Sociedade

Freedom House expõe as contradições do ‘farol da democracia’ e da ‘terra da liberdade’

(Arquivo) Slave pen, Alexandria, Va.: Vista interna de um curral de escravos, mostrando as portas das celas onde eram mantidos antes de serem vendidos. Endereço do edifício: 1315 Duke Street, Alexandria, VA, fotografado entre 1861 e 1865 e impresso entre 1880 e 1889 (Fonte: Library of Congress)

Série pelo Black History Month

Por Camila Feix Vidal* [Informe OPEU]

No número 1315 da rua Duke na cidade de Alexandria, Virgínia, está localizada uma casa de três andares, não muito diferente das outras ao seu redor. Um transeunte desavisado sequer notaria a placa modesta com os dizeres “Franklin and Armfield: Slave Office (1315 Duke Street)”. Se a casa 1315 parece comum do lado de fora, por dentro ela é um espaço único e riquíssimo sobre como operou, ali mesmo, uma das maiores e mais lucrativas empresas de tráfico doméstico de pessoas escravizadas nos EUA na primeira metade do século XIX.

Parte da African American History Division da cidade de Alexandria, o agora museu da Freedom House (foto abaixo) apresenta uma parte da história estadunidense nem sempre lembrada (ou deliberadamente apagada): em primeiro lugar, as idiossincrasias de uma nação dividida com um norte baseado em mão de obra livre e um sul escravocrata; e, em segundo lugar, o imenso ganho financeiro que o tráfico doméstico de pessoas gerava, ou seja, a desumanidade de um sistema capitalista escravocrata que comprava, vendia e traficava de uma parte para outra dos Estados Unidos pessoas pretas – livres ou escravizadas.

Visualização da imagemParte da fachada atual do prédio onde funcionou a Franklin and Armfield, hoje Museu Freedom House (Crédito: Arquivo pessoal da autora)

Em 1807, o Congresso dos EUA aprova a proibição do tráfico de escravos transatlântico. No ano seguinte, o Ato de Proibição para Importação de Escravos passa a entrar em vigor: “passa a ser ilegal importar ou trazer para os Estados Unidos […] qualquer negro, mulato ou pessoa de cor […] como escravo” (tradução literal). Se, no entanto, o Congresso se manifestava de maneira contrária à prisão e ao deslocamento forçado transatlântico, silenciava acerca dessa mesma prisão e deslocamento forçado domesticamente.

Sem a possibilidade de aquisição externa de africanos/as escravizados, mas com a crescente demanda de mão de obra em plantações de açúcar e de algodão que cresciam no sul, o tráfico doméstico de pessoas escravizadas e pessoas pretas libertas nascidas nos EUA cresceu na mesma proporção que o tráfico transatlântico diminuiu. Apenas na década de 1830, proprietários e traficantes de pessoas escravizadas removeram forçadamente 1 em cada 4 escravizados na Virgínia. Uma das cidades mais importantes – se não a mais importante – nessa nova organização estadunidense, seria justamente a cidade de Alexandria.

 

Mão de obra escravizada: do tráfico transatlântico ao tráfico doméstico

Uma das mais importantes cidades portuárias dos EUA, o porto de Alexandria era, no fim do século XVIII, um dos principais e mais movimentados das colônias e, posteriormente, dos estados da União. Grandes plantações de tabaco na cidade faziam com que fossem demandadas grandes quantidades de terras e de mão de obra. O tráfico transatlântico chegava, assim, ao porto de Alexandria e supria a demanda dos proprietários dessas plantações. Localizada em uma região estratégica – não só pelo seu porto, mas por separar o sul escravocrata do norte livre –, Alexandria concentrava nela própria o paradoxo de toda a nação estadunidense: era o entreposto entre o norte livre e o sul escravocrata.

Entre 1801 e 1847, Alexandria fez parte do Distrito de Columbia. No entanto, com receio dos movimentos abolicionistas que ali ganhavam força, proprietários de terras na cidade votaram, em 1847, para que ela retornasse ao estado da Virgínia. Com 40% da população escravizada, Virgínia era o estado com o maior número de pessoas escravizadas que qualquer outra colônia ou estado nos EUA já tivera.

Além do tabaco, a demanda por pessoas escravizadas servia à lógica mercantil de proprietários de grandes plantações de açúcar na região. Em 1810, Alexandria era a terceira maior produtora de açúcar nos EUA. Com a proibição do tráfico internacional de escravos, Alexandria seria o palco da maior exportadora doméstica de pessoas pretas – escravizadas e livres – do norte para o sul dos EUA. Cerca de 650 mil homens, mulheres e crianças pretas foram transladadas forçadamente dos estados da Virgínia e de Maryland, no norte dos EUA, para o sul do país. Alexandria figurava como a linha divisória entre as duas regiões – e o tráfico de pessoas pretas gerava lucro para comerciantes e proprietários de ambas.

