América Latina

Eleição de Claver-Carone e as promessas de um novo pan-americanismo

Mauricio Claver-Carone (dir.), então diretor sênior no Conselho de Segurança Nacional dos EUA, em entrevista ao jornalista Ricardo Ospina (TV Caracol), na Cúpula Concordia Americas, em Bogotá, em 14/5/2019 (Crédito: Gabriel Aponte/Getty Images)

Por Marcos Cordeiro Pires*

A eleição para presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), ocorrida em 12 de setembro, confirmou o favoritismo de Mauricio Claver-Carone, indicado para o cargo pelo governo de Donald Trump. Ele conseguiu superar as resistências de México, Chile, Argentina e União Europeia e venceu a disputa como o único candidato no jogo. É a primeira vez que um cidadão norte-americano irá dirigir a instituição, visto que havia uma regra não escrita de que a presidência sempre ficaria a cargo de um quadro latino-americano.

A escolha de Claver-Carone coincide com um maior ativismo do governo Trump na América Latina e Caribe (ALC), uma vez que busca isolar ainda mais os governos de Cuba, Nicarágua e Venezuela e, simultaneamente, enfrentar o maior envolvimento da China na região, não apenas como principal parceiro de países como Brasil, Peru, Chile e Argentina, mas também como investidor em projetos de infraestrutura, no bojo da Iniciativa Belt and Road, e nos setores industrial, agrícola, de serviços e finanças.

Para conter a presença chinesa, o governo dos EUA busca não apenas controlar a agenda de investimentos do BID, como também criou um novo banco de investimentos, o Development Finance Corporation (DFC), e duas iniciativas de estímulo a inversões na ALC: Growth in the Americas e Back to the Americas. A primeira, para apoiar investimentos de empresas estadunidenses em infraestrutura; e a segunda, para reconstruir uma cadeia de suprimentos industriais na ALC, ao desestimular empresas dos EUA a operarem na China.

Nesse sentido, é importante assinalar que a contenção da China na ALC passa por reafirmar a Doutrina Monroe e o discurso do “pan-americanismo”. De acordo com a Agence France-Presse (AFP), em matéria de 16 de setembro, ao ser indagado sobre se a entrada da China no BID em 2008 seria um erro, Maurico Claver-Carone afirmou: “Não. O erro foi que os Estados Unidos não prestarem atenção suficiente ao BID. A China desempenha um papel importante no comércio internacional, mas é um país distante das Américas e totalmente controlado por um Estado. Portanto, o que buscamos é realizar o sonho do pan-americanismo, que existe desde antes da China ser uma potência econômica. A China nunca vai suplantar a relação entre os países das Américas, mas vai preencher as lacunas existentes. E isso é válido competitivamente! Não podemos ficar com raiva da China por isso, mas de nós mesmos por termos deixado o vácuo”.

É interessante observar que, em todos os momentos em que os Estados Unidos buscam alinhar sua política para a ALC, o conceito de pan-americanismo é sempre resgatado, mas, do ponto de vista dos países da região, é algo mais retórico do que palpável.

Pan-americanismo, uma promessa a ser cumprida

Desde a formulação da Doutrina Monroe, em 1823, os Estados Unidos têm reiterado promessas de cooperação com os países da América Latina e do Caribe. Na prática, porém, o que se viu e se vê é a aplicação de estratégias que visam à reafirmação de sua condição hegemônica no subcontinente. A retórica do “pan-americanismo” é recorrentemente utilizada para seduzir os dirigentes latino-americanos e caribenhos acerca de uma suposta identidade comum que nos une aos Estados Unidos como nações do “Novo Mundo” que emergiram do jugo colonial e que almejavam o progresso e a liberdade.

Tal discurso idealista sempre se deparou, no entanto, com os efeitos deletérios da mística do “Destino Manifesto”, das agressões que se sucederam sob a política das canhoneiras e do Big Stick sobre os países do Caribe e da América Central, do apoio a ditaduras sanguinárias e, recentemente, da desestabilização de governos não alinhados integralmente às diretrizes políticas da atual administração em Washington.

A política da “Boa Vizinhança” de Roosevelt foi bem-sucedida em conseguir a quase unanimidade dos países da ALC na frente que se formou contra as potências do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial. Algumas concessões foram obtidas, como, no caso brasileiro, o financiamento e a transferência de tecnologia para a construção de uma moderna usina siderúrgica em Volta Redonda. No caso da Argentina, em função de sua neutralidade, isso significou uma longeva antipatia por parte dos EUA.

