China e Rússia

Eleições americanas: China será a grande inimiga da América de Trump

Agentes da imigração interrogam migrantes chineses suspeitos de serem comunistas, ou marinheiros desertores, em Ellis Island, 31 jan. 1951 (Crédito: Getty Images)

Por Robson Coelho Cardoch Valdez*

Ao que parece, a China será mesmo o ponto central da campanha eleitoral nesse ano. De acordo com a última pesquisa Gallup de fevereiro 2020, apenas 33% dos norte-americanos percebem a relação sino-americana como positiva. Uma queda de 20% em relação ao ano de 2018. De 2001 a 2018, essa avaliação oscilou de 45% a 53%. Vale ressaltar que esse é o período de significativo incremento da interdependência econômica entre as duas superpotências.

Entre o eleitorado democrata, essa percepção caiu de 55%, em 2012, para 35% em 2020. Já entre os republicanos, a queda foi de 28% (2012) para 23% (2020). O atual nível de avaliação positiva em relação à China é o mesmo de 1989, quando se deu a repressão do governo chinês aos protestos da Praça da Paz Celestial (Tiananmen). Embora, ao longo das últimas quatro décadas, os americanos nunca tenham mostrado uma avaliação constantemente positiva em relação à China, destaca-se o fato de que essa percepção dos norte-americanos nunca se manteve em níveis tão baixos como os de hoje.

As relações sino-americanas contemporâneas perduram por quatro décadas de crescente interdependência geopolítica e econômica. Ainda que democratas e republicanos estejam atentos à avaliação da população sobre as relações do país com a China, é pouco provável, porém, que mesmo a pandemia do novo coronavírus seja capaz de desfazê-la de forma abrupta.

Retomada histórica das relações

Quando o presidente Richard Nixon visitou a China em 1972, chineses e americanos tinham o mesmo interesse em aumentar seus respectivos poderes de barganha em suas relações com a União Soviética. A partir dessa visita, os EUA passaram a reconhecer que Taiwan é território chinês, deram início à retirada de suas forças militares desta pequena ilha e, em 1979, a República Popular da China assumiu o assento permanente de Taiwan no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Um subproduto dessa histórica viagem que marcou a reaproximação entre China e EUA (o retorno das relações diplomáticas oficiais entre os dois países se deu em 1979) foi a abertura da economia chinesa para o mercado norte-americano. Um dos últimos pontos do Joint Statement Following Discussions With Leaders of the People’s Republic of China, em 1972, afirma despretensiosamente, em um de seus últimos parágrafos, o desejo dos dois países de estreitarem relações econômicas internacionais baseadas em igualdade e interesses mútuos.

O início dessa relação favoreceu a implementação das “Quatro Modernizações” que seriam conduzidas pelo Estado chinês (Agricultura, Indústria, Ciência e Tecnologia, Forças Armadas). Essa tarefa combinava políticas de desenvolvimento interno e incremento da interdependência econômica com os mercados internacionais. Nesse sentido, os Estados Unidos se beneficiaram da aproximação com a economia chinesa, com base na reestruturação que promoveram no sistema financeiro internacional. Essa recomposição consolidou o dólar como moeda internacional, elevando sua capacidade de endividamento, e possibilitou ao país desvalorizar sua moeda, aumentando, também, a competitividade de suas exportações.

Para a China, a relação com os Estados Unidos promovia o acesso à tecnologia e a novos mercados internacionais, atraía investimento estrangeiro direto e gerava uma importante fonte de reservas internacionais. Adicionalmente, no campo geopolítico, neutralizava a influência soviética em sua esfera de influência regional preferencial. Já para os Estados Unidos, surgia uma oportunidade de explorar o vasto emergente mercado chinês, que também oferecia custos de produção mais vantajosos para as empresas norte-americanas e aumentava a influência dos EUA no Extremo-Oriente e no Sudeste Asiático.

Déficit crescente

Hoje, o cada vez maior desconforto dos norte-americanos em relação aos chineses diz respeito, principalmente, ao déficit comercial dos Estados Unidos com a China. Em 1985, esse déficit foi de US$ 6 bilhões; em 1995, de US$ 33,78 bilhões; em 2005, de US$ 202,27 bilhões; em 2015, de US$ 367,32 bilhões; e, em 2019, US$ 345,61 bilhões. Outro dado que pode interferir negativamente no imaginário dos norte-americanos é o total de títulos da dívida pública do país nas mãos dos chineses.

