Internacional

Biden nas Nações Unidas e alguns dilemas da Política Externa Norte-Americana

Presidente Biden na 78ª AGNU, em Nova York, em 19 set. 2023 (Crédito: Richard Koek/Ministério das Relações Exteriores da Holanda)

Por Matheus de Oliveira Pereira* [Informe OPEU]

Todos os anos, no mês de setembro, a sede da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova York recebe líderes mundiais, cujos discursos conformam o Debate Geral que inaugura a edição anual da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU). Trata-se de um evento marcado por um interessante paradoxo.

Por um lado, é amplamente sabido por estudiosos e analistas da Política Internacional que a abertura da AGNU é um evento de importância mais simbólica, litúrgica, do que concreta. De fato, a Assembleia é marcante mais pela concentração de Chefes de Estado e Governo do que por servir de espaço para tomada de decisões, ou de realização de acordos relevantes. É justamente essa concentração de líderes – mais de uma centena comparecem todos os anos – na sede da maior Organização Internacional existente que atrai as atenções de todo o mundo, praticamente monopolizando a cobertura jornalística sobre Política Internacional durante uma semana. Tem-se, assim, a contradição mencionada há pouco: o evento de maior prestígio no calendário da Política Internacional é, também, um dos mais modestos em termos de implicações substantivas.

A atenção a este aspecto é importante para dimensionar adequadamente as análises sobre a Assembleia Geral, mas não deve servir como licença para esvaziá-la de significado. Embora a AGNU não represente um palco para grandes decisões, ela é ilustrativa de diversos elementos importantes para compreensão da big picture, do contexto mais amplo, em que se insere a conjuntura internacional de diferentes em momentos. Dessa forma, recuperar os discursos proferidos na ONU permite aos analistas capturarem as grandes questões, os temas de maior projeção, o conjunto de valores e visões de mundo que circulavam de modo mais ostensivo em diferentes quadras históricas.

Os discursos proferidos na tribuna da Assembleia são, neste sentido, particularmente ilustrativos. Mesmo não podendo ser tomados como expressão fidedigna da realidade que descrevem, os discursos são importantes pelo esforço de lapidação da forma como os atores políticos esperam que esta realidade seja lida. Eles servem ainda como ferramentas de projeção de prestígio, de demarcação de espaços e vocalização de posições perante audiências específicas. A adesão, ou a recusa, ao figurino típico da ocasião permite, por sua vez, que lideranças, cujo capital político assenta-se em imagens de rebeldia antissistema, amealhem dividendos junto às suas bases.

Este último aspecto é especialmente relevante no caso do presidente Joe Biden, que vem buscando ao longo dos últimos três anos recuperar uma imagem de normalidade da atuação internacional dos Estados Unidos, após os solavancos da gestão de Donald Trump. Desde que chegou à Casa Branca, em 2021, Biden tem usado o discurso na sessão de Abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas como uma espécie State of the Union (SOTU, na sigla em inglês) da política externa dos Estados Unidos, direcionado principalmente à audiência internacional, e tendo o núcleo das ideias liberal-internacionalistas como denominador comum que articula a mensagem central aos tópicos específicos.

P20230207CF-0355 | President Joe Biden delivers his State of… | FlickrBiden durante o último SOTU, em 3 fev. 2023, no Congresso americano, em Washington, D.C. (Crédito: Casa Branca/Carlos Fyfe)

No discurso proferido em 19 de setembro, na ONU, essa tendência foi reiterada. Como vem sendo de praxe desde 2021, a fala teve três grandes segmentos: um, dedicado à defesa e à renovação dos votos de compromisso com a Ordem Liberal Internacional; outro, voltado para recapitular as principais iniciativas, passadas e em curso, da política externa; e um terceiro, contemplando temas e regiões. Entre os destaques, estiveram questões como meio ambiente, direitos humanos e desafios à segurança internacional.

Com a pandemia debelada e o cansaço que vem-se impondo sobre a Guerra na Ucrânia, houve mais espaço para o presidente recuperar os êxitos da ordem liberal forjada pelos EUA no pós-Segunda Guerra Mundial e reiterar a disposição dos EUA em seguir liderando-a. Biden chamou a atenção especificamente para o fato de que não houve uma nova guerra entre grandes potências e para a retirada de um bilhão de pessoas da extrema pobreza como exemplos das virtudes da ordem liberal.

O diagnóstico cada vez mais generalizado de que esta ordem se encontra em crise não parece alheio à administração democrata, haja vista o reconhecimento feito por Biden sobre a necessidade de reforma das instituições internacionais, para refletir a nova geometria do poder mundial e alavancar a representação de regiões historicamente marginalizadas de posições relevantes nos processos de governança global. No rol das mudanças defendidas, Biden reiterou o anúncio feito em 2022, quando declarou o apoio dos Estados Unidos a uma expansão do Conselho de Segurança da ONU.

A insistência na necessidade de reformar, para fortalecer, as instituições internacionais, e o reconhecimento da interdependência como uma força que estimula a cooperação internacional são características que reforçam, no plano discursivo, a recuperação do liberal-internacionalismo que lastreia o projeto da ordem do pós-Segunda Guerra e, ao mesmo, estabelecem um contraste marcante com a linha adotada pela administração anterior. Enquanto Biden usa o discurso na ONU para afirmar que “nosso futuro está atrelado ao de vocês […] e nenhuma nação pode enfrentar sozinha os desafios atuais”, Donald Trump ocupou a mesma tribuna para proclamar a morte do “globalismo” e defender que o futuro “pertence aos patriotas”.

O afastamento da retórica agressiva a que Donald Trump recorria com frequência contra a cooperação internacional não significa a superação das contradições em que se insere a posição dos Estados Unidos neste âmbito. Neste sentido, há dois pontos que merecem especial destaque. O primeiro deles é a indisfarçável tensão entre a defesa do multilateralismo e da cooperação e a postura adotada pelos EUA nos últimos anos. É sintomático que Biden tenha dedicado maior espaço no discurso às instituições financeiras comerciais, enquanto a Organização Mundial do Comércio recebeu uma menção apenas residual e genérica.

A paralisação do sistema de resolução de controvérsias da OMC é um dos capítulos mais delicados da crise da ordem liberal e tem no comportamento dos Estados Unidos, desde o governo Obama, um elemento decisivo de seu agravamento, a tal ponto que alguns autores chegaram a classificar a postura dos EUA como similar à de um rogue state. Desde novembro de 2020, o órgão de apelações da OMC se encontra paralisado pelo bloqueio imposto pelos Estados Unidos à nomeação de novos juízes, esvaziando, assim, um dos mecanismos mais importantes, e institucionalizados, da governança econômica internacional.

A persistência do bloqueio na OMC reflete não apenas a insatisfação em Washington com o que se percebe como incapacidade da organização em conter as práticas chinesas, mas também exemplifica que a disposição em seguir apostando na governança multilateral é cada vez menor. Para além da atuação nas instituições multilaterais, as iniciativas e programas anunciados pelo governo Biden reforçam essa leitura. O já célebre discurso do conselheiro de Segurança Nacional, Jake Sullivan, em abril deste ano, foi amplamente recepcionado como marco do “fim do Consenso de Washington”, em referência ao conjunto de diretrizes de liberalização econômica articulado e dissipado pelos EUA desde a década de 1980. Em seu lugar, surge um programa de fortes contornos nacionalistas, como o Build Back Together, iniciativa calcada em uma visão das relações com a China como um jogo de soma zero e que prescreve medidas que vão na contramão das regras talhadas pelos EUA ao longo dos últimos 40 anos. Este movimento, na leitura de diversos analistas, tem dado ensejo a um “momento neomercantilista”, de revitalização do nacionalismo econômico e de resistência aos princípios do livre-comércio.

Jake Sullivan speaking at a podium with a blue banner that reads Brookings in the background. Jake Sullivan  apresenta a agenda de economia internacional do governo, no Hutchins Center on Fiscal and Monetary Policy, da Brookings Institution, em Washington, D.C. em 27 abr. 2023 (Crédito: Ralph Alswang /Brookings)

O segundo ponto a se destacar diz respeito à ausência de uma fórmula retórica que, até então, vinha sendo uma das marcas dos posicionamentos públicos de Biden e sua equipe de política externa: a noção de luta entre democracia e autocracia. Levantamento do Factba.se, um portal on-line que compila os discursos do presidente, mostra que Biden recorreu a este enunciado, ou a versões ligeiramente distintas dele, em mais de 20 ocasiões nos dois primeiros anos de mandato. Na Assembleia Geral de 2021, ele afirmou que o “autoritarismo pode procurar proclamar o fim da era democrática, mas [ele] estará errado”. No ano seguinte, Biden retomou o tema, dizendo que “não é segredo que na disputa entre democracia e autocracia, os Estados Unidos — e eu, como Presidente — defendemos uma visão para o nosso mundo que se baseia nos valores da democracia”.

O discurso deste ano contempla, contudo, apenas uma defesa da democracia, sem situa situá-la nos marcos de uma disputa mais ampla. Mesmo bastante sutil, essa ausência sugere um ajuste discreto na forma como Biden e sua equipe vinham apresentando tanto a sua leitura da conjuntura internacional como a das respostas formuladas pela política externa dos Estados Unidos às contingências que ela produz. A questão aqui diz respeito à crescente dificuldade de os EUA mobilizarem efetivamente uma narrativa polarizada em torno da oposição entre democracias e autocracias como forma de angariar alianças.

Essa dificuldade deriva de dois problemas politicamente muito complexos. Primeiro, há o limite inerente à classificação binária de democracia x autocracia, especialmente quando se trata de países aliados. Em julho deste ano, o corresponde do jornal The New York Times junto à Casa Branca, Peter Baker, já reportava o incômodo entre membros do governo com a abordagem maniqueísta adotada pelo presidente, porque diversos aliados importantes de Washington dificilmente figurariam como campeões da democracia. Países como Singapura, os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita são exemplos mais evidentes, mas há ainda casos como os de Hungria e Polônia, que têm papel importante no suporte internacional à Ucrânia.

O segundo aspecto, igualmente espinhoso, é o fato de que diversos países relevantes na estratégia dos EUA optaram por não escolher lados nessa disputa. A Índia ilustra bem esse quadro. Além de ser um país, cujas credenciais democráticas vêm-se erodindo nos últimos anos, a Índia tem-se mostrado francamente relutante a tomar partido na disputa sino-estadunidense, estabelecendo pontes de cooperação com ambos os países, ao mesmo tempo em que opera uma força relevante de contenção do poder chinês na região, o que amplifica sua importância estratégica para os Estados Unidos.

Esta indisposição não é restrita à Índia. Diversos países do Sul Global têm mostrado incômodo com a seleção de prioridades da Casa Branca. Esther Brimmer, analista do Council on Foreign Relations, levanta a hipótese de que Biden optou por abordar a situação na Ucrânia após falar sobre desenvolvimento sustentável como forma de responder às críticas que reclamam de uma preocupação maior com a guerra do que com a pobreza. Em sendo correta, a hipótese da autora revela outro ajuste – igualmente sutil – na construção do discurso.

Madeleine Albright - World Economic Forum Annual Meeting D… | Flickr(Arquivo) A então secretária Madeleine Albright, no encontro anual do Fórum Econômico Mundial, em Davos, Suíça, em 26 jan. 2000 (Crédito: WEF)

Tomados em conjunto, esses elementos delineiam um quadro em que a política externa dos Estados Unidos se vê enredada em algumas tensões. Desde sua posse, Biden vem buscando reforçar a imagem de hegemonia benevolente, tradicionalmente esgrimida pelos liberal-internacionalistas do país e sintetizada na famosa expressão de “Nação indispensável” da então secretária de Estado, Madeleine Albright, durante o governo do também democrata Bill Clinton. Há, contudo, um nó górdio localizado no contraste entre os custos que o país precisa assumir para manter as rédeas da Ordem Liberal Internacional e os benefícios que ele pode auferir dessa ordem, em meio à competição com a China e tudo que ela implica. Desatar este nó – que está na origem das frustrações dos EUA em relação à ordem por eles forjada – é um dos desafios mais complexos para o país e, até o momento, não parece haver saídas claras à vista.

 

* Matheus de Oliveira Pereira é Doutor em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-S) e pesquisador do INCT-INEU e do GEDES. Contato: matheus.mop@gmail.com. Twitter: @matheusop8.

** Rrevisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 27 set. 2023. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Para mais informações e outras solicitações, favor entrar em contato com a assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti, tcarlotti@gmail.com.

 

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