Sociedade

Frederick Douglass: uma vida dedicada à liberdade

Memorial de Douglass dentro do Centro Frederick Douglass, abaixo de sua casa em Anacostia (Crédito: arquivo pessoal da autora)

Série pelo Black History Month

Por Camila Feix Vidal* [Informe OPEU]

“Eu nasci em Tuckahoe, próximo a Hillsborough e a cerca de dezenove quilômetros de Easton, no contado de Talbot, em Maryland. Não sei ao certo minha idade, pois nunca vi nenhum registro que a comprovasse. A grande maioria dos escravos sabe tanto a respeito de sua idade quanto os cavalos, e, pelo que sei, a maior parte dos mestres deseja que eles permaneçam ignorantes. Não me lembro de ter conhecido um que conseguisse dizer o seu aniversário. Raramente um escravo sabe algo mais que a época de plantio e de colheita, da temporada de cerejas, primavera ou outono. A falta de informações sobre minha idade foi uma fonte de infelicidade durante a infância. As crianças brancas diziam prontamente sua idade. Eu não sabia dizer por que fora privado do mesmo privilégio. E não tinha permissão de fazer perguntas a meu mestre quanto a isso. Ele considerava tais indagações por parte de um escravo inadequadas e impertinentes, os indícios de uma alma inquieta. A melhor estimativa é que tenho agora entre 27 e 28 anos. Cheguei a essa conclusão ao ouvir meu mestre dizer, em algum momento de 1835, que eu tinha cerca de 17 anos”.

LIVRO RELATO DA VIDA DE FREDERICK DOUGLASS: UM ESCRAVO AMERICANO - 1ªED.(2021)Assim começa, no livro Relato da Vida de Frederick Douglass (Principis, 2021, p. 19), o relato de Frederick Douglass, abolicionista, defensor dos direitos das mulheres, escritor, palestrante, embaixador e uma das figuras mais fotografadas e viajadas no século XIX. Filho de uma mulher escravizada e, portanto, escravizado desde o nascimento, ele nunca soube a identidade de seu pai – ainda que, pelo tom de pele de Douglass, perceba-se que era um homem branco, provavelmente o proprietário de sua mãe. Foi separado dela ainda bebê e a viu apenas quatro ou cinco vezes na vida até os 7 anos de idade, quando ela morreu. Sua mãe fora alugada para trabalho escravo a 20 km de distância e, nas raras ocasiões em que pôde visitar o filho pequeno, percorreu a pé esse caminho durante a noite, após trabalhar de dia nas plantações. Dessa forma, Douglass viu a mãe poucas vezes, de noite, quando era ainda muito criança, a ponto de não a reconhecer na luz do dia.

Em 1826, com cerca de 8 anos de idade, foi enviado para Baltimore para ser escravo doméstico de Hugh Auld, um carpinteiro naval. Saía da área rural para o âmbito urbano e portuário. Ali, inicia processo de alfabetização com sua proprietária, Sophia Auld, que, no entanto, é dissuadida por seu marido, porque seria “perigoso” educar um escravizado, além de ilegal. A preocupação, por óbvio, era manter uma força de trabalho escrava dócil e ignorante para melhor desempenho de suas funções. Douglass aprendeu a ler e escrever sozinho, escondido de seus mestres. Fazia trabalhos extras e oferecia pão a garotos pobres da vizinhança em troca de lições de alfabetização, usando livros escolares descartados que encontrava no lixo da cidade. Com 13 anos já lia artigos sobre a abolição da escravidão. A partir de então, estava convicto de que a educação seria a arma mais poderosa contra o sistema escravista.

Da cidade portuária é alugado e enviado, em 1833, para uma plantation. Por ser considerado “ingovernável” por seu novo proprietário, Edward Covey, passa fome e é açoitado cotidianamente. Essas marcas vão acompanhá-lo ao longo da vida e impulsioná-lo para, quando livre, trabalhar ativamente pela abolição. Três anos depois, em 1836, tenta fugir pela primeira vez, mas falha. Por isso, é mandado para outro proprietário, em Baltimore. A partir de então, passa a trabalhar como calafate de navio por imposição de seu mestre. Ali, conhece Anna Murray, figura central na libertação e na vida de Douglass.

Anna Murray era uma mulher preta, mas livre. De família humilde – pai e mãe foram alforriados antes de seu nascimento –, ela trabalhava desde a infância como doméstica, juntando suas economias. Ao conhecer Douglass, decide ajudá-lo no seu plano de fuga e, com ele, gasta o dinheiro guardado por anos. Em 1838, aos 20 anos de idade, com a ajuda financeira e logística de Murray, Douglass foge de Baltimore, indo de trem até Nova York. Lá, Anna encontra-o e lhe dá o suporte necessário. Talvez o abolicionista, escritor, palestrante e uma das mais importantes figuras dos EUA no século XIX não existisse, não fosse o papel desempenhado por uma mulher, futuramente sua esposa. Casado e contrariando muitos outros escravizados fugitivos que se exilavam no Canadá, Douglass decide permanecer nos EUA para lutar ativamente pela abolição da escravidão. Como não tinha sobrenome, adota o nome “Douglass” por conta do poema “Lady of the Lake”, de Walter Scott.

