Política Doméstica

Universidades em tempos de normalidade e de pandemia: heterogeneidade e protagonismo

Crédito da imagem: Mai Ly Degnan para NPR

Por Karen Fernandez Costa*

A pandemia causada pela COVID-19 impactou severamente o setor de educação pública e privada e seus diversos segmentos (do nível básico ao superior) em vários países, promovendo debates e divergências sobre a continuidade das atividades didáticas com base no ensino remoto e/ou distância.

É um equívoco abordar a questão com base na dicotomia entre ensino presencial e ensino a distância, enveredando para uma discussão “principológica” sobre o tema. Erro maior ainda é acreditar que se pode transferir, subitamente e no improviso, o conteúdo de disciplinas planejadas no formato presencial para o modelo remoto com o argumento de não prejudicar os estudantes e garantir a integralização do semestre letivo. Trabalhar com a premissa de que nos encontramos em um contexto de normalidade e que é possível prosseguir com as atividades com danos diminutos é ignorar a realidade como ela se apresenta.

Não há dúvida de que o uso de tecnologias constitui importante aliado no processo de ensino e de aprendizagem. Estamos diante da “iGeneration”, nos termos de Larry D. Rosen, Mark Carrier e Nancy A. Cheever (Rewired: Understanding the iGeneration and the Way They Learn, da Palgrave MacMillan, 2010), ou seja, jovens que nasceram inseridos em aplicativos de interação social acessados facilmente por um smartphone.

Como apontou Reginaldo Moraes no artigo “Entre o quadro negro e o smartphone” (Jornal da Unicamp, maio de 2018), o campo educacional é, inevitavelmente, impactado por estas mudanças que afetam o próprio modo de sociabilidade das jovens. A referência a estas características é importante para que se tenha clareza de que não se trata de rejeitar o uso de ferramentas tecnológicas que viabilizam e/ou facilitam o ensino a distância, ou remoto, e que vêm se tornando complementos cada vez mais imprescindíveis ao ensino presencial. A questão relevante é saber que sua defesa e seu uso não devem servir de subterfúgios para improvisos, aparente manutenção da “normalidade” e/ou para precarização do trabalho docente. Estes elementos causam danos, no percurso formativo das estudantes, que muito dificilmente poderão ser revertidos.

Equívocos da comparação descontextualizada

Tendo tal pressuposto em vista, é fundamental refletir de modo contextualizado sobre as “respostas” que se tem dado à crise. Tal como nos ensina Peter Evans, em Autonomia e parceria: Estados e transformação industrial (Editora UFRJ, 2004), a comparação é um primoroso recurso analítico e metodológico, mas deve ser historicamente localizada em seu contexto, partir da organização interna dos países e se basear em instituições, estruturas e também na dinâmica das relações entre Estado e sociedade, apreendendo, assim, elementos de path dependence. Evocar casos e respostas da China, dos EUA, ou de outros países, à crise sanitária causada pela COVID-19, de forma caricatural e descontextualizada, não nos ajuda a encontrar soluções para nossas dificuldades na área da educação superior – seja no contexto de normalidade, seja diante de uma pandemia.

‘Zoom party’ entre universitários americanos

É evidente que qualquer referência ao Ensino Superior dos Estados Unidos remete inevitavelmente às universidades de Harvard, Yale, Chicago, Stanford, Berkeley, Princeton, ou ao Massachusetts Institute of Technology (MIT) – para citar apenas algumas das instituições de ponta que povoam nossa visão sobre o modelo americano de ensino superior. Tais instituições são, porém, as exceções que informam e explicam muito pouco do sistema como um todo, cuja qualidade é, inclusive, sofrível.

Em outro artigo também publicado no Jornal da Unicamp (“O financiamento do ensino superior americano e alguns de seus meandros”, de set. de 2017), Reginaldo Moraes explica que estas universidades são escolas pequenas e focadas e que se inserem em um sistema que conta com quase seis mil instituições e 20 milhões de estudantes. Tal sistema se estrutura em formato de pirâmide. No topo, há uma centena de universidades de pesquisa “tipo I”, as quais concentram 70% das verbas de pesquisa e 70% dos doutoramentos. Seguidas dessas, há em torno de 300 universidades de pesquisa “tipo II”, responsáveis pelos outros 30% dos doutorados. No segmento abaixo, há faculdades e universidades estaduais que ofertam um amplo leque de cursos de graduação e alguns mestrados e especializações.

Community college não é Ivy League

Na base da pirâmide, estão os chamados two-year colleges (ou community colleges), que concentram metade dos estudantes de ensino superior no Estados Unidos e ofertam cursos de curta duração e acesso amplo. A maior parte dos professores destas escolas é contratada em tempo parcial e exclusivamente para dar aulas. Ao ingressarem nestas instituições, os estudantes são submetidos a uma prova para avaliar suas habilidades básicas (ler, escrever e fazer cálculos) e apresentam falhas na formação que os obrigam a fazerem os chamados “cursos remediais” – oferecidos nos próprios community colleges – para seguirem no ensino superior.

Goldrich-Rab traz dados que atestam a heterogeneidade e a desigualdade do sistema americano: “At private research universities, median endowment spending per student approaches $4,000, while it’s about $1,000 per student at public universities, and just $200 at community colleges. While Harvard sits on a nearly $40 billion endowment, across town at Bunker Hill Community College two-thirds of the students are affected by basic-needs insecurity, but the foundation has assets of just under $7 million (…) While Harvard sits on a nearly $40 billion endowment, across town at Bunker Hill Community College two-thirds of the students are affected by basic-needs insecurity, but the foundation has assets of just under $7 million”.

