Eleições

Era de Trump: epílogo ou reboot?

Crédito: Bloomberg

Por Bruno Biasetto*

Desde 2009, ficção e realidade têm-se misturado com frequência na política americana. A surreal presidência de Donald Trump parece saída diretamente da mente fértil de algum roteirista de Hollywood. Esta trajetória lamentável teve sua culminância no último dia 6 de janeiro, quando uma turba de degenerados ligada ao presidente invadiu o Congresso americano para interromper a certificação dos resultados homologados pelo Colégio Eleitoral. Seria a invasão do Capitólio o último capítulo da Era de Trump? Ou apenas a prévia para um reboot para as próximas eleições em 2024?

Inicialmente, é muito importante reafirmar que a invasão do Capitólio não foi um evento qualquer. Foi algo extremamente grave que demonstrou que certos grupos da extrema-direita americana estão dispostos a ir até o fim para impor seu modelo de sociedade e seus valores sobre os cidadãos americanos. O fato de que esta invasão foi diretamente influenciada e incentivada pelas palavras do presidente agrava ainda mais esta situação, que encontra eco nos piores momentos da história presidencial estadounidense. Dois momentos particulares me vêm à mente: os desmandos de Richard Nixon, que culminaram no escândalo de Watergate, e a passividade conveniente de James Buchanan diante das manobras sediciosas dos separatistas sulistas em 1860.

The explosion from a police munition illuminated Trump supporters as they protested outside the Capitol building. For a time, Americans feared that a coup was in progress
FOGO NO CAPITÓLIO: Explosão de munição policial ilumina multidão de seguidores de Trump, em 6 jan. 2021, Washington, D.C. (Crédito: Leah Millis/Reuters)

Dado seu papel central na invasão do Capitólio, Trump consolida definitivamente seu lugar na galeria dos piores presidentes da história americana. E ele merece ser colocado neste patamar, pois fracassou na principal tarefa de um político em uma democracia, que é a defesa do Estado de Direito. Uma coisa é um presidente que demonstra uma certa apatia pelo Estado de Direito; outra é um líder que se aproveita do poder de seu cargo para promover abertamente a derrubada da república que ele jurou proteger. Tão impressionante quanto as ações sediciosas de Trump em seus últimos dias de mandato é o fato de a maioria dos Republicanos ainda apoiá-lo de forma incondicional.

Após sofrer um inédito segundo impeachment na Câmara dos Representantes, apenas dez congressistas Republicanos votaram pelo afastamento do presidente. Agora que o processo vai para o Senado, onde 75 votos são necessários para uma condenação, é altamente improvável que existam 15 senadores Republicanos dispostos a condenar Trump em uma votação aberta, tornando-o inelegível em 2024. Seria muito simples atribuir tudo isso a um mero cálculo político, ou ao medo que os Republicanos tradicionais sentem dos eleitores trumpistas. A razão para este apoio tem muito a ver com o modelo de conservadorismo que se instalou nos Estados Unidos desde meados dos anos 1970 do século passado e como essas forças ainda moldam o Partido Republicano.

A pior versão de si mesmo

A Era de Trump: a encruzilhada da direita americanaUm sistema político saudável deve possuir uma direita, uma esquerda e um centro que respeitem as regras do jogo e valorizem o Estado de Direito. Uma das grandes virtudes dos Estados Unidos ao longo de sua história foi o fato de que, via de regra, as forças moderadas prevaleceram sobre o populismo e o radicalismo. Dessa forma, havia um Franklin Roosevelt para conter um Huey Long, bem como havia um Dwight Eisenhower para conter um Joseph McCarthy. Indo um pouco mais longe, no século XIX, bastiões do Senado , como Henry Clay, funcionaram como um contrapeso eficiente para o populismo do presidente Andrew Jackson (1829-1837).

Por meio da ação das figuras aqui descritas se revelava a eficiência do sistema de freios e contrapesos, capaz de conter a instabilidade política. Mesmo com todos os seus problemas e controvérsias, é um fato impressionante que, em seus 245 anos de vida, a república norte-americana jamais tenha tido uma ditadura, ou sequer uma real tentativa de golpe de Estado por parte de seu vasto dispositivo militar.

A partir dos anos 1970, porém, parece haver uma perda gradual no apetite do conservadorismo americano em seguir jogando de acordo com as regras, com graves consequências para o sistema político. Dessa forma, em meu recente livro, intitulado A Era de Trump (Edipucrs, 2020), tento argumentar que havia uma força social imensa à espera de um líder. Em resumo, foi a crescente radicalização da direita americana nos últimos 50 anos que criou Trump, e não o contrário. Para que chegássemos no nível de erosão política e social representada pela invasão do Capitólio, foram necessárias décadas de desinformação e da gradual destruição dos freios e contrapesos existentes na Constituição Americana.