A luta pela abolição

Já em 1941, Frederick Douglass é recrutado pela Massachusetts Anti-Slavery Society, uma das mais proeminentes organizações abolicionistas na época. A partir dessa Sociedade, inicia palestras na Nova Inglaterra, contando em primeira mão os horrores que passou enquanto escravizado. O palestrante também viria a ser um autor renomado. Em 1845, publica o seu primeiro livro autobiográfico Narrative of the Life of Frederick Douglass (em português, Relato da vida de Frederick Douglass: um escravo americano). Ao longo de sua vida, lançaria outros livros e autobiografias, entre eles, My Bondage and My Freedom (1855) e Life and Times of Frederick Douglass (1881). A publicação autobiográfica é, rapidamente, um dos livros mais lidos nos Estados Unidos com venda inicial de mais de 30 mil exemplares. Ganha versões e edições em outros idiomas que alçam Douglass como uma importante liderança internacional pelos direitos humanos.

Ao alertar sobre a sua identidade, entretanto, passa a ser perseguido por slave hunters que buscam recompensa por sua captura. Para fugir de um sistema escravista que ainda o considerava um bem a ser devolvido ao seu proprietário, viaja para a Europa, onde aproveita para palestrar sobre a estrutura escravocrata estadunidense. Na Irlanda, palestra sobre a paz mundial e sobre a “causa dos pobres, independentemente de brancos ou pretos”. Com a ajuda de um amigo inglês, compra sua liberdade e pode, então, retornar aos Estados Unidos, em 1847, como um homem livre. Ao retornar, lança, ainda no mesmo ano, o jornal The North Star, renomeado posteriormente como Frederick Douglass’ Paper. Nele, publica artigos defendendo a luta pela abolição da escravidão e pelos direitos das mulheres. É a partir de então que passa a se relacionar cada vez mais com o movimento sufragista feminista – onde vai permanecer atuante até sua morte, logo após um evento em defesa da ampliação de direitos civis para as mulheres. Não à toa, os dois maiores quadros nas paredes de seu escritório, ainda preservado, são de Abraham Lincoln e da sufragista feminista Susan Anthony.

Visualização da imagemJornal abolicionista de propriedade de Douglass, The North Star (Crédito: arquivo pessoal da autora)

Uma importante característica do pensamento de Douglass sempre foi a noção de que mudanças sociais em um país escravocrata e, posteriormente, segregacionista, seriam possíveis apenas se implementadas pela política nacional. Assim, buscou sempre estar presente – e, de fato, esteve – nas administrações federais. A porta de entrada foi sua estreita relação com o recém-eleito presidente Abraham Lincoln. Com ele, Douglass trocava cartas e era recebido para conversas na Casa Branca. Essa relação de proximidade fora alterando, também, a percepção de Lincoln acerca da escravidão e dos direitos civis.

Douglass desempenhou um papel instrumental para o fim da Guerra Civil e, portanto, para a vitória da União sobre os Confederados. Isso porque, após reunião com Lincoln, decidiu apoiar e convocar o alistamento de tropas de pessoas pretas libertas para lutar pela União. Em troca, a União de Lincoln defenderia o fim da escravidão em todo o país e a ampliação dos direitos civis para a comunidade preta. A responsabilidade pelo grande número de pessoas pretas que se alistaram para a Guerra Civil pela União precisa levar em consideração o papel importante desempenhado por Douglass. Em 1863, frente a Proclamação da Emancipação de Abraham Lincoln, Douglass publica o artigo “Homens de cor, às armas”, que acabou virando peças de cartazes e de recrutamento militar. Muito provavelmente o resultado da Guerra Civil com a vitória da União seria outro não fosse a ida em grande número de afro-americanos para as Forças Armadas. É a partir desse momento que as forças da União começam a ter vitórias.

“Frederick Douglass apelando ao presidente Lincoln e seu gabinete para alistar negros”, mural de William Edouard Scott (Fonte: Library of Congress Blogs)

Conselheiro de Lincoln inicialmente, Douglass continua ocupando cargos administrativos em praticamente todas as administrações federais subsequentes. Em 1877, serve como como U.S. Marshal do District of Columbia, a convite do presidente Rutherford Hayes, onde permanece até 1881. Em 1989, é indicado pelo presidente Benjamin Harrison como embaixador do Haiti e encarregado de negócios da República Dominicana. Resigna, entretanto, dois anos depois para continuar a tratar dos direitos civis em um país segregado e dos direitos das mulheres.

Porque sempre esteve em Washington, seja por conta de seus cargos na administração pública, seja pelas suas palestras e eventos na capital do país, Douglas adquire junto com Anna Murray uma casa elegante no bairro de Anacostia, em Washington, D.C., rompendo a convenção de “whites only” que vigorava nesse bairro até então. Pouco tempo depois, em 1882, sua esposa de 44 anos e mãe de seus cinco filhos, morre. Menos de dois anos depois, Douglass se casa com sua secretária, a feminista nova-iorquina Helen Pitts. Ambos recebem críticas de ambos os lados e de ambas as famílias pelo casamento inter-racial. O pai de Helen, abolicionista e amigo de Douglass até então, não aprova o casamento. Se, antes, pouco podia compartilhar de seu trabalho com sua primeira esposa que, semianalfabeta, conduzia o papel de dona de casa, com Helen, liam, escreviam e viajavam juntos para eventos e compromissos de trabalho.