Na sequência, já durante o Pós-Guerra, nossa região se iludira com a possibilidade de os EUA direcionarem recursos para a aceleração do desenvolvimento, como uma espécie de Plano Marshall regional. Tampouco saiu do papel a promessa de Harry Truman (o Ponto IV) de apoiar políticas de desenvolvimento para eliminar a pobreza e as raízes para o descontentamento que poderiam estimular movimentos nacionalistas e comunistas.

Após a vitória da Revolução Cubana (1959) e a adesão do país ao bloco liderado pela União Soviética, novamente os Estados Unidos prometeram uma era de cooperação e de desenvolvimento por meio da “Aliança para o Progresso”, idealizada pelo governo de John Kennedy, em 1961. No lugar de uma política de estímulo ao desenvolvimento, novamente sob a inspiração de um novo Plano Marshall, a Conferência de Punta Del Este, em agosto daquele ano, aprovou diretrizes genéricas para combater o analfabetismo, os problemas sanitários e a estabilização econômica dos países como pré-condições para o prometido e esperado desenvolvimento.

Passado o entusiasmo inicial, a política norte-americana para a região, entre as décadas de 1960 e 1970, foi a de apoiar golpes de Estado e governos militares de direita para sufocar os movimentos nacionalistas e socialistas inspirados no exemplo de Fidel Castro.

O discurso do “pan-americanismo” também foi usado para reforçar uma institucionalidade liderada pelos Estados Unidos para a coordenação de sua política para a ALC durante a Guerra Fria, como o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (1947), a Organização dos Estados Americanos (1948), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (1959) e, durante o governo de Jimmy Carter, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (1979).

A exclusão do governo de Cuba dos organismos regionais e a utilização sectária dessas instituições por parte de sucessivas administrações estadunidenses estimularam diversos países da ALC, durante a década de 2000, a criarem os próprios mecanismos regionais de cooperação, como a União das Nações Sul-Americanas (Unasul), a Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac).

Os então presidentes dos EUA, Barack Obama, e de Cuba, Raúl Castro, após encontro histórico, em Havana, em mar. 2016  (Crédito: Ramon Espinosa/AP)

A normalização das relações entre os governos de Cuba e dos EUA, que pôde ser vista em 2015 durante a Cúpula das Américas, no Panamá, quando Barack Obama e Raúl Castro se cumprimentaram, foi idealizada como um novo começo das relações hemisféricas. Entretanto, na década de 2010, as instituições da ALC concebidas no período da “onda progressista” foram desmanteladas pelos governos que ascenderam ao poder, a partir da onda conservadora gerada nos Estados Unidos. Na sequência, a política da Doutrina Monroe foi reintroduzida com pompa por Donald Trump.

Para concluir este texto, é importante notar que o chamamento ao espírito “pan-americanista” encontra eco em diversos países da região. O alinhamento incondicional do governo brasileiro é exemplo disso. Em nome de um princípio abstrato, permite-se que o país vire palco de uma encenação como ocorreu na semana passada, com a visita do secretário de Estado americano, Mike Pompeo, a Boa Vista, para fustigar o governo venezuelano. Ou ainda, em nome de promessas vagas, liberar a importação de etanol dos EUA para apoiar a reeleição de Donald Trump no estado de Iowa. Isto ocorre justamente quando o setor sucroalcooleiro nacional se encontra em graves dificuldades por conta da queda do consumo em meio à pandemia e do choque nos preços do petróleo que diminuem a competitividade do etanol.

É preciso que os governos da ALC compreendam que a cooperação com os Estados Unidos somente pode frutificar, se os interesses regionais forem devidamente defendidos. Não existe tratamento respeitoso entre parceiros assimétricos. Muito menos quando alguns se conformam com uma posição historicamente subalterna. A adulação gratuita enfraquece a legitimidade de seu emissor, reduz a margem de manobra do lado com menos recursos à mesa de negociação e se torna um convite ao desrespeito, por parte do interlocutor.

 

* Marcos Cordeiro Pires é doutor em História Econômica (USP). Livre-Docente em Economia Política Internacional (Unesp). Professor do curso de Relações Internacionais (Unesp-Marília). Coordenador do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da Unesp (IEEI). Membro do INCT-INEU. Docente dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Marília) e de Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp-PUC-SP-Unicamp).

** Recebido em 21 set. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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