Política Doméstica

Executivo e Legislativo na Política Externa dos EUA: a dinâmica do processo decisório

Senador Wayne Morse (dir.) ao lado do senador William Fulbright, em audiência no Comitê de Relações Exteriores do Senado, onde o então secretário da Defesa, Robert McNamara, testemunhou sobre a evolução da Guerra do Vietnã, em 11 de maio de 1966 (Crédito: Warren K. Leffler/U.S. News & World Report Magazine)

Por Angelo Raphael Mattos*

Quando se analisa os Poderes Executivo e Legislativo em política externa nos sistemas presidencialistas, logo se considera o caso norte-americano pelo fato de o Legislativo dos Estados Unidos ter uma postura bastante atuante nos assuntos de relações exteriores. Boa parte dessa presença mais assertiva se deve aos comandos constitucionais e à própria organização política da federação estadunidense. Embora o presidente da República concentre muito do poder decisório em política externa dos EUA – até por delegação do Congresso –, o Capitólio é chave na compreensão da inserção internacional do país, no que se refere aos comandos constitucionais.

A Constituição dos Estados Unidos (1787) prevê competências relevantes do Legislativo em política externa. Destacam-se dois dispositivos que tratam especificamente do papel do Congresso no processo de aprovação de tratados internacionais, que são os artigos 1 (seção 8) e 2 (seção 2). Os dispositivos constitucionais norte-americanos atrelados à ação do Congresso nas relações exteriores tratam predominantemente de assuntos econômico-comerciais. Contudo, essa seção 2 do art. 2 prevê a consulta ao Senado quando da negociação de tratados internacionais sobre qualquer área: “ele (presidente) poderá, mediante parecer e aprovação do Senado, concluir tratados, desde que dois terços dos senadores presentes assim o decidam”.

Os Founding Fathers atribuíram ao Congresso a competência de prover a defesa comum, regular o comércio com os países estrangeiros, definir e punir atos de pirataria e crimes cometidos em alto-mar, declarar guerra, convocar e sustentar o Exército, prover e manter a Marinha e emitir normas sobre a regulamentação das forças terrestres e navais. Ao Senado, em particular, além de decidir sobre tratados internacionais, cabe ainda aprovar embaixadores para ocuparem postos diplomáticos nas representações dos EUA no exterior, o que também é prerrogativa do homólogo brasileiro.

Responsabilidade compartilhada em política externa

No artigo “A diplomacia congressual: análise comparativa do papel dos Legislativos brasileiro e norte-americano na formulação da política externa”, Cesar e Maia (2004) lembram que a Carta americana determina que o presidente é o comandante em chefe do Exército e da Marinha dos EUA e que cabe a ele negociar os tratados, bem como indicar os embaixadores norte-americanos sujeitos à aprovação do Senado, como mencionado. Portanto, grande parte do war power e das bases normativas sobre as quais se assenta a política de comércio exterior dos EUA provém do Capitólio.

Nesse sentido, do ponto de vista constitucional, o Congresso compartilha responsabilidades em política externa com o Executivo, o que resulta em imprecisões quanto aos limites da atuação de um, ou outro ator. Há vários exemplos em que o Congresso norte-americano se posicionou de forma mais assertiva diante do governo, com postura, muitas vezes, de veto player às negociações da diplomacia.

Entre os casos emblemáticos, lembra-se de quando o Legislativo não ratificou a entrada dos EUA na Liga das Nações (1919), na Organização Internacional do Comércio (1947/1948) e no Tribunal Penal Internacional (1998). Em 1994, por exemplo, durante o governo de Bill Clinton, o Congresso emitiu uma ordem para a retirada das tropas norte-americanas da Somália. Clinton também enfrentou grande resistência do Congresso quando da aprovação do Acordo de Livre-Comércio da América do Norte (NAFTA, na sigla em inglês). Depois disso, o Capitólio negou a concessão de fast-track, posteriormente denominado Trade Promotion Authority, em várias ocasiões.

Logo após o período de vetos oriundos do Legislativo em fins da década de 1940, na esteira do movimento conservador em política externa, que se desenhava no Congresso estadunidense, o Capitólio demonstrou novo ímpeto de atuação frente ao Executivo. Apresentado em 1953, o projeto de emenda constitucional Bricker (Bricker Amendment) tinha como objetivo conceder ao Legislativo o poder de anular os acordos executivos. Esses dispensam o crivo do Legislativo em matéria de política externa. Tal emenda acabou sendo derrotada pouco depois de ter sido apresentada, o que fortaleceu o poder do Executivo nas relações internacionais e resultou em um período de cerca de 15 anos de relativa anomia parlamentar nas relações exteriores, como aponta James Lindsay no livro Congress and the Politics of US Foreign Policy (1994). Posteriormente, o Congresso permitiu o amplo uso de acordos executivos para formalizar condutas em política externa, desde que importantes questões ainda passassem pelo Senado na forma de tratados.

