Eleições

Eleição nos EUA: indefinição, ou favoritismo?

Crédito da imagem: Shutterstock

Por Liszt Vieira*

Enfeitado de nacionalismo e protecionismo, o discurso eleitoral de Donald Trump em 2016 reproduzia valores de misoginia, homofobia, islamofobia e preconceito contra os imigrantes. Os trabalhadores visados por esse discurso eram brancos, heterossexuais, homens e cristãos, ligados em geral à construção, mineração e indústria pesada, principalmente no chamado Rust Belt. Já a oposição, especialmente no discurso de Bernie Sanders, dirigia seu discurso para o setor público e de serviços, incorporando as propostas do movimento de mulheres, negros e imigrantes.

Essa posição progressista foi perdida quando o senador Sanders foi derrotado, e Hillary Clinton foi escolhida candidata pelo Partido Democrata em 2016. Os aliados imediatos – imigrantes, ambientalistas, antirracistas, os trabalhadores em geral, enfim os progressistas – recuaram, tendo em vista a aliança com Wall Street que garantiu a indicação da ex-secretária de Estado. Como o voto não é obrigatório, a abstenção eleitoral acabou favorecendo a vitória de Trump.

Na oposição democrata, o quadro se complica com a existência, nos EUA, de estratégias políticas conflitantes baseadas no eixo de raça, ou classe. Segundo a filósofa americana Nancy Fraser, ainda não foi possível conciliar “uma política de distribuição de renda fortemente igualitária a uma política de reconhecimento de direitos substancialmente inclusiva e sensível às classes para construir um bloco contra-hegemônico”.

Ainda segundo ela, por detrás da luta política na campanha eleitoral, ocorre que nos EUA, e não só, a transição do capitalismo industrial para o financeiro tornou ineficaz as antigas estratégias de resistência, que se baseavam na ação dos trabalhadores organizados. Agora, o principal centro de geração de valor e acumulação de riqueza já não é a fábrica, mas a produção imaterial. Assim, as estratégias políticas de resistência não podem se basear apenas na produção e no trabalho remunerado. Precisam levar em conta a organização social da reprodução – a oferta de educação, moradia, saúde, meio ambiente saudável, serviços, transporte, trabalho não remunerado que sustenta famílias, crianças e idosos. É importante lembrar que essas formas de trabalho não reconhecidas e não remuneradas são, em geral, atribuídas às mulheres.

Essas considerações podem ajudar a esclarecer o panorama eleitoral nos EUA em um ano marcado pela pandemia. Joe Biden quer ser o anti-Trump e é visto como tal por boa parte do eleitorado. Trump amedronta os eleitores, dizendo que Biden vai destruir os subúrbios, provocar anarquia e abrir caminho para o socialismo. Ele seria um “cavalo de Troia” para os esquerdistas que dominariam seu partido, do senador Bernie Sanders à representante (deputada) Alexandria Ocasio-Cortez que declarou à New York Magazine no fim do ano passado que, “em qualquer outro país, Joe Biden e eu não estaríamos no mesmo partido”.

O desconforto dos socialistas democráticos em dividir um partido com os liberais centristas é um bom exemplo da crítica ao duopólio partidário nos EUA. Acusado pela direita de ser socialista e pela esquerda de ser conservador, Biden fala em unir os americanos para salvar a democracia. Compensa sua falta de carisma explorando os erros e arrogância de Trump que não entregou o que prometeu em sua campanha eleitoral de 2016. Mas pesa contra Biden uma acusação de assédio sexual feita por uma antiga assessora do Senado.

O maior trunfo de Biden, porém, são os erros de Trump. Um deles foi a reforma do código tributário que, em vez de beneficiar a classe trabalhadora e a classe média, adotou a proposta tradicional do Partido Republicano, canalizando mais riqueza para o 1% da população, na visão enganadora do trickle-down economics. Outro erro foi o isolamento da política nacionalista America First que rejeitou a cooperação internacional e reduziu o papel hegemônico dos EUA, agora às voltas com a possibilidade de ver a China se transformar em grande potência.

O impacto eleitoral dos erros de Trump vai depender, é claro, da capacidade política da campanha de Biden em mostrar aos eleitores os fracassos da administração Trump e desqualificar seus acertos.

Classe média como alvo

O que se sabe até agora do Programa de Biden não é muita coisa. Seu programa econômico foi sintetizado em uma frase: “Salvar a classe média para salvar a América”. Ele também deu sinais de que está disposto a virar à esquerda para conquistar os eleitores de Sanders. Propôs novas políticas para “aliviar o fardo econômico dos trabalhadores” um dia depois que Sanders saiu da disputa. Não se trata, evidentemente, de uma revolução contra a desigualdade. “Este país não foi construído por banqueiros e CEOs de Wall Street e gestores de hedge funds. Foi construído pela classe média americana”, disse ele em um comício que deu início à sua campanha.

De acordo com o Pew Research, 52% dos adultos americanos viviam em famílias de renda média em 2016. Enquanto os 20% mais ricos se recuperaram totalmente da recessão de 2008, a classe média ainda não atingiu seu pico anterior de 2007. Dados oficiais dizem que a taxa de pessoas sem seguro aumentou pela primeira vez desde 2008: de 7,9%, em 2017, passou para 8,5% da população dos EUA, em 2018. Biden culpou a administração Trump, prometendo expandir o Obamacare para que 97% dos americanos tenham seguro ao custo de US$ 750 bilhões em dez anos.

Biden propõe um código tributário progressivo. Os 20% de maior renda (que ganham cerca de US$ 170 mil, ou mais) arcariam com quase 93% do ônus do aumento de impostos, e o 1% mais rico, quase três quartos. Entre as diversas propostas, destacam-se aumentar a taxa máxima de imposto de renda de 37% para 39,6%, como era antes, tributar ganhos de capital e dividendos a taxas normais para aqueles com renda anual acima de US$ 1 milhão e aumentar a taxa máxima de imposto de renda corporativo de 21% para 28%.

