Os planos de Trump para mudança de regime no Irã

Insanos, ruins e uma oportunidade para a reconciliação entre Rússia e Europa

 

por Anatol Lieven

Traduzido do Valdai Discussion Club*

 

Para membros poderosos da administração Trump apoiados pelo lobby de Israel, está cada vez mais claro que a exigência de uma renegociação do acordo nuclear com o Irã é apenas o preâmbulo para uma estratégia de mudança de regime no Irã. Isto foi explicitamente afirmado por alguns deles. As doze exigências que Mike Pompeo fez ao Irã também não podem ser vistas sob qualquer outra ótica, uma vez que várias delas pressupõe a perda efetiva da soberania iraniana e que, certamente, são inaceitáveis, mesmo como base para negociações. Elas parecem ter apoio total de John Bolton e seus aliados, bem como do setor neoconservador em geral.

A mudança de regime, por sua vez, é claramente um caminho para a debilitação ou destruição do próprio Estado iraniano. Depois das terríveis experiências do Iraque, da Líbia e da Síria (como do Afeganistão nos anos 90), nenhum observador minimamente inteligente e honesto pode ver essa estratégia dos Estados Unidos sob qualquer outra ótica. Quanto aos proponentes da mudança de regime, dada a força inebriante do nacionalismo ideológico norte-americano, é difícil dizer até onde vai a auto-ilusão e onde as mentiras e hipocrisias começam.

O Estado norte-americano e suas instituições foram moldados fundamentalmente pela Guerra Fria e – tão desastrosamente quanto – pela forma como essa luta terminou. Essa vitória americana (como é vista nos Estados Unidos) foi um momento crucial na história moderna americana. A revolta dos europeus orientais, sua integração bem-sucedida à ordem estratégica e econômica liderada pelos Estados Unidos e a destruição da União Soviética continuam sendo vistas como paradigmas de estratégia contra o Irã, a Rússia e a China por neoconservadores e seus aliados. E se é difícil entender como eles podem acreditar que tal estratégia resultará em um Irã democrático, é muito mais fácil perceber como eles conseguem se convencer de que uma combinação de protesto “liberal” e separatismo étnico pode destruir o Irã enquanto país.

Por sorte, é muito improvável que esta estratégia funcione – entre outras razões, pela oposição de outros membros da administração Trump, de inúmeros mais nas amplas áreas internacional e de segurança e da maioria do Pentágono. Esses temem também o reforço que tal campanha daria às esperanças sauditas de conseguir a hegemonia regional e à disseminação do fundamentalismo sunita – bem como, é claro, ao risco de levar os Estados Unidos a uma nova guerra que dividiria ainda mais o Ocidente e fortaleceria a influência da China e da Rússia. Apesar das artimanhas de Benjamin Netanyahu e do lobby israelense nos Estados Unidos, a estratégia de procurar inviabilizar o Irã é contestada por grande parte do setor de segurança israelense.

Mentes mais sábias percebem que essa estratégia ignora a força do Estado iraniano e o tremendo poder do nacionalismo naquele país. Como escreveu Michael Axworthy, o especialista britânico sobre o Irã: “Dada a longa história de interferência estrangeira no país (o golpe inspirado pela CIA que removeu o primeiro-ministro Mohammad Mosaddeq em 1953 é apenas um exemplo), qualquer suspeita de apoio estrangeiro é uma bomba política no Irã”.

Isso também é verdade para os secularistas iranianos. Conforme escreveu Mahsa Rouhi na revista Foreign Policy, “apesar de décadas de apoio estrangeiro, as ditas forças de oposição, tão enaltecidas pelos neoconservadores norte-americanos, têm sido ineficazes em reunir qualquer apoio dentro do país para que possam ser consideradas como uma opção viável de substituição do regime”. Se a desestabilização do Irã pelos Estados Unidos der sinais de êxito, sugeriu ela, provavelmente resultará na tomada de poder por radicais militares da Guarda Revolucionária.

Essa estratégia do governo norte-americano também exagera muito o potencial de secessão étnica no Irã. Os curdos, os Balúchis e os árabes podem estar descontentes, mas também podem ser controlados. O suporte ao movimento separatista baluchista Jundallah também significa o apoio dos Estados Unidos a uma força islâmica intimamente ligada à Al Qaeda – uma política insana da parte de Washington.

Uma ameaça real ao estado iraniano seria se os azerbaijanos e outros povos turcos (que somam 40% da população) pudessem se revoltar contra Teerã. Isso, no entanto, é altamente improvável por uma característica particular da história iraniana, segundo a qual durante grande parte do tempo, o Irã foi governado por dinastias turcas – incluindo a dos safávidas, a maior de todas. Como resultado, os azerbaijanos estão completamente integrados ao Estado iraniano e às elites clericais – incluindo seu Líder Supremo, o próprio aiatolá Khamenei

O Irã, é claro, pode ser seriamente prejudicado pelas sanções de Washington. Mas mesmo que a União Europeia (uma vez mais) se curve ante à pressão norte-americana, as esperanças dos Estados Unidos provavelmente serão frustradas pelo poder econômico da China – um fator completamente inexistente durante o colapso da União Soviética. A China até agora desempenhou um papel muito cauteloso no Oriente Médio; mas o Irã possui grande importância para Pequim tanto como fonte de energia quanto como elemento-chave em sua Iniciativa “Faixa e Estrada” (o Cinturão Econômico da Rota da Seda e a Rota da Seda Marítima do Século XXI). No final, embora não seja provável que a China se comprometa a ajudar o Irã de forma total, possivelmente dará o suficiente para manter a economia iraniana com o nariz fora da água. A Índia, a mais nova “aliada” norte-americana, continuará comprando energia iraniana independentemente das sanções dos Estados Unidos.