Tipos de acordo

De modo geral, há três principais tipos de acordos internacionais que são incorporados ao ordenamento jurídico norte-americano. Cada um deles apresenta uma especificidade quanto ao processo de internalização. A primeira espécie acontece pela via do fast-track. Estes acordos têm sempre natureza comercial. Embora os termos da negociação tenham sido concedidos tanto pela Câmara quanto pelo Senado, ao final das tratativas, não precisam passar novamente pelo Congresso, é uma anuência prévia. Os acordos via fast-track não podem ser emendados, e a votação é por maioria simples, o que contribui para a celeridade do processo.

Um segundo tipo são os acordos executivo-congressistas, que se constituem em um meio termo entre aqueles autorizados por meio do Trade Promotion Authority e os tratados de temas em geral. Do ponto de vista institucional, têm a rapidez de um acordo conduzido pelo Executivo, mas precisam ser aprovados, em sua fase final, pelo Legislativo.

Já os tratados sobre temas gerais, que são uma terceira via de acordos, necessitam da aprovação de dois terços do Senado e também são passíveis de sofrer emendas. Vale lembrar que todos esses processos sofrem a influência direta dos grupos de interesse, como o lobby, que têm estreita relação com as bases de apoio de deputados e senadores (grassroots). As questões de política externa também são amplamente discutidas nos diferentes comitês temáticos de ambas as Casas, sobretudo no âmbito do Comitê de Meios e Recursos da Câmara de Representantes, e no Comitê de Finanças do Senado, bem como no Subcomitê de Comércio Internacional, Alfândega e Competitividade Global.

Principais atores no Executivo

No âmbito do Executivo e do Legislativo, são muitos os funcionários da Casa Branca e de departamentos e órgãos ligados ao governo e aos congressistas que realizam as diversas e complexas atividades da política externa dos EUA. É provável que os funcionários de Washington, que tratam de política internacional, tenham contato muito regular com o presidente no dia a dia de seus ofícios.

O conselheiro de segurança nacional chefia o Conselho de Segurança Nacional do presidente, um grupo de funcionários de alto escalão de várias agências de política externa. Costuma ser o principal assessor de política externa do presidente. Também se reporta ao presidente o diretor da Central Intelligence Agency (CIA). Ainda mais alto nessa hierarquia está o diretor de Inteligência Nacional, uma posição criada no âmbito das organizações governamentais norte-americanas surgidas no pós-11/9, que supervisionam toda comunidade de Inteligência do governo dos EUA. Há, ainda, o Estado-Maior Conjunto (Chiefs of Staffs) composto por um membro do Exército, um da Marinha, um da Força Aérea e Fuzileiros Navais, somados a um presidente e a um vice-presidente.

Além dos que trabalham diretamente na Casa Branca, ou no Escritório Executivo (Executive Office, uma espécie de Casa Civil dos EUA), há vários funcionários ligados ao governo que reportam ao chefe do Executivo sobre questões afeitas à política externa. O principal deles é o secretário de Estado, que supervisiona o Serviço de Relações Exteriores a partir do gabinete do presidente.

Também está diretamente atrelado ao Executivo e às suas funções em política externa o secretário da Defesa, que é o chefe civil (não militar, portanto) das Forças Armadas, instalado no Departamento da Defesa. Um terceiro funcionário de gabinete é o secretário de Segurança Interna, cuja função é estratégica e fundamental em política externa, uma vez que supervisiona o enorme Departamento de Segurança Interna, que está fortemente relacionado com questões internacionais.

Nesse desenho institucional em política externa, também integram o Executivo outros departamentos, como o da Agricultura e o Escritório de Representação Comercial dos EUA (United States Trade Representative – USTR).

Ao se olhar mais detalhadamente para as competências constitucionais em política externa, é possível compreender parte dos embates que ocorrem ao longo do processo decisório entre Executivo e Legislativo nos EUA. Há muitos outros aspectos importantes que contribuem para o entendimento de como surgem as diretrizes da política externa emanada de Washington, como quem é maioria na Câmara e no Senado (se situação, se oposição); a prevalência de valores tipicamente republicanos, ou tradicionalmente democratas; e a influência dos lobbies e grupos de pressão nesse jogo político.

A compreensão do desenho institucional e dos tipos de acordos celebrados é, no entanto, um dos caminhos possíveis para se entender alguns dos choques em política externa, assim como inflexões, que refletem o compasso da política interna, os meandros de sua institucionalidade, além de um Congresso bastante atuante também em matéria de relações exteriores.

 

* Angelo Raphael Mattos é doutorando e mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisador no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), com apoio CAPES.

** Recebido em 29 jun. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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