Em sua obra sobre a ideologia da política externa americana, Special Providence: American Foreign Policy and how it Changed the World (Routledge, 2002), Walter Russell Mead descrevia a importância da chamada “corrente Jacksoniana” na política estadounidense. Ao longo de sua história, a vida política americana foi moldada por diversos líderes populistas, tais como: Andrew Jackson, William Jennings Bryan, Huey Long, Father Coughlin e Pat Buchanan. E a existência desse populismo não foi algo necessariamente ruim, já que, muitas vezes, essa corrente política chamava a atenção para demandas sociais importantes, mas que passavam despercebidas pelo establishment. Ao mesmo tempo, o contrapeso do establishment fazia com que o potencial destrutivo do populismo não levasse todo sistema para uma crise insustentável. O Trump da campanha de 2016 foi capaz de seduzir muitos eleitores, com a clássica retórica populista norte-americana, que denunciava a corrupção, o elitismo e o poder soberano do lobby em Washington.

Nem tudo pode ser explicado apenas pelo populismo, mas é importante enfatizar como mudanças históricas e sociais alimentam a chama da extrema-direita trumpista. Quando Richard Nixon optou pela chamada “estratégia sulista” para vencer as eleições presidenciais de 1968 e 1972, foi uma escolha deliberada de apelar para o que havia de mais radical dentro da sociedade americana. É uma grande contradição que o país considerado o bastião da democracia contemporânea tenha dentro de si o estigma do racismo e de uma cultura de violência, que encontra sua expressão máxima na idolatria às armas de fogo. Em suas vitórias eleitorais, Nixon emprestou seu apoio explícito ao racismo sulista.

Richard Nixon campaigns in Philadelphia in September 1968.
CSU Archives/Everett Collection)

Além disso, Nixon dizia representar o que ele chamava de “maioria silenciosa”, que seriam os brancos suburbanos de classe média e alta. De acordo com Nixon, este grupo estava “sob cerco” pela “decadência moral” representada pela contracultura, pelos comunistas e feministas. Mesmo após a renúncia de Nixon, em 1974, os Republicanos jamais abriram mão do apoio dessas forças sociais arregimentadas por ele. No entanto, o apoio dado a alguns dos aspectos mais radicais desse conservadorismo sulista foi moderado no plano discursivo, especialmente no que dizia respeito ao racismo aberto. Este foi substituído pelo racismo velado das eras Reagan (1981-1989) e Bush Pai e Filho (1989-2009). Uma ênfase maior nas questões de liberdade econômica acabou substituindo um debate mais franco sobre os sentimentos racistas de uma parte substancial dos conservadores estadunidenses. Enquanto isso, a oposição ao aborto e o apoio ao lobby armamentista (National Rifle Association) eram exercidos de forma aberta, com excelentes dividendos eleitorais para o Partido Republicano.

A eleição de Barack Obama em 2008 acabou por mudar totalmente a lógica desse problemático equilíbrio existente no campo conservador. É curioso perceber que, em seu recente livro de memórias, Uma Terra Prometida, Obama chega, em um certo ponto do livro, a quase “pedir desculpas” por ter sido eleito presidente. Obama justificou o ódio que muitos Republicanos sentiam por ele dizendo que, no imaginário destes, ele não passava de “um negro comunista e muçulmano”. Ou seja, a encarnação dos piores medos do arcabouço cultural racista do sul dos Estados Unidos. O fato de Obama ter tido forte apoio da classe média assustou os Republicanos, que temiam o surgimento de uma nova coalizão Democrata, onde também estariam inseridas as minorias. Os analistas republicanos mais pessimistas afirmavam que a “coalizão Obama” seria imbatível pelos próximos 30 anos.

Na mente da imensa maioria dos conservadores americanos, uma Era Obama significava “socialismo e decadência moral”. A feroz oposição ao primeiro presidente negro foi a força motriz da nova onda conservadora, que encontrou nas novas redes sociais e na Fox News (TV por assinatura) o espaço perfeito para divulgação e ampliação de suas ideias. Surgido em 2009, o movimento Tea Party foi a primeira manifestação de como a pior versão do conservadorismo estadounidense havia-se tornado novamente aceitável à luz do dia. Com a lógica de “bolhas de informação” e fake news, o conservadorismo mais radical foi potencializado, e sua força histórica, galvanizada para derrotar os Democratas. A partir daquele momento, Donald Trump, divorciado e grande doador do Partido Democrata por 20 anos, tornava-se líder de uma das maiores ondas conservadoras ja vistas nos Estados Unidos. Era agora o bastião da moral e dos bons costumes.

