Brasil

Alinhamento do Brasil aos EUA não blinda conquistas em comércio

Atual diretor-geral da OMC, o brasileiro Roberto Azevêdo

Por Carolina Loução Preto*

No dia 10 de fevereiro, os Estados Unidos removeram o Brasil e outras nações de uma lista interna que garantia a países classificados como em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio (OMC) tratamento diferenciado em investigações sobre subsídios. Os outros países excluídos da lista foram Albânia, Argentina, Armênia, Bulgária, China, Colômbia, Costa Rica, Geórgia, Hong Kong, Índia, Indonésia, Cazaquistão, República do Quirguistão, Malásia, Moldova, Montenegro, Macedônia do Norte, Romênia, Cingapura, África do Sul, Coreia do Sul, Tailândia, Ucrânia e Vietnã.

Na prática, a exclusão facilita a aplicação de tarifas antissubsídios por parte dos EUA contra exportações do Brasil, bem como dos demais países da lista, que forem alvo de investigações de defesa comercial em Washington. Conhecidas como medidas compensatórias, ou antissubsídios, as tarifas podem ser impostas caso, ao final do processo investigatório, as autoridades dos EUA concluam que as exportações de outros países foram beneficiadas por certos subsídios governamentais e causaram dano à indústria nacional nos EUA.

O acordo da OMC sobre subsídios e medidas compensatórias (ASMC) disciplina a maneira como os Estados-membros da organização conduzem suas investigações domésticas sobre subsídios, que são processos administrativos com o propósito averiguar se os requisitos legais para a aplicação de medidas compensatórias foram preenchidos. Conforme as regras do ASMC, não podem ser adotadas tarifas antissubsídios contra exportações de países considerados em desenvolvimento na OMC, se tais exportações tiverem recebido uma margem de subsídio tida como mínima, de até 2%. Para os países desenvolvidos da Organização, o critério para que o subsídio seja considerado mínimo é de apenas 1%. Portanto, com a mudança do dia 10, os EUA passarão a aplicar aos países retirados da lista o mesmo tratamento atribuído aos países desenvolvidos da OMC, isto é, o teto de subsídios mais restritivo, de 1%.

Críticos argumentam se tratar de ataque ao multilateralismo

O problema com a decisão é que países retirados da lista, incluindo o próprio Brasil, continuam a ser enquadrados dentro da OMC como membros em desenvolvimento. Ainda que adote a listagem desenvolvida pela ONU para determinar quais dos seus membros são países de menor desenvolvimento relativo, a OMC não estabelece critérios objetivos para distinguir entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento (PEDs). E os membros da organização sempre se autodeclararam como desenvolvidos, ou em desenvolvimento.

Por essa razão, representantes da indústria brasileira argumentaram que a ação unilateral dos EUA é ilegal no âmbito da OMC, uma vez que foram excluídos Estados-membros que ainda seriam elegíveis a tratamento diferenciado em investigações, de acordo com as atuais regras da organização. Esse seria mais um na série de golpes desferidos pelo governo Trump ao multilateralismo comercial nos últimos anos.

Há algum tempo, a administração Trump vem criticando duramente as consequências da prática de autoclassificação dos países na OMC, uma tradição herdada do GATT (1986-1994), o acordo internacional que precedeu a organização. A insatisfação dos EUA se deve ao fato de o procedimento permitir que economias relevantes – como Brasil e Índia, mas sobretudo China – continuem a se autodeclarar países em desenvolvimento na OMC e a obter o chamado tratamento especial e diferenciado (TED) atrelado a esse status.

O tratamento mais favorável para PEDs em investigações sobre subsídios é apenas um dos dispositivos de TED que existem hoje nos diversos acordos da OMC. Regras semelhantes dificultam o uso de outros tipos de medidas de defesa comercial – isto é, direitos antidumping e salvaguardas – contra exportações de PEDs. Outros mecanismos de TED permitem que países em desenvolvimento assumam obrigações comerciais menos ambiciosas, como cortes de tarifas e de subsídios menores do que os realizados por países ricos.

