Política Doméstica

Biden e as contradições do Partido Democrata

O então vice-presidente Joe Biden fala com Stephanie Carter, durante a posse de seu marido, Ash Carter, como secretário da Defesa, na Casa Branca, em 2015

Por Débora Figueiredo Mendonça do Prado*

A condenação do ex-produtor de cinema Harvey Weinstein por abuso sexual e estupro trouxe novo fôlego para o debate sobre o movimento #MeToo na sociedade americana, no qual mulheres relataram casos em que foram vítimas de violência sexual em Hollywood. O #MeToo expôs um sistema misógino muito mais amplo que protege homens poderosos de condutas inapropriadas contra mulheres e ganhou repercussão global ao incentivar as vítimas a se pronunciarem e a denunciarem seus agressores.

O movimento também contribuiu para a exposição e a queda de diversas lideranças, inclusive políticas, envolvidas em vários escândalos de assédio. A condenação de Weinstein representou um passo importante, mas, como destaca a escritora norte-americana e ativista Rebecca Solnit, ainda há um longo caminho a percorrer.

Questionada sobre a condenação, a ex-senadora e ex-candidata democrata à Presidência dos EUA, Hillary Clinton, afirmou que já era hora de Weinstein prestar contas. Donald Trump (ele mesmo alvo de uma longa lista de acusações de assédio) afirmou ser uma “grande vitória para as mulheres”. Aproveitou o episódio para recordar a proximidade do condenado com o Partido Democrata, por conta do apoio e do financiamento às campanhas eleitorais de candidatos desta legenda.

Eleitor mais conservador tende a relevar assédio de políticos

Em setembro de 2019, importantes lideranças do Partido Democrata, como as senadoras e ex-pré-candidatas à Presidência dos EUA Elizabeth Warren (D-MA), Kamala Harris (D-CA) e Amy Klobuchar (D-MN), atuaram ativamente para derrubar a indicação do juiz Brett Kavanaugh para a Suprema Corte. Indicado por Trump, o juiz era acusado de conduta sexual inapropriada. Foi submetido a duras sabatinas, sobretudo por parte destas senadoras, no decorrer de seu processo de confirmação na Câmara Alta. À época, a atuação de Warren, Kamala e Klobuchar deu um novo impulso ao #Metoo na política e contribuiu para que conquistassem um papel relevante na defesa desta temática. Mesmo assim, Kavanaugh acabou sendo aprovado para integrar a mais alta instância do Poder Judiciário americano.

Este é apenas um exemplo de como a percepção entre democratas e republicanos sobre assédio sexual é diferente, como revelam pesquisas de diferentes institutos. Uma enquete realizada em 2017 pelo Pew Research Center aponta que o percentual de eleitores e eleitoras que consideram o tema muito importante é maior entre democratas (81% contra 61% dos republicanos). No caso da oposição ao juiz Kavanaugh, enquanto 91% dos democratas se opuseram à confirmação, apenas 6% dos republicanos declararam serem contrários. Sondagem feita pelo jornal The Washington Post também mostrou que as diferenças político-ideológicas entre liberais e conservadores afetam a percepção sobre como o assédio sexual é um problema relevante para a sociedade. Como consequência, os conservadores tendem a condenar menos grupos sociais, ou lideranças, envolvidos nestas denúncias.

Comportamento semelhante é observado entre mulheres liberais e conservadoras. Estas últimas tendem a denunciar menos casos de discriminação de gênero e de assédio sexual do que as liberais. Ao analisar o tema, Claire Gothreau destaca que as liberais são mais propensas a denunciar tais comportamentos, enquanto as conservadoras ficam em silêncio e normalizam tal conduta, ao corroborarem a ideia de que “boys will be boys”. Para a pesquisadora, tais diferenças se dão em decorrência do fator “orientação de domínio social” (SDO). Isso significa que indivíduos com orientação de domínio social são mais tolerantes ao assédio por entender que este tipo de violência se enquadra em uma hierarquia de gênero estabelecida, na qual as mulheres são subordinadas.

Desta maneira, é possível afirmar que as alegações de assédio sexual têm um peso decisivo para os liberais? A resposta é não.