De acordo com a pesquisadora, a maioria dos discentes dos community colleges luta para suprir necessidades básicas e vivencia situação de insegurança em relação à moradia. E completa: “Finally, let’s allow this crisis to force us to get real about who today’s college students are, and what it takes to help them succeed. It’s hard to learn — online or in person — if you haven’t eaten or slept. The vast majority of college students are juggling work and school, and an estimated 4.3 million of them have children. Their basic needs must come first”.

É, portanto, notável a desigualdade e heterogeneidade do sistema de ensino superior estadunidense. Dificilmente os estudantes e professores de Stanford terão dificuldades com a oferta de disciplinas on-line. Os discentes mais vulneráveis, e que dependem exclusivamente da moradia estudantil, estão sendo contemplados. Não parecem ser o improviso e o voluntarismo, com o intuito de integralizar a qualquer custo e do jeito que der o semestre/trimestre/quadrimestre, que caracterizam, no Brasil, a tomada de decisão de converter para o formato remoto os cursos de escolas de ponta como esta. Gestores, professores e pesquisadores destas universidades não devem ter tido grande dificuldade de tomar suas decisões, diante do perfil do alunado e da infraestrutura material, física e humana nelas disponíveis. Estamos diante de escolas familiarizadas com os meios e com as práticas do ensino remoto, ou a distância. Afinal, há tempos as universidades do “topo da pirâmide” são protagonistas de conteúdo on-line, do qual, inclusive, usufruímos.

Adesão e ausência de debate no mercado privado de ensino

Desde que as aulas foram suspensas no Brasil, instaurou-se, especialmente nas universidades públicas, um debate acalourado em torno da conversão das disciplinas para o formato remoto e/ou on-line para que se evite a suspensão e o consequente atraso do semestre/quadrimestre letivo. Refiro-me às universidades públicas, porque a questão simplesmente não se impôs na maior parte das privadas – aquelas vinculadas aos grandes grupos, que atualmente dominam o Ensino Superior no Brasil, e que concentram o maior número de matrículas no segmento. Poucos dias após a suspensão das aulas, os professores destas instituições já ministravam suas disciplinas on-line no agora famoso “blackboard”, sem qualquer treinamento e, na maior parte dos casos, sem apoio, mas com infindáveis cobranças em um contexto de absoluta exceção no âmbito doméstico e familiar.

A situação de pressão e o excesso de trabalho levaram o SINPRO-SP a se manifestar sobre o assunto: “Preparar uma aula para os meios digitais nos cobra um tempo desumano e insuportavelmente doloroso, horas e horas além do previsto em nossos contratos e jornadas. As leituras, os slides, os recursos de apoio, a linguagem, os exemplos, a dinâmica, o ritmo, a sistematização de conceitos – tudo é diferente (…) No meio desse caminho, tem o coordenador a lembrar que ‘Pessoal, é preciso postar as atividades no Classroom. Já agendaram a aula no Zoom? Mandaram o link para as turmas? O Moodle caiu, não suportou a quantidade de acessos. Não incentivem as reclamações dos alunos, não vamos criar polêmicas, disponibilizem seus e-mails pessoais’”.

Reação das universidades públicas

Não foi este o caminho seguido pela esmagadora maioria das universidades públicas brasileiras. Do universo de 63 universidades federais, 49 decidiram pela suspensão das aulas de graduação. Por trás desta difícil decisão, há o reconhecimento de que o ensino a distância e/ou remoto envolve metodologia e ferramentas próprias, de modo que exercícios domiciliares de leitura e fichamento, vídeos no YouTube, live no Facebook, plantão de dúvidas no Skype e reuniões no Googlemeet não seriam capazes de garantir, com qualidade, o ensino e a aprendizagem e, por conseguinte, o cumprimento, de modo minimamente razoável, de um semestre letivo.

Considerar que um curso planejado presencialmente possa ser subitamente convertido para o formato remoto, partindo apenas destas ferramentas, é menosprezar o trabalho docente desenvolvido de forma cuidadosa em sala de aula e nos laboratórios. Trabalho este que permite e garante, junto com as atividades de pesquisa, a formação de excelência dos estudantes egressos destas instituições. É também menosprezar o próprio ensino a distância, sua metodologia, seu formato e sua dinâmica.

Desde 2016, as universidades públicas no Brasil enfrentam um cenário de estrangulamento econômico que se acentuou nos últimos dois anos. A ele, somou-se, em 2020, o corte de recursos para pesquisa. Os insultos, as ameaças e as mentiras proferidas, por parte de membros do atual governo, contra estas instituições se tornaram práticas correntes. Apesar disso, os gestores, assim como a maior parte dos docentes e discentes, dos pesquisadores e dos técnicos destas instituições, seguem trabalhando duro e seriamente. Contribuem de modo inestimável nas emergências e ao formar capital humano (estudantes e pesquisadores) técnica e criticamente capacitado. Respeitando suas características e especificidades e, sobretudo, com o objetivo de preservar este que é seu principal ativo, a maior parte das universidades públicas decidiu suspender o calendário.

As crises econômicas, sociais e de valores, o curto-prazismo, o obscurantismo e as epidemias não roubarão das universidades públicas brasileiras seu protagonismo na formação de capital humano e na construção do conhecimento no país.

 

Sugestão de leitura sobre o tema

MORAES, Reginaldo C. Educação Superior nos Estados Unidos: história e estrutura. São Paulo: Editora Unesp, 2015.

 

* Karen Fernandez Costa é professora do curso de Relações Internacionais da UNIFESP e pesquisadora do INCT-INEU.

** Recebido em 8 abr. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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