Quanto aos direitos dos trabalhadores, Biden apoia o aumento do salário mínimo federal para US$ 15 e propõe regras de comércio internacional que “protejam nossos trabalhadores, salvaguardem o meio ambiente, respeitem os padrões de trabalho e os salários da classe média, promovam a inovação e enfrentem grandes desafios globais, como concentração corporativa, corrupção e mudança climática”.

Em julho de 2020, ele propôs um plano de US$ 700 bilhões para impulsionar a manufatura e a inovação tecnológica. O site de Biden afirma que ele apoia a ideia de um New Deal Verde, voltará a aderir ao Acordo de Paris sobre o Clima e quer garantir que os EUA tenham um setor de energia livre de poluição de carbono até 2035, com emissões líquidas zero até 2050. Também criará uma nova Divisão de Justiça Ambiental e Climática dentro do Departamento de Justiça. Para construir uma economia com energia 100% limpa e criar milhões de “bons empregos sob proteção sindical”, ele planeja fazer investimentos em nova infraestrutura, transporte público, eletricidade limpa, indústria de veículos elétricos, prédios e moradias, bem como na agricultura. Ao todo, seu plano climático exigirá gastos federais de US$ 2 trilhões em seu primeiro mandato. O programa de Biden fala ainda em apoiar as comunidades rurais que constituem 20% da população americana, mediante tratados comerciais justos, inclusive investindo US$ 20 bilhões na infraestrutura de banda larga rural.

Flancos vulneráveis de Biden

Além da retórica das promessas eleitorais, e apesar da vantagem nas pesquisas de opinião, uma visão mais objetiva não autoriza dizer hoje que Joe Biden seja o favorito. Ele vai ser criticado por Donald Trump em pelo menos três temas: segurança, imigração e China. Como presidente, Trump tem a capacidade administrativa e regulatória, autoridade de mídia e centenas de bilhões para aliviar as consequências econômicas da COVID-19. Esses são trunfos poderosos para convencer eleitores indecisos. Com poucos votos republicanos dissidentes e US$ 1,08 bilhão já arrecadado (em comparação com os US$ 633 milhões de Biden), a campanha de Trump tem um significativo poder ofensivo (Le Monde, 6/8/2020).

Lembremos que, apesar de uma vantagem confortável nas pesquisas, Hillary Clinton perdeu a eleição em 2016, porque o eleitorado de esquerda se absteve parcialmente, ou preferiu o candidato verde. Donald Trump, ao contrário, continua competitivo com muitos votos, inclusive nos condados rurais e suburbanos do Rust Belt, esta “América silenciosa” que parece sempre pronta para confiar nele. Além disso, os eleitores que apoiaram os progressistas Bernie Sanders e Elizabeth Warren durante as primárias continuam céticos em relação a Joe Biden e suas relações com Wall Street e empresas de tecnologia. O candidato do Partido Verde, Howie Hawkins, já está flertando com eleitores decepcionados à esquerda de Biden que está sob ataque por ser muito cauteloso.

Entre os decepcionados, não se pode esquecer dos jovens. Tendo participado pouco durante as primárias, eles parecem inclinados a não votar, se um candidato não refletir suas ideias. Já no caso dos latinos, nem todos se cadastram, por medo de revelar parentes em situação ilegal e, na prática, sofrem barreiras para votar. Assim, não se pode contar com uma votação em peso no candidato democrata. Além disso, os hispânicos do Texas são bastante conservadores e, na Flórida, os eleitores de origem cubana não esquecem a “odiosa” reaproximação entre Barack Obama e Raúl Castro.

Em relação ao movimento negro, que se radicalizou recentemente nas manifestações Black Lives Matter, após o assassinato de George Floyd, a escolha de uma vice negra, a ex-procuradora-geral da Califórnia Kamala Harris, parece acertada. Criticada por seu perfil conservador – e, por isso mesmo, temida por Trump – pode não entusiasmar, porém, boa parte dos eleitores negros a votarem, ainda mais com a indefinição do voto pelo correio que Trump tenta manipular como, aliás, manipula todos os órgãos públicos federais. Desse modo, não está afastada a possibilidade de fraude e de judicialização da eleição que pode terminar na Suprema Corte, como ocorreu na eleição Al Gore x Bush, em 2000.

Trump também se aproveita da imagem negativa da China entre a população americana. Ele tenta culpar a China pela crise de saúde, livrando-se, assim, de sua má gestão da pandemia da COVID-19. Tensões com a China e uma retórica firme podem atuar a seu favor entre os trabalhadores, enquanto Joe Biden não se destacou nesse assunto. Da mesma maneira que Hillary Clinton em 2016, Biden parece ser excessivamente cauteloso em suas posições. Com frequência parece indeciso, e até mesmo “fraco”, para citar uma acusação da campanha de Trump. Os progressistas culpam-no por sua postura face à violência policial, às mudanças climáticas e à saúde. Em comparação, Trump parece dominar bem a agenda política e a mídia para atingir seu eleitorado.

Finalmente, apesar de sua boa imagem de político honesto, digno, conservador, que evita grandes causas e se refugia em generalidades, Joe Biden nunca empolgou as multidões. E essas falhas devem aparecer mais, à medida que a campanha eleitoral avança. O momento decisivo será, provavelmente, o enfrentamento dos dois candidatos no primeiro debate em 29 de setembro. Até lá, reina a indefinição.

 

* Liszt Vieira é pesquisador do INCT-INEU e professor aposentado da PUC-RJ.

** Recebido em 16 de agosto de 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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