A conveniente permissividade liberal

Em 2017, enquanto o senador democrata Al Franken renunciava a seu mandato por pressão do partido após denúncias de assédio sexual, Roy Moore, candidato ao Senado, teve o apoio do presidente Trump e o financiamento do partido. Como afirma Claire Gothreau, as pessoas tendem a perdoar muito mais os políticos de seu próprio partido. Apesar de concordar que, em decorrência do Movimento #MeToo, os democratas respondem mais severamente aos políticos acusados de assédio, a autora ressalta que isso não quer dizer que os democratas sempre responderão às alegações de forma imparcial.

As mulheres progressistas e os grupos feministas, como o movimento Women’s March, têm-se formado como uma importante frente de resistência a Trump, levando milhões às ruas contra o presidente desde o primeiro mês de seu mandato. Nas midterm elections de 2018, as mulheres bateram recorde de candidatura e de votos, o que contribuiu para a ascensão de importantes lideranças progressistas. Alexandria Ocasio-Cortez (D-NY), mais jovem representante (deputada) eleita, Ilhan Omar (D-MN) e Rashida Tlaib (D-MI), primeiras muçulmanas a chegarem ao Congresso, são alguns destes novos rostos.

A atual aposta do Partido Democrata em Joe Biden é um enorme balde de água fria, porém. Nos anos 1990, o candidato foi acusado de assédio sexual pela ex-funcionária Tara Reade. A imprensa mais conservadora deu destaque às denúncias, enquanto a mídia mais progressista ignorou amplamente as alegações, como aponta a jornalista Arwa Mahdawi. A contradição aparece, inclusive, no discurso de Biden.

Segundo Arwa, nas audiências sobre Brett Kavanaugh, o próprio Biden dizia ser importante levar as mulheres a sério. A situação fica grave (e expõe ambiguidades e contradições destes atores), no entanto, quando a reportagem do site The Intercept denuncia que Tara Reade pediu ajuda ao Fundo de Defesa Legal Time’s Up, criado após o #MeToo para apoiar vítimas de assédio. Diferentemente do que aconteceu com as vítimas de Weinstein, Reade não obteve apoio do movimento. A justificativa foi que esta assistência poderia colocar a instituição em risco. A reportagem do Intercept destacou o vínculo entre a empresa de relações públicas que trabalha para o Fundo com Anita Dunn, principal consultora da campanha presidencial de Biden.

Ao contrário do que foi publicado na matéria, na qual negou ter-se comportado de forma inadequada e disse que era apenas “seu jeito de ser”, Biden divulgou um vídeo nas redes sociais um pouco antes de lançar sua candidatura e abordou as denúncias de comportamento inapropriado feitas contra ele. No vídeo, sem um pedido formal direto de desculpas, o democrata afirma que: “As normas sociais começaram a mudar. Elas mudaram”. No esforço para reformular esta imagem, o candidato também passou a incluir mais mulheres em sua equipe e, especula-se, pode vir a escolher uma vice para compor a chapa na corrida para a Casa Branca.

Hoje, Biden conta com um número mais expressivo de mulheres na condução de sua companha, algo bem diferente da equipe que acompanhou sua trajetória política, composta exclusivamente por homens. Seus assessores e aliados vêm deixando claro que as mulheres são uma força motriz para sua campanha. Com essas mudanças, Biden conseguiu o apoio significativo de Amy Klobuchar, um peso-pesado na briga pelos moderados do Meio-Oeste americano, enquanto a senadora Kamala Harris chegou a declarar que a abordagem de Biden é um importante reconhecimento para as mulheres.

Ambas as posições contrastam, no entanto, com a de Elizabeth Warren, pré-candidata que se aproximou mais do feminismo progressista na disputa presidencial. Warren não apenas não endossou o apoio a Biden, como defendeu que ele não é o candidato certo para 2020.

Com Biden, o Partido Democrata faz uma aposta bastante arriscada. Diante da urgência de se livrar de Donald Trump, a sigla opta por rejeitar importantes lideranças do próprio partido e de grupos importantes da sociedade que já deixaram claro que não aceitarão o assédio, as condutas inapropriadas e o sexismo como algo normal. Parece que o entendimento machista de que “boys will be boys” não se restringe ao Partido Republicano.

 

* Débora Figueiredo Mendonça do Prado é pesquisadora do INCT-INEU, professora no curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e coordenadora do Grupo de Estudos e pesquisas sobre Gênero e Relações Internacionais (GENERI).

** Recebido em 9 abr. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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