Mas esses planos do governo norte-americano serem estúpidos e irrealistas não os torna menos perversos. Eles são uma violação grosseira do direito e da tradição internacional; pretendem destruir um acordo razoável que goza de apoio esmagador da comunidade internacional; ameaçam trazer ainda mais guerra e instabilidade ao Oriente Médio, incluindo uma escalada das tensões entre sunitas e xiitas; podem causar uma nova onda de refugiados muçulmanos para a Europa, o que provavelmente resultaria no fim da democracia liberal em vários países; prometem o fortalecimento da Arábia Saudita, que é um inimigo ideológico da civilização moderna; e, acima de tudo, eles iriam afundar a população iraniana na mesma anarquia e miséria sofrida pelos iraquianos e líbios. Essas são consequências pelas quais os Estados Unidos se recusariam, logicamente, a assumir qualquer responsabilidade.

O fato de que os homens responsáveis ​​pela catástrofe iraquiana possam mais uma vez liderar a política americana (apoiados novamente por neoconservadores e por “falcões liberais” no Partido Democrata) é um indicio perigoso de uma doença no sistema político do país, que talvez a longo prazo possa se mostrar mortal: a solidariedade de instituições que enfraqueceram (e até mesmo destruíram) a crença de que os membros da elite devam pagar por seus erros e crimes; as lealdades partidárias e ideológicas tão rígidas e fanáticas que aboliram o pensamento racional em muitas áreas da política; a dominância de mitos nacionalistas e de uma história mitificada sobre evidências e argumentos racionais nos debates público; o imenso poder dos pequenos lobbies.

O plano contra o Irã é também, de certo modo, um resultado lógico da maneira como o governo Trump lida com o mundo de forma geral. Inicialmente, era até possível simpatizar com o que foi ridicularizado como sua agenda “isolacionista”, porque ela parecia reconhecer que muitos compromissos exteriores e aventuras estrangeiras do país não eram, de fato, do interesse dos Estados Unidos e dos americanos comuns. Como alguns desses compromissos incluíam a aceitação de condições econômicas menos favoráveis ​​aos Estados Unidos, essa abordagem embasou – ou teria embasado – um respaldo lógico para as políticas comerciais protecionistas e mercantilistas de Trump. O resultado teria sido, então, um país mais contido no cenário mundial e mais comprometido com seu próprio desenvolvimento interno.

Mas o poder do imperialismo americano e o lobby de Israel na administração Trump provaram ser fortes demais para tal combinação. Em vez disso, temos atualmente o pior de todos os mundos: um governo em Washington ainda cegamente comprometido em manter seu status de superpotência em todo o mundo e em enfraquecer ou destruir quaisquer rivais reais ou imaginários, mas sem absolutamente qualquer senso de comprometimento em relação à ordem internacional ou ao bem-estar de pessoas além das fronteiras da América. Ou como dito por Rudyard Kipling: “Poder sem responsabilidade – a prerrogativa da prostituta ao longo dos tempos.” Além disso, enquanto Trump talvez possa ser derrotado em 2020, as posturas do Partido Republicano que ele trouxe à tona provavelmente irão permanecer. Elas não começaram com Trump, mas já eram aparentes em muitas das políticas do governo Bush, estando profundamente enraizadas em velhas tradições do que chamei de antítese nacionalista americana e que Walter Russell Mead e outros chamaram de “Nacionalismo Jacksoniano”. À medida que o declínio econômico, social e demográfico das classes médias conservadoras brancas na América se intensifique, o mesmo acontecerá com essas posturas em relação ao mundo exterior.

Essa combinação de agressão e falta de comprometimento dos Estados Unidos aponta logicamente para a necessidade urgente de uma reaproximação entre a Rússia e a Europa Ocidental em defesa da paz e da ordem internacionais. Isso deve começar com a cooperação em defesa do acordo nuclear com o Irã e com a oposição à nova pressão norte-americana sobre Teerã, mas no futuro deve se estender a um acordo em relação à Ucrânia e às iniciativas contra a mudança climática, pontos com os quais a administração Trump e o Partido Republicano também não querem se comprometer. A meu ver, é precisamente a obviedade dos fundamentos objetivos para tal reaproximação que vem motivando grande parte dos histéricos discursos contra a Rússia dos órgãos de segurança ocidentais.

Tragicamente, uma combinação de preconceitos da Europa Ocidental contra a Rússia, o terror dos estados europeus diante da ideia de perder a proteção dos Estados Unidos e algumas das atitudes passadas da própria Rússia tornaram essa aproximação extremamente difícil. Pode ser necessário aguardar o surgimento de uma nova geração de políticos tanto na Europa Ocidental quanto na Rússia. Os ganhos para ambos seriam imensos. Para a Europa, o fim do confronto com a Rússia lhe daria segurança em termos convencionais e a deixaria livre para se concentrar nas ameaças reais à estabilidade e democracia do continente. Para a Rússia, a resposta conjunta às estratégias de Trump apontaria para um novo relacionamento em igualdade de condições com a União Europeia, bem como a conquista de um status internacional condizente com a autoimagem das partes mais positivas de seu próprio governo: um grande pilar conservador da ordem internacional. Esse objetivo não pode ser alcançado rapidamente, mas a busca por ele deve moldar toda a política externa russa nos próximos anos.

 

Anatol Lieven é professor da Universidade de Georgetown, no Qatar, e autor de “América, Right or Wrong: An Anatomy of American Nationalism”, entre outras obras.

 

Traduzido por Solange Reis

*Artigo originalmente publicado em 17/08/2018, em http://valdaiclub.com/a/highlights/trump-plans-for-regime-change-in-iran/

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