Política Doméstica

A ‘Superterça’ e a superdesilusão

Uma Superterça sem surpresas (Crédito: iStock/Mattz90)

Série Eleições 2024

Por Augusto Scapini* [Informe OPEU]

A chamada “Superterça” é uma tradição eleitoral que ocorre a cada quatro anos nos Estados Unidos, em períodos de eleições presidenciais. O termo surgiu no meio jornalístico em 1976, quando as eleições presidenciais primárias em seis estados foram agendadas em uma mesma terça-feira para maior conveniência da população. Desde então, em uma determinada terça-feira do mês de fevereiro, ou de março, diversos estados organizam suas eleições primárias, que decidem quais candidatos serão nomeados por seus respectivos partidos e disputarão as eleições gerais em novembro. Mesmo que as primárias continuem a acontecer nos demais estados durante os meses seguintes, geralmente, os grandes vencedores da Superterça acabam sendo os finalistas nomeados pelos partidos para seguir na corrida, enquanto os perdedores costumam desistir da candidatura para não dividir os seus respectivos eleitorados. Esse evento, portanto, é um dos mais importantes na jornada de campanha para os candidatos à Presidência.

Neste ano, 15 estados participaram da Superterça, que ocorreu no dia 5 de março: Alabama, Alasca, Arkansas, Califórnia, Colorado, Maine, Massachusetts, Minnesota, Carolina do Norte, Oklahoma, Tennessee, Texas, Utah, Vermont e Virgínia, assim como o território não incorporado de Samoa Americana. Os resultados das primárias de Iowa, que puderam ser submetidos previamente por correio, também foram contabilizados durante o dia. Ao todo, esses estados concentram mais de um terço do total de delegados necessários para a vitória dos candidatos. Os delegados são pessoas escolhidas pela comunidade dos distritos estaduais para participarem das Convenções Nacionais de cada partido. São eles que elegerão, com base na vontade popular, os candidatos a serem nomeados pelos partidos como os principais concorrentes aos cargos pleiteados.

O que é a Superterça? Veja no infográfico da Al-Jazeera/AP/270t0win

A superdesilusão

Em edições passadas, a Superterça era vista como um momento de possível reviravolta das campanhas eleitorais. Candidatos fortes poderiam sofrer grandes perdas, enquanto os menos afamados poderiam receber impulsos de popularidade. O próprio presidente Joe Biden vivenciou essa situação nas últimas eleições de 2020, quando venceu em 10 de 14 estados nas primárias do Partido Democrata, apesar de ter sofrido perdas nas prévias anteriores. Neste ano, entretanto, quem esperava grandes surpresas sofreu uma superdesilusão. Confirmando o que já se sabia desde o ano passado (ou até antes), Biden e o ex-presidente Donald Trump foram os grandes vencedores da Superterça e, muito provavelmente, avançarão para a batalha final nas urnas em novembro – uma repetição do cenário de 2020.

Embora os votos ainda estejam sendo propriamente contabilizados, projeções já indicam que Trump vencerá em 14 estados, perdendo somente no estado de Vermont para sua, até então, única rival, Nikki Haley. Já Biden vencerá nos 15 estados, com sua única derrota sendo no território de Samoa Americana, cuja população de 44 mil pessoas optou pelo empresário Jason Palmer. Vale notar, no entanto, que o território, por não ter representação no Colégio Eleitoral, não é capaz de eleger representantes [com poder de voto] para cargos federais, tornando seu sufrágio um ato mais simbólico do que concreto.

Contando com os números de terça, Biden acumulou 1.561 delegados no total, sendo que perdeu três para Palmer, e dez, para o voto “sem compromisso”, ou em branco. Seu partido exige um número mínimo de 1.968 delegados conquistados para conceder a nomeação, o que deixa Biden com 407 a serem vencidos. Os números refletem a concorrência praticamente ausente do presidente, pois seus únicos oponentes de destaque, o representante (deputado) Dean Phillips (D-MN) e a autora Marianne Williamson, não conquistaram nenhum delegado. Em resposta, Phillips anunciou sua desistência da campanha e endossou o presidente Biden.

Do lado republicano, que exige o mínimo de 1.215 delegados, Trump já concentrou 1.044 (restando apenas 171 para a vitória), enquanto seus antigos adversários, Ron de Santis e Vivek Ramaswamy, haviam conseguido nove e três, respectivamente. Ambos desistiram da corrida em janeiro deste ano, deixando somente Nikki Haley como a principal oponente de Trump até então. A candidata, que se segurava à esperança de que poderia causar uma reviravolta nessa Superterça, decepcionou, porém, ao angariar uma única vitória em Vermont. Com somente 86 delegados acumulados, Haley anunciou oficialmente sua desistência da corrida presidencial, ainda que não tenha endossado Donald Trump diretamente.

(Arquivo) A ex-embaixadora dos EUA nas Nações Unidas Nikki Haley no Debate Presidencial Republicano da CNN, no Auditório Sheslow, da Drake University, em Des Moines, Iowa, em 10 jan. 2024 (Crédito: Gage Skidmore/Wikimedia)

O que esperar agora?

