China e Rússia

EUA e as Duas Sessões da China: áreas de atrito aumentam com maior evento político chinês do ano

Encontro Anual do Congresso Nacional do Povo (Crédito: Xinhua)

Por Rúbia Marcussi Pontes*

Após dois meses de adiamento devido à pandemia da Covid-19, teve início, em 22 de maio, em Pequim, o maior evento anual político da China, mais conhecido como as Duas Sessões (Two Sessions), com a inauguração de sessões do Comitê Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC, da sigla do inglês) e do Congresso Nacional do Povo (NPC, da sigla do inglês). O CCPPC é o órgão consultivo político de maior importância na China, responsável pela elaboração de políticas que foram analisadas e votadas pelo NPC, considerado o mais alto órgão legislativo chinês. Se tal evento político já era importante em anos posteriores, seu significado foi ainda mais assertivo em 2020, dada a disposição chinesa de retomar e sustentar seu desenvolvimento econômico, algo observado de perto pelos Estados Unidos.

O premiê chinês, Li Keqiang, deu o tom inicial dos debates quando da sessão de abertura do NPC, ao discutir o aguardado relatório de trabalho do governo, o qual costuma incluir as metas econômicas da China. Após a contração de 6,8% no Produto Interno Bruto (PIB) no primeiro trimestre de 2020, a China não definiu, pela primeira vez, uma meta específica para o PIB de 2020, principalmente por conta dos efeitos da pandemia e pelo aumento das incertezas em relação à economia e ao comércio mundial, como anunciou o premiê. Já o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou a projeção do PIB chinês em 1%, para 2020, e 8,2%, para 2021.

Aumento na defesa e lei de segurança nacional para Hong Kong

Outros indicativos foram, porém, anunciados pela China durante as Duas Sessões, com destaque para o maior pacote de estímulo fiscal de sua história, o qual chegará a mais de US$ 559 bilhões (aproximadamente 4 trilhões de iuanes). Também foi anunciado o déficit orçamentário de aproximadamente 3,6% do PIB em 2020, contra 2,8% em 2019 – o que indica a disposição do governo central em aumentar os gastos para gerir os efeitos da crise provocada pela Covid-19.

Foi divulgada também a expectativa de que a taxa de desemprego urbano se aproxime de 6%, comparada a 5,5% em 2019, uma grave preocupação para o governo chinês. Nesse sentido, é digno de nota o reconhecimento da queda do consumo e de investimentos na economia chinesa e a afirmação do premiê, reforçada pelo presidente Xi Jinping, sobre a linha de ação estatal voltada para a criação e a manutenção de empregos na China – especialmente para os mais de oito milhões de estudantes que se formarão no país somente neste ano e que enfrentarão um mercado de trabalho adverso.

Por fim, mas não menos importante, o orçamento militar chinês foi anunciado, com aumento de 6,6% em relação a 2019, totalizando em torno de 1,2268 trilhão de iuanes (US$ 178,16 bilhões). Outra questão que chamou a atenção da comunidade internacional e dos Estados Unidos, em especial, foi o anúncio de uma nova lei de segurança nacional para Hong Kong, região administrativa especial da China. A nova lei está baseada no artigo 23 da Lei Básica de Hong Kong, a qual, por sua vez, é guiada pelo princípio de “um país, dois sistemas”, e permite que Pequim defina quais atos serão considerados subversivos, terroristas, ou de interferência externa na região. Tal lei foi encarada como uma reação expressiva de Pequim após os diversos protestos pró-democracia ocorridos em Hong Kong, ao longo de 2019 – embora as divergências de interpretação sobre os limites da autonomia de Hong Kong em relação à China continental já viessem escalando, nos mais diversos âmbitos, nos últimos anos.

