Eleições

Soldados em casa: um trunfo eleitoral

(Crédito: Olivier Douliery/MCT)

Por Solange Reis*

Mais um aniversário do 11 de Setembro passou e, com o evento, as lembranças de uma grande tragédia. Foram muitas homenagens às vítimas e inúmeros artigos revivendo os acontecimentos do dia que mudou tantas coisas nos Estados Unidos e em outros países.

Desde as regras de segurança para importação de mercadorias até a triagem de viajantes em aeroportos, muito do que se tinha como padrão de circulação de bens e pessoas foi reavaliado. Do ponto de vista sistêmico, a suposta estabilidade da ordem internacional no imediato pós-Guerra Fria também acabou.

As guerras foram unilateralmente revisadas, pois novos conceitos e metodologias passaram a categorizá-las como assimétricas. Acreditava-se que, contra um inimigo não estatal e difuso, as operações militares ocidentais deveriam ser mais rápidas e cirúrgicas, com menos investimento em material humano. Para que isso fosse possível, intensificou-se o uso de técnicas de Inteligência e equipamentos automatizados.

Ainda assim, somente o Exército enviou mais de 1,5 milhão de soldados americanos para as guerras do Iraque e do Afeganistão. Consideradas as outras guerras e a participação das forças aéreas e navais em todas elas, o total de tropas ao longo desses 19 anos, rotativamente, vai muito além desse número.

Donald Trump aproveita a campanha para reeleição e a insatisfação popular com as missões de guerra para reduzir o número de soldados no exterior. Entre setembro e novembro, quase 8 mil militares voltarão para casa. Juntamente com a mediação dos acordos bilaterais entre Israel e dois países árabes, a retirada dos soldados deve ser contabilizada nas urnas a favor do presidente.

Guerras bipartidárias

O 11 de Setembro deixou o mundo em choque, é fato, mas também um legado contínuo e sangrento. Foram 2.977 mortos nos Estados Unidos em um único dia. Em contrapartida, mais de 480 mil mortes e dezenas de milhões de refugiados decorrentes da subsequente Guerra ao Terror. Esse termo foi, e ainda é, um guarda-chuva para invadir países como o Afeganistão e o Iraque.

George W. Bush deu início a essas guerras, respectivamente, em 2001 e 2003. Barack Obama chegou a declarar a do Iraque como encerrada, apesar de a presença militar americana no país ter continuado. Trump pretendia acabar com as duas, mas continua atado a ambas.

A invasão do Iraque resultou em queda do governo iraquiano e posterior pena capital de Saddam Hussein. No início da investida, foram 150 mil soldados dos Estados Unidos e 23 mil de países aliados. Mesmo com a constatação, em 2004, de que a razão para invadir o país era falsa, os soldados da coalizão estrangeira permaneceram. Em 2007, meses após a execução de Hussein, o total de militares americanos no país alcançou a marca de 170 mil.

Obama começou a retirá-los a partir de 2011, quando declarou a guerra terminada. Outro motivo para sair foi não conseguir prorrogar a imunidade diplomática para seus militares e mercenários subcontratados. As tropas, no entanto, nunca foram embora completamente e voltaram a aumentar em número por volta de 2014, quando o Estado Islâmico começou a ganhar território.

Timeline of Major Events in the Iraq War - Interactive Feature - NYTimes.com

Presidente Bush, na aeronave ‘Abraham Lincoln’, na Califórnia (Crédito: Vincent Laforet/The New York Times)

Cartada de Trump

Na véspera do aniversário do 11 de Setembro, o governo Trump puxou um trunfo eleitoral e anunciou a redução do número de soldados no Iraque. Até o fim de setembro, 3.000 dos 5.2000 militares atualmente alocados no país retornarão aos Estados Unidos. As tropas em operação voltarão ao nível de 2015.

A decisão foi anunciada pelo Comando Central dos Estados Unidos (USCENTCOM), três semanas após o encontro entre o presidente Donald Trump e o primeiro-ministro iraquiano, Mustafa al-Kadhimi, em Washington. Ambos tinham interesses domésticos para concretizar a retirada. Nem que seja a conta-gotas, Trump ganhará ao cumprir uma promessa de campanha; al-Kadhimi também se fortalecerá, atendendo à resolução não vinculante aprovada pelo Parlamento iraquiano, em janeiro, pela saída de soldados estrangeiros.

O repúdio parlamentar iraquiano refletiu a piora nas relações entre os dois governos, após um ataque dos Estados Unidos contra o general Qassem Soleimani, uma das maiores autoridades militares do Irã. Soleimani desembarcara no aeroporto de Bagdá quando um míssil atingiu seu comboio. No episódio, também morreu Abu Mahdi al-Muhandis, líder de milícias iraquianas. Apesar das hostilidades mútuas, os Estados Unidos e o Irã não estão em guerra, o que faz do ataque um ato de terrorismo de Estado.

De acordo com a agência de notícias alemã, DPA, al-Kadhimi disse que os EUA vão retirar todos os soldados em três anos. Esse prazo é bem mais exato do que o vago “razoavelmente rápido” divulgado por Trump. Os soldados remanescentes, segundo o iraquiano, ficarão dedicados a operações de treinamento necessárias para combater o Estado Islâmico no norte do país.

Trump sempre disse que gostaria de reduzir as tropas no exterior para acabar com as “guerras infinitas”, mas não conseguiu cumprir tal proposta de forma definitiva. Com a exceção do frágil acordo recente com o Talibã afegão, o que se viu em seu governo foi o aumento do número de soldados, ou a redistribuição geográfica de tropas em zonas de conflito. Militares estacionados na Síria, por exemplo, foram realocados no Iraque. Há o caso da saída de soldados das bases na Alemanha, mas essa decisão é de natureza política e deve ser entendida no contexto do impasse sobre o financiamento da OTAN.

