Internacional

As humanidades e o desenvolvimento: Hollywood, Pentágono e Democracia

Arthur Schlesinger Jr. (de pé), historiador e conselheiro do presidente Kennedy; o escritor Isaac Deutscher (centro); e o professor Hans Morgenthau, da Universidade de Chicago, em 15/5/1965, no Sheraton Park Hotel, Washington, D.C., durante um dos “Teach-In” sobre a política do presidente Lyndon Johnson para o Vietnã (Crédito: Bettmann/CORBIS)

Por Mateus de Paula Narciso Rocha*

Nos últimos tempos, ressurgiu o debate sobre a importância das ciências humanas para o desenvolvimento. Abraham Weintraub, ex-ministro da educação, é um dos que apoiam reduzir o investimento público nessa área para realocar os recursos em favor das ciências exatas, que gerariam mais riqueza para o país. Premissa que tem adesão em outros espectros políticos.

A inovação tecnológica, de fato, requer especialistas das ciências exatas e gera ganhos econômicos substanciais. A experiência da Coreia do Sul, como a da China, evidencia que o investimento nesse campo é crucial para o desenvolvimento nacional. Sendo assim, o investimento público nas humanidades deveria ser reduzido, ou, mesmo, esses cursos deveriam ser extintos?

Nessa discussão, deve-se lembrar que as ciências humanas não surgiram como ‘raio em céu sem nuvens’. Elas nasceram para responder a desafios sociais de grande magnitude, tais como: violência, ordem, pobreza, desemprego, desenvolvimento, guerra, diplomacia, administração. E uma sociedade que enfrenta tais desafios necessita dos conhecimentos e dos profissionais dessas áreas. Sem a contribuição dos sociólogos, o problema da violência dificilmente será mitigado, pois não se compreenderá suas causas e especificidades. Em similaridade, sem os filósofos, será mais árduo identificar os sofistas e as falácias (fake news) que viralizam no debate público. Como lembra Kenneth Waltz, o tratamento científico dos fenômenos sociais não decorre de mera curiosidade, mas do desejo de controlá-los. A formação nas humanidades não é, portanto, apenas um interesse individual, mas uma necessidade pública.

Uma forma de evidenciar a importância das humanidades é com o recurso à experiência internacional, em particular à dos Estados Unidos, país que é norte para o debate público brasileiro. Nos EUA, onde o investimento público na educação superior geralmente ocorre por meio de bolsas, em torno de 60% dos adultos formados em 3º grau estão em áreas como educação, artes, humanidades, ciências sociais, jornalismo, direito, ou administração. E a própria condição desse país como principal potência econômica, militar e tecnológica decorre tanto das gigantes da tecnologia quanto de instituições e organizações centradas no conhecimento humanístico e em seus profissionais. Uma demonstração de que esse investimento gera retornos econômicos, políticos e benefícios sociais de várias ordens.

O impacto econômico e cultural: Hollywood

Pesquisa da Bloomberg avaliou a contribuição das cidades dos Estados Unidos para o Produto Interno Bruto (PIB) do país no ano de 2015 e revelou que a maior contribuição não veio do polo tecnológico (San Jose/Vale do Sílicio), ou do financeiro (Nova York/Wall Street), mas da sede do entretenimento (Los Angeles/Hollywood).

Com 4 milhões de pessoas, Los Angeles gerou 656 bilhões de dólares, valor equivalente a um terço do PIB do Brasil e maior do que todo PIB da Argentina, no mesmo período. Além do ganho econômico, Hollywood também gera uma cultura que beneficia os Estados Unidos, cimentando a identidade nacional e disseminando noções positivas sobre o país – a associação à “democracia”, “liberdade”, “oportunidade”, ou ao “Mickey Mouse” –, aquecendo o turismo. Todo o ano, milhões de pessoas buscam conhecer a “Estátua da Liberdade”, a “Quinta avenida”, ou o “Walt Disney World”, retratados em incontáveis obras cinematográficas. A difusão dessa imagem positiva também contribui para a atração de imigrantes, um ativo chave para a dinâmica tecnológica e econômica dos Estados Unidos.