EUA e as Duas Sessões

As Duas Sessões desse ano aconteceram em um contexto de aprofundamento do tensionamento das relações sino-americanas, especialmente com as constantes acusações do presidente estadunidense, Donald Trump – e de outras figuras de destaque, como seu vice-presidente, Mike Pence – de que a China deveria ser responsabilizada pela pandemia. Os Estados Unidos foram pouco discutidos, porém, no discurso de abertura de Li Keqiang: uma única menção foi feita com relação à necessidade de implementação da primeira fase do acordo comercial, firmado entre ambos os países, em janeiro de 2020.

Lembrado pelo premiê, o Economic and Trade Agreement between the Government of the United States of America and the Government of the People’s Republic of China trata de temas como propriedade intelectual, transferência de tecnologia e comércio de produtos agrícolas, entre outros. Com esse acordo, a expectativa de Washington é que a China aumente, em pelo menos US$ 200 bilhões, a importação de bens agrícolas e manufaturados dos EUA, até 31 de dezembro de 2021.

Embora não citar um Estado diretamente seja costume nesse momento, tal fato poderia indicar a dificuldade que Pequim tem encontrado para ressaltar os aspectos positivos das relações bilaterais contemporaneamente. Nesse sentido, chegando a seu final em 28 de maio, as sessões do NPC e do CCPCC, seus anúncios e decisões foram acompanhados por Washington, com reações mais imediatas ocorrendo principalmente com relação a temas já caracterizados por serem áreas de atrito entre os dois Estados.

Em primeiro lugar, a resposta chinesa ao novo coronavírus, amplamente discutida nas Duas Sessões, continuou reverberando na administração Trump. Isso foi demonstrado pelo secretário de Estado, Mike Pompeo, que afirmou que a China não tem sido transparente, nem responsável, em relação à pandemia. Pompeo zombou do anúncio chinês de US$ 2 bilhões para ajuda mundial, dizendo: “[eu] espero ansiosamente para ver o cumprimento da promessa [dos US$ 2 bilhões]”. Para ele, a contribuição chinesa não compensaria os verdadeiros custos impostos pelo gigante asiático ao mundo – isso em um contexto em que o presidente Trump anuncia o corte de verbas para a Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma política permanente.

Mais especificamente com relação aos temas abordados nas Duas Sessões, Washington observou de perto as decisões relacionadas aos gastos militares e à tecnologia de ponta e deixou isso claro, ao anunciar, no mesmo 22 de maio, a restrição de mais de 30 empresas e de outras organizações chinesas à tecnologia estadunidense. Tal decisão, segundo a administração Trump, foi uma resposta à alegada colaboração dessas entidades com o governo chinês, em especial na construção de um sistema de vigilância de alta tecnologia.

Ainda nesse sentido, Washington reforçou sua constante preocupação com o uso da tecnologia de ponta para a potencialização da capacidade estatal de vigilância e de controle, por parte de Pequim, sobre regiões como Hong Kong, face à nova lei de segurança nacional aprovada pelo NPC (embora ela ainda precise ser aprovada por outros dois comitês nos próximos meses). O Departamento de Estado americano sinalizou, logo no início das Duas Sessões, preocupação com os avanços de Pequim nesse sentido, relembrando o status especial de Hong Kong como um centro financeiro mundial. Nas palavras do presidente Trump na época, ainda sem saber os detalhes da legislação pretendida pela China, “se isso acontecer, [nós] vamos cuidar do assunto veementemente”.

E assim fez o presidente Trump apenas um dia após a conclusão das Duas Sessões, em 29 de maio, quando anunciou que suspenderia o tratamento aduaneiro especial (special status on trade) concedido pelos Estados Unidos a Hong Kong, bem como o tratamento especial para assuntos como extradição e viagens. Na prática, contudo, tal medida teria poucos efeitos. Segundo Nicholas Lardy, do Institute for International Economics, Hong Kong exporta mais de US$ 45 bilhões para os Estados Unidos, mas apenas 1% seria produzido, de fato, em Hong Kong e sujeito a tarifas que, sem o status especial, deveriam ser aplicadas. O restante das exportações já seria de manufaturados produzidos na China e enviados para os EUA por Hong Kong e, assim, já estariam sujeitas às tarifas rotineiras.