Ainda que a abolição da escravidão tenha sido implementada com o fim da Guerra Civil, a segregação racial fora mantida e legalizada nos estados do Sul, com a cumplicidade do governo federal. Assim, em 1889, no 26º aniversário da Proclamação da Emancipação, Douglass faz duro discurso sobre como o governo estadunidense se absteve da causa racial, fazendo vista grossa para os crescentes números de assassinatos contra a população preta em decorrência de linchamentos. Cinco anos depois, critica novamente as autoridades federais por empoderar a segregação no Sul em palestra “The lessons of the hour”, sendo, até hoje, importante documento na luta contra a segregação racial sulista. Trabalhando até os últimos instantes de sua vida pela causa racial e de gênero, Frederick Douglass deixa um legado sem precedentes para a causa dos direitos humanos. Sua casa segue hoje como um importante museu e memorial em sua homenagem. Nela, conseguimos conhecer um pouco mais da vida e do legado de um dos maiores ativistas (se não o maior) dos Estados Unidos.

Cedar Hill em Anacostia: museu e memorial

Douglass tinha quase 60 anos quando comprou a casa Cedar Hill com sua esposa, Anna Murray, em 1877. Já adultos e com suas próprias famílias, seus cinco filhos, Rosetta, Lewis, Frederick Jr., Charles e Annie Douglass, nunca chegaram a habitá-la. Praticamente intacta desde a sua morte, é uma casa ampla, em cima de um morro, com vista para o Capitólio e a Casa Branca. Ao entrar na Cedar Hill, nos deparamos com duas salas: uma em frente à outra. A sala da esquerda é mais sóbria – com esculturas, quadros e fotografias que contam as viagens e as pessoas que fizeram parte da vida de Douglass. Nela, o abolicionista conduzia reuniões, dava entrevistas e tratava de trabalho. Na continuação dessa sala está o escritório de Douglass com seus livros e mesa de trabalho que nos mostram como, para além de ativista político, Douglass era em igual proporção um intelectual – desses que combinam a práxis com a teoria. Já no outro cômodo, à direita, está a sala familiar e intimista, onde Douglass recebia sua família e amigos próximos. Nela, um piano ocupa um espaço central, e alguns detalhes lembram da vida que passou como escravizado, como as abraçadeiras de cortinas em formato de grilhões.

Visualização da imagemFrente de sua casa, a Cedar Hill (Crédito: arquivo pessoal da autora)

Seguindo o corredor que divide ambas as salas, passamos pela sala de jantar com mesa ampla, cozinha e área de serviço. Foi ali que Douglass passou sua última noite, jantando sopa com sua esposa Helen Pitts, antes de falecer quando caminhava em direção à porta de sua casa para ir a mais um evento. O segundo piso é reservado para os quartos – o de Douglass, de suas esposas Anna e Helen e de seus filhos e netos. Em frente ao quarto intacto de Murray, o quarto de Douglass ainda exibe seus chinelos e pesos para exercícios de musculação. Até sua morte, o ativista fazia musculação todas as manhas – não por uma questão de saúde, ou estética, mas para defesa pessoal e preservação de sua vida, já que acreditava que seria morto em alguma emboscada.

Por fim, nos fundos da elegante Cedar Hill, há uma casinha feita de pedras de um único cômodo: a Growlery, nome dado pelo próprio Douglass. Sem nenhuma janela ou iluminação além da porta, a casa conta apenas com uma lareira, uma mesa e uma cadeira. Ali, Douglass se recolhia para ler, refletir e escrever. Ali, também, relembrava o tempo em que esteve escravizado, com o chão duro, o escuro e o vazio.

A casa de Douglass só existe hoje praticamente como ele a deixou, porque Helen fez dela um memorial ao seu marido: o Frederick Douglass Memorial, formalmente inaugurado em 1900. Em 1962, a administração da Cedar Hill passa para o National Park Service, onde permanece como responsável pela preservação da casa, da história e do legado de um dos mais importantes defensores da luta pela abolição da escravidão.

A luta de Douglass, como sabemos, está longe de acabar, mas, como ele mesmo afirmava, “se não há luta, não há progresso”. Continuemos, assim, na luta.

 

Camila Feix Vidal é professora no Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e faz parte do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea (GEPPIC), do Instituto de Estudos para América Latina (IELA/UFSC) e do Instituto Memória e Direitos Humanos (IMDH/UFSC). Contato: camila.vidal@ufsc.br e camilafeixvidal@gmail.com.

** O presente Informe OPEU foi produzido no âmbito de viagem de pesquisa de campo sobre escolas militares estadunidenses, com apoio e recursos do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). Revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 21 mar. 2024. Seu conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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