Outros exemplos são prazos maiores, ou assistência técnica, para que os PEDs implementem novas obrigações comerciais e condições facilitadas para que países em desenvolvimento firmem acordos preferenciais de comércio entre si. Além disso, preferências comerciais podem ser concedidas aos PEDs unilateralmente por países ricos. Entre elas, tem-se o Sistema Geral de Preferências dos EUA, que isenta de tarifas de importação um grupo selecionado de produtos exportados por PEDs elegíveis e, até o momento, inclui o Brasil.

Pressão dos EUA para alterar status de vários PEDs

Para os EUA, países como China, Brasil e Índia fizeram grandes avanços econômicos e sociais nas últimas décadas e não deveriam mais se apoiar no status de países em desenvolvimento para deixar de fazer concessões e assumir obrigações em negociações comerciais. Por essa razão, o governo Donald Trump vem pressionando por alterações na OMC.

Em memorando de julho de 2019, o presidente Trump instruiu o representante comercial dos EUA (USTR, na sigla em inglês) a buscar mudanças na OMC para impedir os membros da organização que, no julgamento do USTR, indevidamente se autodeclaram países em desenvolvimento de se beneficiarem de flexibilidades nas regras e negociações da OMC. O documento afirma ainda que, caso o USTR constate que não houve progresso substancial na consecução desse objetivo, o órgão poderá deixar de tratar os referidos países como países em desenvolvimento para fins da OMC, ou mesmo suspender apoio ao ingresso dos mesmos na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), quando cabível.

De acordo com proposta rejeitada por outros membros da instituição ano passado, os EUA têm defendido que deixem de desfrutar de tratamento especial e diferenciado na OMC os países que atenderem aos quatro critérios abaixo: i) ser classificado como país de alta renda pelo Banco Mundial; ii) representar ao menos 0,5% do comércio global de mercadorias; iii) participar do G-20; iv) ser membro da OCDE, ou ter iniciado o processo de ingresso na OCDE.

Embora tenham sido mais de uma vez recusados nas reuniões da OMC em que foram propostos, o USTR aplicou os quatro parâmetros acima para justificar sua decisão de remover o Brasil e outros da lista de PEDs para investigações de subsídios no dia 10. Segundo o órgão do governo americano, a listagem de 1998 precisava ser atualizada pelos novos critérios.

Apesar de críticas de setores da indústria, o governo brasileiro tem minimizado o impacto negativo da exclusão da lista para o Brasil, argumentando que se trata de uma redução pequena no teto de subsídios, uma mudança muito pontual.

Apesar de limitada, ação dos EUA revelou diferença entre o que o Itamaraty afirmava ter acordado com os EUA e o que vem aceitando na prática

Embora tenha alcance limitado, a recente decisão dos EUA expôs um problema relevante no discurso até então promovido pelo Itamaraty sobre o anúncio do governo Bolsonaro, em março de 2019, de que o Brasil começaria a abrir mão do tratamento de país em desenvolvimento nas negociações futuras da OMC em troca do apoio dos EUA a sua entrada na OCDE. A decisão rompeu uma tradição de protagonismo brasileiro entre os países em desenvolvimento na OMC, contrastando com a postura de outros atores relevantes como Índia e China, bem como de vários outros membros da instituição, que se mostraram resistentes e críticos às demandas dos EUA.

Em mais de um episódio, o secretário de Política Externa, Comercial e Econômica do Ministério das Relações Exteriores, embaixador Norberto Moretti, afirmou que o compromisso do Brasil de começar a renunciar ao TED se aplicaria somente a negociações em andamento e futuras na OMC, sem qualquer impacto sobre flexibilidades já existentes em favor do Brasil nos acordos da organização. Em entrevista de setembro de 2019, o diplomata esclareceu: “(…) não se mexe no passado”. Na mesma linha, em audiência diante da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado em junho do mesmo ano, o embaixador afirmou que:

 

O anúncio do Governo brasileiro não retroage, não se aplica aos direitos, aos benefícios e às flexibilidades de que goza o Brasil nos acordos existentes na OMC. Ele vale apenas para, como diz o texto, (…) para as negociações na Organização Mundial do Comércio. Ora, os acordos hoje vigentes não estão sob negociação na OMC, não se espera que eles sejam reabertos, que sejam renegociados. Portanto, nenhuma alteração dos nossos direitos vigentes decorre do anúncio do Presidente da República em março. Em algum momento, a imprensa, especialistas se puseram a fazer cálculos quanto às perdas que nós teríamos, que benefícios nós deixaríamos de ter, mas não é o caso, repito, porque os direitos estão intocados.