Peso do uniforme nas urnas

Com a eleição presidencial a menos de dois meses, o presidente tenta ganhar pontos junto ao eleitorado, pois dois terços da população são a favor da volta dos soldados. O gesto será um jogo de ganha-ganha para o republicano. Além de cumprir parte do que defendeu em sua recente nomeação pelo Partido Republicano, Trump põe o holofote sobre um ponto frágil de seu oponente. Em 2002, Joe Biden foi um dos 77 senadores que autorizaram a invasão do Iraque sob a alegação de que o país armazenava armas de destruição em massa. Como a explicação se revelaria uma fraude e a guerra, um erro político e estratégico, o apoio de Biden à ação militar pesa negativamente no currículo do democrata.

Outro trunfo para Trump são os acordos recentes entre Israel e países árabes. Em agosto, o Acordo de Abraão selou a paz entre Emirados Árabes Unidos e Israel, embora os dois países nunca tenham entrado em guerra. No dia 11 de setembro deste ano, Trump anunciou outro acordo do tipo, dessa vez entre Israel e Bahrein. Os dois eventos deverão favorecer o republicano junto ao eleitorado cristão, que normalmente alinha-se com os interesses dos governos israelenses. E ninguém se beneficiou mais desses acordos do que Israel. Bahrein, por exemplo, é o terceiro país no mundo árabe a reconhecer Israel diplomaticamente.

The Abraham Accord: UAE, Israeli and Bahrain Peace Deal – Global Defense Corp

O conselheiro de segurança nacional israelense, Meir Ben-Shabbat (centro, à esq.), cumprimenta um funcionário dos Emirados Árabes Unidos ao deixar Abu Dhabi, nos Emirados, em 1º de set. 2020 (Crédito: Nir Elias/Pool via AP)

Ambos os compromissos assinados são veiculados como parte de um plano de paz capitaneado pelo genro e assessor especial do presidente, Jared Kushner, embora pareçam mais uma versão contemporânea dos Acordos de Munique de 1938. A suposta normalização das relações árabe-israelenses fortalece a posição anti-Irã e prejudica os palestinos em sua luta contra a ocupação israelense. Como não pensar em Benito Mussolini convencendo os líderes de Inglaterra e França a ceder os Sudetos para a Alemanha hitlerista?

Os acordos bilaterais com Israel não são apenas de ordem diplomática e econômica, mas envolvem cooperação para segurança. No longo prazo, eles poderão contribuir para uma estratégia que ganhou força com Trump: influenciar o destino do Oriente Médio sem envolvimento militar direto. Em outras palavras, vender armas para os aliados, cada vez mais unidos entre si contra rivais dos Estados Unidos, sem o custo político de enviar jovens americanos para o campo de batalha.

O comandante do USCENTCOM, general Frank McKenzie, também anunciou que o número de soldados no Afeganistão será reduzido para 4.500. Ainda não há uma data determinada, mas o general garante que o corte acontecerá até novembro. Quanto a isso, nenhuma surpresa. Trata-se, de novo, do fator eleitoral influenciando as decisões militares.

Tais anúncios sobre ambos os teatros de guerra, na Ásia Central e no Oriente Médio, ajudam a atenuar o impacto negativo da recente declaração de Trump sobre a coragem dos veteranos. Segundo a revista The Atlantic, fontes do governo disseram que o presidente cancelou uma visita a um cemitério militar em Paris, em 2018,  por não ver motivos para ir a um lugar “cheio de frouxos”. Embora a revista não tenha revelado suas fontes, a versão foi confirmada pela Associated Press e por um correspondente da Fox News. O presidente chamou a matéria de fake news, mas a história não caiu bem entre os militares. Ainda que o segmento seja majoritariamente republicano, uma pesquisa com o pessoal da ativa indicou que 49,9% desaprovam Trump, sendo que 42% o rejeitam “fortemente”.

Livre, leve e solto

Se as guerras intermináveis são um elefante no Salão Oval de Trump, talvez virem formiga na eventual vitória da dupla Biden-Harris. As credenciais intervencionistas de Biden não são segredo, assim como as de muitos democratas e alguns republicanos centristas que o apoiarão, como a equipe do The Lincoln Project . Quanto a Kamala Harris, os indícios são de manutenção do nível de engajamento militar no exterior. Em julho, a senadora votou contra uma proposta de Bernie Sanders para reduzir em 10% o orçamento militar de 740 bilhões de dólares. Harris não fala muito sobre política externa, mas sua proximidade com o lobby israelense também sugere que não será pacifista, ou neutra.

As amarras ideológicas da chapa democrática em torno do liberalismo intervencionista sustentam a desacreditada premissa de os Estados Unidos serem o líder do mundo livre, o salvador armado dos povos oprimidos. As recentes manifestações antirracistas em cidades americanas, bem como a reação violenta das forças de segurança, servem para lembrar que não é bem assim. Democracia e igualdade são elementos faltantes dentro da própria casa.

Quanto a isso, como um presidente que não dá a mínima importância para o mundo, ou para a democracia, Trump fica bem mais à vontade para usar a cartada da retirada militar no exterior. Isso não significa que seu partido não tenha contas a prestar. Assim como os democratas, os republicanos se financiam nos lobbies armamentistas, além de terem seus “falcões” intervencionistas. A diferença entre Biden e Trump, nesse quesito, é a sombra que cada um faz sobre a respectiva instituição partidária.

 

* Solange Reis é doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). E-mail: reissolange@gmail.com.

** Recebido em 19 junho, 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais