consideravelmente o número de negros e latinos. Para outros analistas, ainda, a decisão poderá impactar também outros setores que não apenas o sistema educacional secundário que aplicam medidas de ação afirmativa, como as Forças Armadas e empregos no setor privado.

A nova decisão da Suprema Corte reverte cerca de 40 anos de precedentes judiciais, especialmente uma decisão de 2003, Grutter v. Bollinger, que permitia que as universidades usassem ações afirmativas com base na raça para diversificar seu corpo estudantil. Embora esses precedentes nunca tenham passado incólumes de críticas, de ações judiciais e de tentativas de contorná-los, eles constituíam normativas importantes para a garantia de um mínimo de oportunidades para candidatos de grupos minoritários no país.

Interessante é que os juízes conservadores reconhecem racismo na aplicação das ações afirmativas, mas não falam nada sobre o fato de que, sem as cotas, a raça sempre foi e continua sendo um critério amplamente empregado para excluir grupos minoritários da população, como negros, hispânicos, indígenas, mulheres, e LGBTQIA+. Como afirmou a juíza Sonia Sotomayor em seu voto dissidente, a decisão reverteu décadas de progressos importantes e “cimentou uma regra superficial de colorblindness como um princípio constitucional numa sociedade endemicamente segregada”. Seu voto foi seguido pelas juízas Elena Kagan e Ketanji Brown Jackson.

Justice Sonia Sotomayor at Brooklyn Public Library | Flickr(Arquivo) Juíza Sonia Sotomayor na Biblioteca Pública do Brooklyn, Nova York, em 14 set. 2018 (Crédito: Arlene Roberts/Flickr)

Diferentemente de outros juízes que se negam a recusar a julgar casos em que tem algum grau de envolvimento, Jackson seguiu a conduta ética que é aplicada aos juízes federais e se recusou a analisar o caso envolvendo Harvard, dado que ela havia trabalhado no quadro de administradores da Universidade. Ela participou como voto dissidente, juntamente com Kagan e Sotomayor no caso envolvendo a Universidade da Carolina do Norte, argumentando que a sociedade americana nunca foi neutra racialmente. Nas palavras de Jackson, “alguém dizer que foi vítima de racismo porque uma faculdade considerou o legado de discriminação que sempre beneficiou desigualmente seus candidatos é o mesmo que não reconhecer a bem documentada transmissão intergeracional de desigualdade que ainda atormenta nossos cidadãos”.

Além disso, como observou Jeannie Suk Gersen, professora de Direito em Harvard, retirar as ações afirmativas não vai impedir que estudantes de origem asiática, especialmente chineses, deixem de ser discriminados. Pelo contrário, é um passe livre para que a discriminação de minorias em geral aconteça, mas agora camuflada pelo discurso de colorblindness.

Segundo a professora, mesmo com as ações afirmativas, as universidades estão longe de alcançarem a diversidade e a igualdade de oportunidades. Para Gersen, melhor do que alcançar a diversidade, que é um termo bastante controvertido e mobilizado pelos juízes conservadores para dizer que se está tentando fazer uma engenharia, ou um experimento social com base na raça, as ações afirmativas devem ser entendidas a partir dos objetivos que ensejaram sua criação: uma reparação urgente, importante e necessária, embora não suficiente, de discriminações históricas e estruturais da sociedade estadunidense.

 

Celly Cook Inatomi é colunista do Opeu e pesquisadora colaboradora da Unicamp. Especialista em relações entre política, direito e judiciário, é autora de As análises políticas sobre o Poder Judiciário: Lições da ciência política norte-americana (Editora Unicamp, 2020). Contato: celoca05@yahoo.com.br.

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** Edição e revisão: Tatiana Teixeira. Recebido em 20 set. 2022. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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