Internacional

Sem plano pós-retirada, Trump abre novo capítulo na Síria

Por Solange Reis

O presidente Donald Trump afirmou que “é hora de retirar os Estados Unidos das ridículas guerras intermináveis”. Após anunciar a saída de seus soldados do norte da Síria, disse que basta de gastar trilhões de dólares e perder milhares de vidas no Oriente Médio.

Devido ao grau elevado de envolvimento militar americano no exterior, um movimento estratégico dessa ordem sempre tem implicações geopolíticas. Desta vez, abriu o caminho para a Turquia atacar os curdos. Não que seja uma difícil escolha moral para Trump, mas liberar o corredor no norte sírio favorece um aliado em detrimento de outro. A Turquia é um Estado membro da OTAN que diverge dos Estados Unidos em vários pontos; com uma população estimada entre 25 e 30 milhões de pessoas, os curdos formam a maior nação apátrida do mundo e são parceiros em muitas ações militares americanas.

Outra possível consequência da retirada militar é um rearranjo de forças favorável à Rússia, ao governo sírio e, indiretamente, ao Irã. Um terceiro desdobramento possível é que os ataques turcos levem à fuga de integrantes do Estado Islâmico presos em território sírio.

A princípio, a Casa Branca disse que não apoiava a ação turca, mas também não tinha nada contra. Desde que fosse nos limites do que Trump, em toda a sua “grande e incomparável sabedoria” (como escreveu num tuíte) considerar razoável. “Curdos e turcos são inimigos centenários que devem resolver suas diferenças por conta própria”, disse o republicano. “Os curdos não são anjos”, destacou.

Pressionado por todos os lados, mas principalmente pelos republicanos, acabou por subir o tom contra Ancara numa carta nada diplomática ao presidente turco, Recep Tayyip Erdogan. Com uma linguagem que parece a de uma  criança birrenta, Trump ameaçou destruir a economia turca, caso Erdogan não resolva a questão curda de forma humana, e pediu que ele não se comporte como um “idiota”. Algumas sanções contra autoridades turcas começaram a ser aplicadas, e o vice-presidente, Mike Pence, viajou para a Turquia a fim de conter os danos.

Andando em círculos

A um ano da eleição, o presidente fez uma aposta alta. Sabendo que seria alvo de críticas intensas dos intervencionistas, jogou suas fichas no apoio dos nacionalistas, sua base eleitoral mais fiel. Por tabela, forçou a oposição progressista a se posicionar a seu favor ou da guerra. Por razões distintas, progressistas e nacionalistas são contra as guerras que consideram alheias aos interesses nacionais.

Difícil será Trump convencer todo mundo sobre sua convicção. Na mesma semana da saída da Síria, o Departamento de Defesa anunciou o envio de quase dois mil soldados à Arábia Saudita. Esse contingente soma-se a outros 14 mil despachados para o Oriente Médio desde maio para prevenir ameaças iminentes. Além disso, os mil soldados americanos na Síria deverão ser realocados no Iraque. Em outras palavras, arma-se o palco para um eventual ataque ao Irã. 

Diferentemente de alguns de seus antecessores, que preferiram começar uma aventura militar para ganhar pontos nas eleições, Trump escolhe retroceder numa guerra que a opinião pública desaprova e avançar onde é possível criar uma narrativa mais convincente. Em termos logísticos e estratégicos, sair da Síria também é mais simples do que do Afeganistão ou do Iraque. Além de ser mais fácil pulverizar as responsabilidades entre os muitos envolvidos naquele conflito.

Traição ou realismo?

A retirada dos soldados irritou os gregos e troianos dentro e fora de casa. Para começar, os curdos consideram-se apunhalados pelas costas. Afinal, ajudaram os Estados Unidos a combater o Estado Islâmico na Síria e no Iraque. A maior parte dos armamentos hoje em posse das Unidades de Proteção do Povo Curdo (YPG, na sigla em inglês) foi liberada por Trump a partir de 2017.

A aliança americana com os curdos no Oriente Médio, no entanto, é antiga. Os Peshmerga são combatentes curdos no Iraque que foram armados e treinados pelo Pentágono e pela CIA desde a década de 1970. Ajudaram em campanhas contra Saddam Hussein e grupos terroristas ou para pressionar a Turquia em questões de política externa. Os curdos sempre foram uma espécie de trunfo dos Estados Unidos na hora de impor seus interesses a países que não aceitam a autodeterminação daquela etnia.

O YPG integra as Forças Democráticas Sírias (SDF, na sigla em inglês) e tem ligações com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, na sigla em inglês), organização separatista na Turquia. Tanto o governo turco quanto o americano consideram o PKK um grupo terrorista.

Há, porém, um detalhe menos explorado na imprensa em geral, inclusive no Brasil. Quando os formadores de opinião pública se indignam com a deslealdade americana em relação aos curdos, fingem não ter compactuado com o poder de fogo dos turcos. Afinal, a invasão da Síria pela Turquia é feita, essencialmente, com armamentos americanos. Os 333 aviões da Força Aérea turca foram comprados dos Estados Unidos, assim como 80% dos 6.000 tanques. Afora todo o arsenal de bombas.