Com a renúncia de Haley, mais do que antes, Biden e Trump são considerados os finalistas, de fato, para as eleições gerais. Mesmo com a surpresa “estragada”, mais de 20 estados ainda realizarão suas próprias primárias até o mês de julho. Essas serão importantes fontes de informações para as campanhas eleitorais de cada candidato, revelando dados essenciais como o perfil dos eleitores, a taxa de comparecimento às urnas, o número de votos não comprometidos e, sobretudo, as questões e os posicionamentos políticos que mais pesam no voto de cada indivíduo. A partir desses dados, ambos os candidatos poderão ajustar seus planos e estratégias de campanha, decidindo, por exemplo, em quais estados deverão se projetar de forma mais intensa, quais promessas deverão fazer ao eleitorado e a qual grupo social deverão apelar mais para conseguir virar o jogo até novembro.

De acordo com uma pesquisa conduzida pelo jornal The New York Times e pela Sierra College ao final de fevereiro, em uma disputa Biden-Trump, o republicano se sobressairia com 48% dos votos, enquanto o democrata alcançaria 43%. O enfraquecimento da economia, a interferência dos EUA nos recentes conflitos internacionais e as falhas da segurança fronteiriça são alguns dos principais fatores que contribuíram para a queda histórica da popularidade de Biden e, decerto, afetarão seu desempenho eleitoral.

Já Trump terá dificuldades de reconquistar os eleitores seduzidos por Haley, que buscavam uma terceira via após vivenciar tremenda insatisfação com seu governo anterior. Além disso, os diversos apuros jurídicos enfrentados pelo republicano – principalmente em relação às acusações de fraude eleitoral – já abalavam a confiança do público conservador. E, logo, a possibilidade de condenação em qualquer um dos quatro casos de crimes federais (que incluem penas carcerárias) poderia criar uma situação sem precedentes na história do país e afetar diretamente a qualificação de Trump às urnas.

Outras batalhas eleitorais

As primárias estaduais ainda revelam outras disputas importantes que poderão sinalizar mudanças de ares na política estadunidense. Na Califórnia, a corrida ao assento no Senado federal – que foi desocupado com a morte de Dianne Feinstein – recebeu destaque. Nas primárias abertas, que independem da filiação partidária, o deputado democrata Adam Schiff e o ex-jogador de beisebol republicano Steve Garvey foram os respectivos vencedores e, assim, irão competir nas eleições gerais. O status da Califórnia como um “estado azul permanente” garante a vitória de Schiff, mas a capacidade de Garvey de vencer as outras candidatas democratas, Katie Porter e Barbara Lee, pode ser um indício de uma nova mobilização republicana no estado. Vale notar, também, que somente metade dos votos na Califórnia foram contabilizados até o momento, devido aos lentos procedimentos eleitorais do estado.

De maneira análoga, no Texas – estado tradicionalmente “vermelho” –, o senador Ted Cruz deverá, provavelmente, defender seu título contra o deputado democrata Colin Allred. Em 2018, mesmo com a vitória praticamente garantida, Cruz se reelegeu ao cargo por uma margem extremamente estreita. Desde então, as recentes políticas estaduais restritivas ao aborto levaram o eleitorado progressista do estado a atuar de forma mais ativa, o que poderá significar um pequeno brilho de esperança em uma batalha desafiadora para o atual pleiteante democrata.

Por último, o fim do mandato do democrata Roy Cooper, governador da Carolina do Norte, apresenta um desafio inegável para a agenda de seu partido. Ambas as Câmaras do Congresso estadual são atualmente controladas pelos republicanos, logo, uma possível vitória republicana no gabinete do governador afetaria a balança de poder do estado. Vencedores de suas respectivas primárias, o procurador-geral democrata Josh Stein e o vice-governador republicano Mark Robinson – a quem Trump endossou como “Martin Luther King sob esteróides” – se enfrentarão nas urnas finais.

Leia mais: Dicas para acompanhar a eleição presidencial americana em 2024, por Wayne Selcher para Latino Observatory

Assista também: CNN – América Decide 2024 – Superterça 5/3/2024 | YouTube

Assista também: Diálogos INEU – Eleições presidenciais 2024 e o sistema eleitoral dos EUA | YouTube

Apesar de ser considerado um swing state, ou estado pendular, a Carolina do Norte não elege um senador ou um presidente democrata desde 2008. Portanto, a preferência dos norte-carolinos por Trump, evidenciada nas pesquisas recentes, pode indicar como a população local votará nesta eleição governamental. E, para que os democratas impeçam esse cenário, deverão concentrar seus esforços e investimentos na campanha de Stein. No mais, a reação popular aos comentários inflamados de Robinson no passado sobre, por exemplo, o direito das mulheres ao voto, poderá ser um tiro no pé de sua campanha e facilitar a vitória do oponente democrata.

Ambos os partidos deverão, em suma, observar atentamente os resultados dessas primárias e estudar com cautela as tendências eleitorais que poderão influenciar a disputa em novembro. Com grande insatisfação popular de ambos os lados da linha partidária, tanto Joe Biden como Donald Trump deverão, agora, convencer os 341 milhões de americanos que são a melhor opção – ou a menos pior – para a liderança do país.

 

*Augusto Scapini é pesquisador bolsista de Iniciação Científica (INCT-INEU/PIBIC-CNPq) no OPEU e graduando em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ). Contato: augusto.scapini@ufrj.br.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. 1ª versão recebida em 7 nov. 2023. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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