Visualização da imagemMapa dos locais relacionados ao tráfico de pessoas pretas em Alexandria (Crédito: Arquivo pessoal da autora)

Não à toa, o número de pessoas traficadas domesticamente se sobrepõe ao número de traficados pelo Atlântico: são ao menos 650 mil tráficos domésticos, e 388 mil, transatlânticos. Se esse último era conhecido como a “middle passage”, o tráfico doméstico seria a “second middle passage” e consistiria no roubo de pessoas pretas – homens, mulheres e crianças – escravizadas ou livres, nascidas dentro ou fora dos EUA. Com o típico “espírito empreendedor”, a lógica capitalista escravocrata fez, em poucos anos, várias empresas passarem a atuar como “slave dealers” na compra e venda de pessoas que em nada se diferenciava da compra e venda de cavalos, vacas ou qualquer outro bem material.

Ainda que não a única, o que diferencia a Franklin & Armfield é a notoriedade, lucratividade e alcance que essa empresa obteve. Com escritórios em várias cidades dos EUA e uma frota de navios própria, é considerada uma das maiores e mais importantes empresas de tráfico doméstico de pessoas pretas nos EUA.

Em fevereiro de 1828, Isaac Franklin (natural do Tennessee) e John Armfield (Carolina do Norte) levavam a empresa de tráfico de escravos Franklin & Armfield para a Alexandria e a estabelecem na rua Duke, 1315. O anúncio em jornal local anunciava a compra do prédio e o início das suas operações na compra de pessoas pretas a partir de 8 anos de idade. Com o título “Cash in Market” (“Dinheiro no mercado”, em tradução literal), o anúncio lia:

“Tendo os assinantes alugado por um período de anos a grande casa de tijolos de três andares na rua Duke, na cidade de Alexandria, D.C, anteriormente pertencente ao general Young, desejamos comprar 150 jovens negros de ambos os sexos entre as idades de 8 a 25 anos. Aos que desejam vender, farão bem em nos ligar, já que estamos determinados a pagar mais que qualquer outro comprador no mercado ou que possa vir a entrar no mercado no futuro. Todas as cartas endereçadas aos assinantes através dos correios de Alexandria serão prontamente respondidas. Para informações, entre em contato na casa descrita acima, pois sempre poderemos ser encontrados lá. Franklin & Armfield” (tradução literal).

Franklin & Armfield: Uma empresa de sucesso

Foi um trabalho rigoroso de pesquisa e de escavação arqueológica do prédio, a partir de 1980, que permitiu que hoje tenhamos ideia do que foi essa empresa e de como ela operava na primeira metade do século XIX. A ampla pesquisa com apoio público teve sucesso na coleta de dados em manifestos de navios, declarações de imposto de renda e impostos municipais de Alexandria, além de recibos de compra e venda da empresa e de seus parceiros. Um censo de 1830 do Distrito de Columbia na cidade de Alexandria, por exemplo, apresentava como propriedade 145 escravos na rua Duke, número 1315.

Com base nessas investigações, sabemos que a Franklin & Armfield vigorou entre 1828 e 1837 na Duke Street, traficando ao menos 8.500 pessoas pretas para o sul dos Estados Unidos. Ao todo, cerca de mil homens, mulheres e crianças foram forçadamente movidas do norte para o sul do país por essa mesma empresa. Por estar localizada entre os estados livres e os escravocratas, a empresa comprava barato nos estados do norte e vendia caro nos estados do sul. O lucro que obtinha em cada uma dessas transações não era pouco.

Para comprar e vender mais de mil pessoas por ano, a empresa se valia de uma logística impecável. Ainda que sua sede e escritório principal fosse a casa na rua Duke, a Franklin & Armfield tinha escritórios em cidades do norte, como Richmond, Fredericksburg, Warrenton, Washington, D.C., Baltimore, Frederick, Annapolis e Easton, de onde comprava pessoas pretas; e, no sul, em Nova Orleans (Louisiana) e Natchez (Mississippi), onde as vendia em leilões. Nos escritórios do sul ficava sediado Isaac Franklin, que cuidava dos leilões e da venda, enquanto os do norte eram chefiados por John Armfield, responsável pela compra de pessoas e pelo trânsito das “mercadorias” até os escritórios do sul.

Na sede, o prédio da Duke foi transformado para abrigar uma prisão, onde pessoas capturadas esperariam até serem deslocadas para suas vendas nos leilões do sul. Pessoas pretas – libertas ou escravizadas – eram deixadas acorrentadas na parede externa do prédio, em uma espécie de muro humano. Ali, passavam semanas sob sol e chuva, mal alimentando-se de pão e de algum pedaço de carne. Dois espaços separavam homens de um lado, e mulheres e crianças, de outro. Durante a noite, eram levados para o porão – lugar onde dormiam e onde eram punidos. A depender de quanto tempo demoraria para alcançar o número necessário para tráfico ao sul, uma pessoa preta que ali fosse colocada podia esperar entre um dia e duas semanas.