Atualmente, Japão e China possuem 5,2% e 4,6%, respectivamente, do valor total desses títulos disponíveis no mercado. Japão possui US$ 1,27 trilhão, e China, US$ 1,08 trilhão. Enquanto o Japão desfruta, há muito tempo, de uma visão positiva nos Estados Unidos, muitos americanos acreditam que, a qualquer momento, os chineses podem descontar seus títulos e fazer colapsar a economia do país. Sabe-se, no entanto, que esse temor não encontra respaldo na intrincada interdependência entre os dois países, a qual, nesse caso específico, beneficia as exportações chinesas e a compra de produtos baratos por parte dos norte-americanos.

Além do déficit comercial dos EUA com a China e da expressiva quantidade de títulos de dívida americana sob gestão dos credores chineses, outros eventos impactaram negativamente a relação dos dois países.

Alguns dos mais emblemáticos: o massacre da Paz Celestial, em 1989; o bombardeio da embaixada chinesa em Belgrado durante a campanha da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) contra a ocupação sérvia em Kosovo, em 1999; o pouso de emergência de um avião de reconhecimento norte-americano em território chinês, em 2001; os gastos da China com defesa, em 2007, totalizando mais de US$ 45 bilhões; o indiciamento, em 2014, de cinco hackers chineses, supostamente ligados ao Exército chinês; o pedido dos Estados Unidos, em 2015, para que a China desistisse da militarização territorial no Mar do Sul da China; em 2018, Trump dá início à guerra comercial com Pequim; em 2019, a chinesa Huawei processa o governo dos EUA por proibir as agências federais americanas de usarem sua tecnologia 5G; em novembro de 2019, Trump assina uma lei em apoio aos manifestantes em Hong Kong; e, por fim, China e Estados Unidos disputam uma guerra de narrativas sobre a origem do novo coronavírus.

Entre todos os principais eventos que, de tempos em tempos, surgem e estremecem a relação entre Pequim e Washington, o déficit comercial dos Estados Unidos é o que tem maior capacidade didática de consolidar um discurso anti-China na população norte-americana. Isso se deve ao fato de ser possível explicitar, mais facilmente, o nexo causal entre a diminuição de postos de trabalho no país e a inserção chinesa em vários setores da vida econômica nacional.

Como já é sabido, Trump vai recorrer a essa narrativa anti-China que já está consolidada entre os eleitores norte-americanos, principalmente entre os republicanos. Adicionalmente, o papel da China nos desdobramentos da pandemia da COVID-19 também será usado para calibrar um discurso ainda mais agressivo contra os chineses e todos aqueles (democratas) que não se posicionam objetivamente contra o que o presidente norte-americano considera ser o maior inimigo da América hoje.

Mais munição anti-China

Em 21 de maio, o presidente Donald Trump enviou ao Congresso dos Estados Unidos um documento, detalhando a nova abordagem do país em suas relações com a República Popular da China. Essa nova abordagem não tem como premissa determinar um conjunto de determinações específicas para a China. Em vez disso, o documento explicita que o objetivo do país é proteger os interesses nacionais vitais dos Estados Unidos, articulados nos quatro pilares da Estratégia de Segurança Nacional (NSS, na sigla em inglês) de 2017.

Na primeira parte do documento, fica explicitado o desapontamento do governo Trump com o comportamento da China em relação aos Estados Unidos e em relação ao envolvimento da China com outros países e instituições internacionais. O texto cita vários exemplos de como Pequim não estaria cumprindo várias de suas promessas, além de usar seu poder econômico e político para garantir o consentimento de outros países quanto à sua inserção internacional “predatória”. Assim, a NSS de 2017 traz os desafios que a China representa para os Estados Unidos no campo da economia, dos valores americanos e no campo da segurança.

Para enfrentar esses desafios, o governo Trump propõe uma abordagem pragmática em relação à China e ao Partido Comunista Chinês, baseada fortemente na não interferência nos assuntos domésticos da China, mas, sobretudo, na reciprocidade. De acordo com o documento, a implementação dessa estratégia está fundamentada em quatro pilares: (1) proteger o povo americano, a pátria e seu modo de vida; (2) promover a Prosperidade Americana; (3) preservar a paz por meio da força; e (4) promover a influência americana. Dessa forma, o governo Trump espera estabelecer uma relação orientada para resultados, com base em ações concretas por parte do governo chinês, deixando claro que a cooperação será possível e desejada onde houver alinhamento de interesses.

China: o grande inimigo dos EUA

Se as atuais pesquisas eleitorais se confirmarem, especula-se que um eventual governo Joe Biden defenderia uma agenda “pós-neoliberal”. Trata-se de compromissos em prol de uma política industrial com grandes investimentos públicos em energia limpa, além de promover a recuperação do poder de compra dos salários e tornar mais difícil a vida das empresas que buscarem benefícios em paraísos fiscais. Acredita-se, no entanto, que qualquer que venha a ser o centro gravitacional da campanha dos democratas, parece claro que os republicanos apostarão todas as suas fichas em uma estratégia de campanha que explore fortemente o sentimento anti-China presente na população americana.

Para os republicanos, o foco central da campanha do presidente Donald Trump será atacar a China e qualquer um que se posicione de forma dúbia em relação às orientações do Partido Comunista Chinês e seu governo. Isso é o que diz o material produzido por um dos estrategistas da campanha dos republicanos e que circulou no National Republican Senatorial Committee. Em linhas gerais, de acordo com o documento, a estratégia de campanha republicana deveria buscar consolidar a ideia de que a China não é um aliado, mas sim um adversário dos Estados Unidos; e que o verdadeiro inimigo do povo americano é o Partido Comunista Chinês que, na visão da atual administração, persegue cristãos, aprisiona minorias étnicas e exporta pragas mundo afora.

Nesse sentido, muito provavelmente, esse ataque se dará em duas dimensões. A primeira terá o objetivo de culpar Pequim por todos os transtornos causados pela pandemia mundial do novo coronavírus. Sua segunda dimensão buscará apontar os impactos negativos da agressiva política comercial e de investimentos chineses sobre a economia norte-americana.

Espera-se que os republicanos instrumentalizem a pandemia para reforçar o discurso do presidente Trump no sentido de trazer as indústrias norte-americanas de volta para os Estados Unidos. Algo que já vinha sendo desenhado com a celebração do Novo Nafta, ganha força diante do cenário de dependência da sociedade norte-americana em relação a uma série de produtos e componentes de fabricação chinesa e que, com a crise de saúde global, consolida-se, junto ao eleitorado de Trump, como mais um ingrediente aglutinador dentro dessa lógica de enfrentamento.

Por fim, é preciso destacar que esse é o retrato da atual conjuntura eleitoral nos Estados Unidos que ganha novos contornos à medida que a pandemia gera mais desdobramentos domésticos e internacionais. Por enquanto, as eleições presidenciais acontecerão a daqui aproximados seis meses, em 3 de novembro. Até lá, a vasta agenda interna e externa do país seguirá influenciando os resultados das várias pesquisas de opinião que, de uma forma, ou de outra, ajudarão a determinar a intensidade do conflito de narrativas sobre a China.

Como é sabido, as relações entre Pequim e Washington tem sido, já há algum tempo, a interface de discussão dos principais temas da política norte-americana. Assim, ainda que a pandemia do novo coronavírus venha-se consolidando como mais um ponto crítico nas relações sino-americanas, sua análise demanda cautela diretamente proporcional ao grau de complexidade dessa interdependente relação que se construiu ao longo dos últimos 40 anos, com reflexos diretos em todo sistema internacional.

 

* Robson Coelho Cardoch Valdez é assessor de Relações Internacionais da Secretaria Extraordinária de Relações Federativas e Internacionais do Rio Grande do Sul, em Brasília. Doutor em Estudos Estratégicos Internacionais (UFRGS). Pesquisador do Núcleo de Estudos Latino-Americanos/IREL-UnB. Autor dos livros Política Externa e a Inserção Internacional do BNDES no Governo Lula (Appris, 2019) e Subindo a Escada – a internacionalização de empresas nacionais no Governo Lula (Appris, 2019).

** Recebido em 26 de maio de 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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