 

O embaixador Moretti ainda esclareceu que a decisão do governo Bolsonaro não significa que o Brasil tenha declarado que deixou de ser país em desenvolvimento para nenhum efeito e que o país não se posicionou sobre a prática da autoclassificação.

Ação dos EUA eliminou benefícios de TED do Brasil que o Itamaraty dizia que seriam preservados

Em desacordo com os esclarecimentos do diplomata, a ação do governo Trump, no dia 10, claramente alterou conquistas passadas, privando o Brasil de benefícios de TED já existentes no acordo sobre subsídios e medidas compensatórias da OMC. A decisão do USTR tem como alvo principal a China, país que os EUA acusam de abusar do uso de subsídios e que é o maior investigado por Washington em casos de defesa comercial. A mudança facilitará a aplicação de tarifas antissubsídios às exportações chinesas. Isso não significa, contudo, que ela não poderá ter efeitos indesejados para exportadores brasileiros.

Apesar de ser um dos poucos países que cederam às pressões do EUA, é provável que o Brasil não seja poupado de novas medidas pelo governo Trump

O uso de medidas de defesa comercial sempre foi caro aos EUA, sendo um dos temas no centro da insatisfação de Washington com uma espécie de “tribunal de segunda instância” existente na OMC. E a administração Trump se orgulha de ter aumentado significativamente o número de investigações abertas e de medidas de defesa comercial impostas contra outros países nos últimos anos. Além disso, o tema dos subsídios industriais é bastante relevante para os EUA atualmente. O país tem pressionado na OMC por novas regras para estimular a notificação e conter o uso de subsídios industriais, agenda que, caso prospere, ampliaria as possibilidades para aplicação de tarifas antissubsídios a produtos brasileiros.

O governo afirma que o Brasil não será afetado, porque não há, atualmente, investigação em curso sobre produtos brasileiros nos EUA, nem previsão de que isso ocorra, uma vez que o Brasil tem reduzido os subsídios. No entanto, exportações brasileiras já foram alvo de sobretaxas dos EUA recentemente. O governo Trump é notório por ameaçar, ou mesmo impor tarifas contra diferentes países, incluindo aliados, mesmo quando muitos entendem que são frágeis as justificativas legais da medida. Nesse cenário, nada realmente impede que investigações contra o Brasil sejam iniciadas e novas medidas sejam impostas.

Mais do que isso, porém, o furo no discurso do Itamaraty sugere que não há qualquer entendimento bilateral que impeça os EUA de tomarem mais medidas capazes de afetar negativamente interesses exportadores brasileiros, a despeito do que o governo Bolsonaro entende, ou afirma ter de fato acordado com a administração Trump. Isto é, apesar de ter sido um dos poucos países que se dispuseram a ceder às pressões dos EUA até agora, ao que indica a última ação do USTR, o Brasil não seria poupado de novas ações do governo Trump para privar PEDs de dispositivos de TED já existentes.

Além dos mecanismos em favor de PEDs no que se refere a investigações sobre subsídios, os EUA também poderiam, por exemplo, revogar dispositivos semelhantes que são aplicados a casos sobre antidumping e salvaguardas, ou mesmo excluir países como o Brasil dos benefícios do seu SGP (Sistema Geral de Preferências), ampliando possíveis impactos negativos para interesses exportadores.

Apesar de ser descrita como parte de um entendimento bilateral, a decisão do Brasil de renunciar ao TED parece, cada vez mais, ter sido tomada no escuro, não apenas pela evidente incerteza sobre suas implicações para negociações futuras, uma vez que o país certamente poderá necessitar de flexibilidades quanto aos diversos temas que possam emergir, mas também em relação às implicações para benefícios já existentes.

 

* Carolina Loução Preto é doutora em Relações Internacionais, pesquisadora do INCT/INEU e autora do livro Os Estados Unidos e a OMC: Reflexões sobre o papel dos EUA no sistema multilateral de comércio (2015).

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