Em visita ao escritório sede da Franklin & Armfield em 1834, o reverendo Joshua Leavitt disserta sobre o que viu:

“Cerca de três ou quatro [mulheres] tinham crianças tão pequenas que as seguravam nos braços. E pensei ter visto no rosto dessas mães alguma indicação de sentimentos irreprimíveis. Me pareceu que elas abraçavam seus pequenos com muita força e que havia suor frio em suas testas, e eu pensei ter visto lágrimas também. Por que elas não deveriam sofrer? Suponha que fosse o seu filho e suponha que seria provável que o estranho que ali chegou quisesse comprar e carregar [seu filho] para milhares de quilômetros para uma escravidão sem esperança. Havia cerca de 20 crianças com menos de dez anos de idade” (tradução literal).

Da prisão no escritório de Alexandria, homens, mulheres e crianças pretas eram transferidos para os escritórios do sul. Havia três rotas possíveis: marítima, terrestre e combinada.

Geralmente a mais usada, a rota por mar contava com frota própria de navios como o “Uncas”, “Tribune” e “Isaac Franklin”. Neles, passageiros pagantes eram levados na primeira classe e, nos porões claustrofóbicos, sujos e escuros, a “mercadoria” a ser leiloada. Os navios saiam do porto de Alexandria a cada duas semanas. Percorriam mais de três mil quilômetros, contornando o leste dos Estados Unidos até o porto de Nova Orleans, onde então os prisioneiros aguardavam até serem vendidos em leilão da empresa.

Uma segunda rota era a terrestre. Essa era feita não mais que duas vezes ao ano, em função do tempo e da dificuldade do percurso que implicava mortes ao longo do caminho, diminuindo, assim, o lucro esperado pela empresa nos leilões. Essa rota tinha início no final do verão e durava cerca de oito semanas. Acorrentados por colares de ferro presos no pescoço, os “coffles” (nome dado aos grupos de prisioneiros) caminhavam por quase dois mil quilômetros saindo de Alexandria e chegando a Natchez, no Mississippi. Nos dois meses de marcha forçada, paravam em cidades como Lynchburg, Nashville e Memphis, onde escritórios parceiros da Franklin & Armfield davam o suporte necessário.

Por fim, o terceiro tipo de rota de tráfico era a combinada. Nela, uma primeira parte era feita em marcha terrestre até Memphis e, a partir de então, pelo rio Mississippi, seguindo até Natchez, ou Nova Orleans. Um relato feito por um antigo escravizado, Charles Ball, que percorreu a rota terrestre, narra a odisseia:

“Fui vendido junto a outros 51 escravos […] um pesado colar de ferro foi apertado em volta de cada um dos nossos pescoços com a ajuda de um cadeado. Uma corrente de ferro de cerca de 30 metros de comprimento foi passada através do ferrolho de cada cadeado, a exceção das duas últimas extremidades, onde os ferrolhos dos cadeados passaram pelos elos da corrente. Além disso, éramos algemados aos pares, com grampos e parafusos de ferro com uma corrente curta de cerca de 30 centímetros de comprimento que unia as algemas e os seus portadores aos pares” (tradução literal).

A Franklin & Armfield deixa de operar em 1837 quando vende o negócio para outra empresa do mesmo ramo (foto abaixo). A prisão e o tráfico de pessoas pretas no local se encerram somente com o início da Guerra Civil, em 1861.

Visualização da imagemFoto do prédio da Franklin & Armfield já com outra propriedade: Price Birch & CO: Dealers in slaves (Crédito: Arquivo pessoal da autora)

A Freedom House é, assim, um mundo à parte. De uma fachada comum em seu exterior, ela nos apresenta, no seu interior, uma parte importante da história dos Estados Unidos e da própria formação capitalista e escravocrata do país: um negócio próspero em um nicho de mercado que só crescia, um número grande de empregados e parceiros, escritórios em várias partes do país e frota própria para logística. Esse seria considerado um caso de sucesso e o objetivo de qualquer empreendedor. Falta mencionar que a mercadoria em questão eram pessoas: crianças, mulheres e homens capturados, separados de suas famílias, trancafiados e revendidos para o sul como mão de obra escrava com o objetivo único de proporcionar maior lucro aos seus proprietários – a síntese do capitalismo estadunidense escravocrata que caracterizou e moldou o país.

 

Camila Feix Vidal é professora no Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e faz parte do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea (GEPPIC), do Instituto de Estudos para América Latina (IELA/UFSC) e do Instituto Memória e Direitos Humanos (IMDH/UFSC). Contato: camila.vidal@ufsc.br e camilafeixvidal@gmail.com.

** O presente Informe OPEU foi produzido no âmbito de viagem de pesquisa de campo sobre escolas militares estadunidenses, com apoio e recursos do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 5 mar. 2024. Seu conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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