Essa indústria cultural, então, cria rendas econômicas gigantescas e dissemina uma cultura simbiótica ao fortalecimento estratégico e tecnológico americano. E, sabe-se, o principal produto de Hollywood, o filme, é, em grande medida, obra de profissionais ligados às “artes” e às “humanidades”, como roteiristas, diretores, atores, ilustradores e dançarinos – muitas vezes aplicando conhecimento histórico, sociológico e filosófico. Em outras palavras, os cursos de teatro, letras, dança, desenho, cinema, entre outros.

O entretenimento também dinamiza a economia de outros países. O herói fictício “Harry Potter” já chegou a ser considerado “o maior empresário britânico”. Na Coreia do Sul, o Óscar para o filme “Parasita” e o sucesso internacional dos grupos musicais do “K-Pop” coroam as políticas públicas para esse setor, sendo também símbolos de investimentos com altas taxas de retorno.

E é oportuno lembrar que as obras culturais, como “Parasita”, ou “Harry Potter”, não são apenas criações fortuitas de mentes extraordinárias. Elas são a síntese de esforços geracionais e o resultado da interação de indivíduos criativos com um “solo” cultural e institucional propício para o seu florescimento, terreno quase sempre constituído pelo investimento público na cultura e nas humanidades. Não é casual que J.K. Rowling, a criadora de Harry Potter, seja formada em estudos clássicos em uma universidade pública britânica, nem que Bong Joon-ho, o diretor de “Parasita”, tenha estudado sociologia e seja formado pela escola pública de cinema KAFA (Korean Academy of Film Arts). Em áreas de impacto político e cultural, no qual o retorno econômico é mais lento, quase sempre o investimento público é condição indispensável para dinamizar o setor.

O duplo impacto nas políticas públicas: Pentágono

Toda a sociedade necessita de políticas públicas para áreas como saúde, educação, segurança interna, defesa e política externa. E, para a eficiência e a eficácia das políticas públicas, é necessário que elas estejam lastreadas em informações profundas sobre seu objeto, bem como exista um corpo administrativo capaz de interpretá-las e implementá-las. As humanidades contribuem para o aperfeiçoamento das políticas públicas nas duas pontas: produzindo conhecimento e formando pessoas.

A política estratégica dos Estados Unidos ilustra esse papel. As decisões de defesa devem considerar várias questões em um ambiente muito complexo, como: qual a hierarquia de ameaças; quais regiões e alianças priorizar; quais são as vulnerabilidades; quais armas produzir; como os outros países atuam e reagem; e qual é o nível ótimo de investimento para equilibrar segurança e economia. Logo, é fundamental, além dos melhores recursos humanos, existir conhecimento profundo sobre a realidade nacional e internacional para que a agência o absorva e tome melhores decisões.

Desde a década de 1940, o Pentágono financia “Think Tanks”, como a RAND Corporation, tanto para aumentar a produção de conhecimento sobre os temas de seu interesse, quanto para gerar quadros qualificados (epistemic communities) que, muitas vezes, são aproveitados pela própria organização. Antes de ser o coordenador do planejamento de defesa do Pentágono de 1973 a 2015, o estrategista Andrew Marshall foi pesquisador da RAND por duas décadas, quando era supervisionado pelo sociólogo Herbert Goldhammer.

Na Segunda Guerra Mundial, grandes nomes das humanidades foram recrutados para o esforço militar. A renomada antropóloga Ruth Benedict foi encarregada pelo Escritório de Informação de Guerra de compreender a cultura japonesa, contribuindo para a guerra do Pacífico. Ela também foi designada para compreender o “caráter nacional” de países aliados, prescrevendo o comportamento adequado às forças estadunidenses – condição necessária para criar uma imagem positiva sobre o país e facilitar a liderança americana.