Desde então, a administração Trump não anunciou nenhum plano de ação detalhando sua política para Hong Kong. A fala de Trump teria sido, nesse sentido, mais simbólica, em meio às suas constantes tentativas de antagonizar a China, com o chamado “trunfo” da China (playing the China card), usado durante sua campanha partidária para as eleições de novembro de 2020. Tal estratégia é empregada rotineiramente por candidatos aos mais diversos cargos públicos: endurecem o discurso sobre a China durante suas campanhas eleitorais e, posteriormente, tendem a suavizá-los quando eleitos.

‘Guerra Fria’ e jogo eleitoral

Trump segue, porém, apostando em uma retórica nessa direção, ressaltando constantemente, como seu oponente democrata na corrida presidencial de 2020, Joseph Biden, não seguiria a mesma linha de ação. O presidente estadunidense também busca conquistar o eleitorado, em um contexto em que a opinião pública sobre a China é cada vez mais negativa – tanto entre eleitores democratas, quanto republicanos – e em que há crescente apoio bipartidário das duas alas do Congresso para a adoção de medidas mais duras em relação a Pequim. Essa postura foi reforçada pela aprovação por consenso no Senado, em 25 de junho, do Hong Kong Autonomy Act, que prevê sanções para negócios e indivíduos que venham a contribuir para a restrição da autonomia de Hong Kong. O texto ainda precisa passar pela Câmara antes de chegar à mesa de Trump.

A resposta chinesa não será, contudo, necessariamente branda em meio ao crescente debate sobre uma nova “Guerra Fria” entre ambos os países. O ministro das Relações Exteriores chinês, Wang Yi, endureceu o tom, ainda em paralelo à sessão da NPC, em 24 de maio, ao afirmar que “há, além da devastação provocada pelo novo coronavírus, um vírus político se espalhando pelos Estados Unidos. Esse vírus político usa toda oportunidade para atacar e difamar a China. Alguns políticos ignoram os fatos mais básicos, inventam muitas mentiras e criam muitos complôs contra a China”.

O chanceler também fez menção à aparente “mentalidade de Guerra Fria” que impera entre as duas nações – talvez esta tenha sido, inclusive, a primeira vez que um representante de alto escalão do governo chinês tenha usado essa designação para tratar do status das relações sino-americanas contemporâneas. Wang Yi reforçou, contudo, que a China está preparada para trabalhar com a comunidade científica internacional, desde que haja respeito pela soberania de todos os países. Ao mesmo tempo, a China utilizou uma importante carta na manga e restringiu, em meados de junho, as exportações de terras raras, aumentando o valor de pelo menos 17 metais não ferrosos, dos quais os Estados Unidos são dependentes para a fabricação de inúmeros itens tecnológicos. E reações mais fortes de Pequim já são esperadas com relação ao Hong Kong Autonomy Act.

É certo que Washington acompanhou as Duas Sessões, atentamente, e seus anúncios mais imediatos, como o que foi feito em relação a Hong Kong, sugerem que suas orientações gerais para a China continuarão baseadas em uma abordagem mais dura, na linha do que foi proposto pelo U.S. Strategic Approach to the People’s Republic of China, documento elaborado pela administração Trump e enviado para o Congresso em 20 de maio. Tal documento reconhece a competição estratégica entre os dois Estados, a qual se dá nas mais diversas áreas, e é esse reconhecimento que deve orientar o entendimento da confrontação atual entre os Estados Unidos e a China. Neste contexto, os esforços estadunidenses estão voltados para impedir que o país perca sua posição na balança de poder.

 

* Rúbia Marcussi Pontes é doutoranda e mestra em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP-IFCH), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pesquisadora do INCT-INEU e bolsista CAPES. E-mail: rubiamarcussi@gmail.com.

** Recebido em 30 de maio de 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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