Um intervalo chamado Joe Biden

O dano causado pelo tipo de conservadorismo populista representado por Trump não irá desaparecer tão cedo. Trump abriu a porta para duas tendências muito perigosas dentro da política americana: o racismo descarado e o desprezo pelo Estado de Direito. Para muitos analistas da política americana, o trumpismo vai gradualmente perder força, conforme a Presidência Biden for-se consolidando. Tendo, porém, a concordar com Ross Douthat, colunista do jornal The New York Times. No artigo de opinião “Is There a Trumpism after Trump?“, Douthat antevê que a Presidência Biden terá “ares de reinado de Luís XVIII após o Congresso de Viena”, quando toda instabilidade e violência da Revolução Francesa e das Guerras Napoleônicas teria sido deixada para trás. Quando, na verdade, foi apenas o prelúdio para as diversas vagas revolucionárias que varreram de vez o Absolutismo na Europa.

No caso americano, isso significa que haverá um aparente retorno à normalidade e o reforço das instituições e do Estado de Direito. Muito provavelmente, no entanto, 2024 será um novo choque feroz de forças entre o establishment liberal e o conservadorismo radical. Joe Biden é um Democrata de centro, que fez algumas concessões para a ala socialista de seu partido durante a escolha de seu gabinete e no anúncio de suas primeiras medidas, visando, assim, a unificar a sigla. Biden vai ter grandes responsabilidades, sendo a principal delas a concepção de uma política nacional de combate ao coronavírus. Algo que foi negligenciado por Trump.

O novo presidente também tem como foco a pacificação da política doméstica e a recuperação da economia americana, especialmente no que diz respeito à desigualdade e ao alto índice de desemprego. Os Estados Unidos seguem tendo uma economia pujante e uma sociedade diversa e vibrante. O equilíbrio entre trabalho e capital nos Estados Unidos deixa muito a desejar, especialmente quando comparado a outros países anglo-saxônicos, como Nova Zelândia e Canadá.

No que diz respeito à pacificação política, o cenário é ainda mais problemático. Biden é conhecido por seus talentos como conciliador e negociador desde os tempos do Senado, mas todo esse talento não será suficiente para arrefecer os Republicanos. As eleições de 2020 estiveram longe de ser o amplo repúdio ao trumpismo esperado por muitos, que angariou impressionantes 70 milhões de votos. Os próximos anos trarão grandes desafios econômicos e sociais, pois não está claro quando vamos atingir a imunidade de rebanho global em relação à covid-19. O caos e a instabilidade da pandemia, somados à intensa desinformação promovida pelas redes sociais, são campo fértil para o radicalismo político.

US President Joe Biden signs documents after being sworn-inVIRANDO A PÁGINA DE TRUMP: Presidente Biden assina ordens executivas, revertendo medidas de seu antecessor, no 1º dia de seu governo, em 20 jan. 2021, na Casa Branca (Crédito: Reuters)

Não vejo um fim imediato para a onda conservadora radical americana, e muito menos para o abandono dessa ideologia por parte do Partido Republicano. A disputa pela Casa Branca em 2024 provavelmente vai ter o próprio Trump na cabeça de chapa Republicana, ou terá alguma cópia (quiçá) mais palatável do próprio. Dessa forma, 2021 provavelmente não será o epílogo da Era de Trump, mas sim o início do reboot para 2024.

Diante do lamentável enfraquecimento das democracias nos tempos atuais, creio que vale encerrar este artigo com a reflexão (em tradução livre) que o intelectual argentino Paul Lewis fez sobre sua própria sociedade, no livro The Crisis of Argentine Capitalism (Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1992, p. 416), em meio às disputas ferozes entre militares, montoneros e peronistas em 1973. O mesmo se aplica para os Estados Unidos de hoje, onde o retorno a uma possível “normalidade” não passa de um sonho distante.

“Que não haja dúvida de que um retorno ao passado recente, à ordem estabelecida, às regras de um jogo limpo e ao bem-estar burguês não parece mais provável. Estamos caminhando para um futuro que oscila entre a anarquia e a opressão. Falando historicamente, pode-se observar que a maior parte da existência humana foi passada nessas circunstâncias, de modo que a perspectiva não deve ser muito perturbadora. A raça humana, já que o problema não é exclusivamente argentino, seguirá adiante. Podemos nos considerar sortudos por termos vivido em uma época em que o ser humano demonstrou que é possível conviver em um clima de tolerância e respeito mútuo. Isto está acabado. Este estilo de vida acabou. As gerações futuras nos invejarão por tê-lo conhecido”.

 

* Bruno Biasetto é pesquisador de Pós-Doutorado no Centro de Estudos da América Latina e Caribe da York University, Canadá. Possui Ph.D em história econômica pela Georgetown University (EUA). Atualmente pesquisa história ambiental e econômica da América Latina nos séculos XIX e XX e se dedica, ainda, ao estudo da história política dos países anglo-saxônicos. Recentemente publicou a obra A Era de Trump (Edipucrs, 2020).

** Recebido em 17 jan. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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