Após a Guerra Fria, como havia feito com a União Soviética, o Pentágono passou a patrocinar estudos sobre a cultura estratégica da China, em particular sobre a história e o processo decisório chinês. Assim, mobiliza os melhores cérebros – ou o “brain power” como diria Donald Rumsfeld – na pesquisa histórica, sociológica e política para compreender o impacto presente e futuro da ascensão da China nos interesses dos EUA.

Em similaridade, os demais países precisam do “brain power” das humanidades para compreender os impactos dos Estados Unidos nos seus interesses e delinear suas estratégias. O debate sobre a Guerra do Iraque, como tantos outros, não têm interesse puramente acadêmico. Se essa guerra foi apenas uma reação a um ditador com armas de destruição em massa, logo, regiões sem essa combinação, como a América do Sul, dificilmente seriam objeto de tais intervenções. Agora, se foi, sobretudo, uma disputa pelo controle de recursos estratégicos para a competição geopolítica, o panorama é muito diferente.

O enriquecimento da dimensão civil da esfera pública: Democracia

O investimento nas humanidades conduz à formação de especialistas que também participarão da vida civil. Esses cidadãos contribuirão para elevar a qualidade do debate público, do ponto de vista geral e em suas especialidades. Isso reduz a aceitação do discurso político pelo seu valor de face e amplia a fiscalização das decisões governamentais. A pressão sobre os governantes aumenta, pois eles são forçados a prestar contas não apenas a um grupo seleto de pensamento uniforme, mas a cidadãos com formações acadêmicas diversificadas e com mais ferramentas analíticas para escrutinar as decisões. Essa coletividade “ilustrada”, como um “fantasma”, atuará mesmo no contexto de decisões sigilosas, pois os governantes saberão que suas ações serão escrutinadas.

Assim, o investimento nas humanidades enriquece a esfera pública, tanto na dimensão governamental (políticas públicas) quanto na dimensão civil (cidadania), permitindo a efetividade da democracia. Ele contribui para aprimorar as decisões e para acelerar a correção dos erros políticos. Não por acaso, os países autoritários, que geralmente enfraquecem e tentam uniformizar a esfera pública, costumam tomar decisões piores que as democracias. As desastrosas decisões bélicas da Argentina com relação às Malvinas e do Iraque com relação ao Kuwait foram feitas por governos desse tipo.

Falso binarismo

Esses poucos exemplos demonstram que as humanidades favorecem: maiores ganhos econômicos; o aprimoramento das políticas públicas; o enriquecimento do debate público; e o fortalecimento da democracia. Ainda que mais silenciosamente do que outras áreas, as humanidades atuam como um combustível cultural, político e econômico para o desenvolvimento. Sendo assim, as ciências humanas e as artes devem ser valorizadas, o que não quer dizer – importante destacar em face da influência do binarismo – reduzir a importância das ciências exatas. Um país que busca se desenvolver e que é complexo do ponto de vista econômico, social e político, requer produção de conhecimento e pessoal capacitado nas diversas áreas científicas.

Em síntese, reduzir o investimento nas humanidades é gerar um debate público esquálido e uma sociedade menos capaz de identificar oportunidades, compreender complexamente seus problemas e remendá-los. É enfraquecer a esfera pública e reduzir sua diversidade, gerando políticas públicas piores, bem como entronizar líderes menos constrangidos pela sociedade. É reduzir a diversidade dos recursos humanos para as organizações e para as produções culturais, solapando potenciais econômicos e sociais. Em uma imagem, seria repetir Tigranes que, na Batalha de Tigranocerta, liquida o mensageiro por desgostar da mensagem. Fica sem Inteligência e, apenas escutando bajuladores, termina derrotado.

 

* Mateus de Paula Narciso Rocha é mestre em Relações Internacionais (PPGRI-UFU). Pesquisa a política externa dos Estados Unidos para a China após a Guerra Fria.

** Recebido em 22 de junho de 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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