Em contrapartida, os curdos receberam rifles, lançadores de foguetes e munições mais básicas. Desde sempre, o espectro político e comunicativo pró-guerra sabe que os curdos são a principal questão de segurança para a Turquia. Ao autorizarem ou incentivarem a venda de armas para o país, legitimaram uma ação futura contra aquele grupo étnico.

Nada disso é segredo guardado a sete chaves pelo Executivo. De acordo com a Lei de Controle de Exportação de Armas, (Arms Exports Control Act) de 1976, o Congresso deve ser notificado com 30 dias de antecedência sobre a venda de armas para países estrangeiros. O prazo é de apenas 15 dias quando envolve membros da OTAN. Caso uma venda seja rejeitada pelo Legislativo, o presidente sempre terá o recurso do veto. Este, no entanto, poderá ser derrubado por maioria qualificada dos congressistas.

Como o intervencionismo é uma preferência bipartidária, a exportação de armamentos quase nunca é recusada. Assim, se o presidente deu aos turcos a licença para matar, o fez com o aval prévio dos mesmos indivíduos e grupos que agora o criticam. Apesar disso, muitos jornalistas, políticos e acadêmicos seguem chamando-o de traidor e péssimo estrategista.

De fato, os primeiros desdobramentos da saída dos militares endossam as críticas. Combatentes e civis curdos foram mortos por soldados turcos, e integrantes do Estado Islâmico teriam fugido em decorrência da confusão instalada. Os russos começam a assumir o espaço deixado pelos americanos, seja ocupando bases e instalações vazias ou mediando os diferentes atores envolvidos. Bashar al-Assad, presidente sírio, recuperou território no norte da Síria em troca de socorro aos curdos. Aliados do Irã na Síria também ganham fôlego, o que favorece o posicionamento iraniano na região.

Na quarta-feira (16), a Câmara aprovou uma espécie de moção de repúdio à decisão de remoção dos soldados. Com 354 votos a 60, os representantes deram um recado claro, ainda que hipócrita. “Que tipo de mensagem isto passa ao mundo? Como os Estados Unidos podem ser dignos de confiança, se traem um de seus principais parceiros?”, perguntou o presidente do Comitê de Relações Exteriores, Eliot Engel. Comprar uma briga com o Congresso, em meio ao andamento do impeachment, poderá custar caro ao presidente.

Com a exceção de uma minoria de vozes antiguerra nos think tanks, jornais e meio político, ninguém no establishment questiona por qual motivo e até quando os Estados Unidos permaneceriam na Síria, um conflito que já completa oito anos. Trump não é um pacifista, mas um realista alucinado com seu próprio ego. Tivesse ele o pragmatismo e o sangue-frio que o realismo exige, teria pensado em um plano de estabilidade pós-retirada militar.

O caos nosso de cada dia

A política de Trump para região é, sim, desastrosa. Muitas de suas ações – sair do acordo nuclear com o Irã, reconhecer Jerusalém como capital de Israel, auxiliar a Arábia Saudita contra o Iêmen – fortalecem um possível bloco árabe-israelense capaz de assumir o direcionamento regional, massacrando países e grupos rivais. Dessa forma, mantém-se girando a roda das guerras intermináveis.

O republicano sempre disse que tentaria transferir a responsabilidade da segurança para atores locais, pois não aprova o envolvimento de seu país em conflitos de terceiros. Nesse sentido, rompe uma tradição da política externa americana para a região. Os Estados Unidos alternaram entre seus favorecidos várias vezes, mas nunca cederam o papel de autoridade suprema na área.

Os titubeios do presidente tornam a política externa bastante inconsistente. Quis sair da Síria em dezembro, mas foi convencido do contrário pela alta cúpula militar. Talvez uma saída gradativa e coordenada na época tivesse evitado o apagão atual. Ordenou um ataque ao Irã em julho, mas desistiu na última hora. Segundo especulações, a investida foi suspensa por influência de Tucker Carlson, analista nacionalista-conservador da Fox News. 

Por outro lado, ao levar o caos para o Oriente Médio, Trump não deixa de seguir um parâmetro. Desde que Franklin Delano Roosevelt negociou o acesso a campos de petróleo em troca de proteção para a monarquia saudita, os Estados Unidos interferiram sistematicamente na região. Às vezes, derrubando regimes; outras, com bombas e soldados. Nem Barack Obama, cujo impactante discurso no Cairo foi de conciliação, conseguiu mudar o padrão drasticamente. E, o que pode ser mais caótico do que a fracassada invasão do Iraque por George W. Bush, origem de grande parte do imbróglio atual?

A doutrina ausente

O presidente foi eleito com a promessa de acabar com as guerras duradouras, mas não soube, não pôde ou não quis cumpri-la. A guerra no Afeganistão está prestes a completar 19 anos. A última tentativa de encerrá-la fracassou para todos os envolvidos. Trump teve que desistir de um pré-acordo com o Talibã após vazamentos da Casa Branca para a imprensa. O fiasco também teve como consequência a demissão do conselheiro de segurança nacional, John Bolton, uma das figuras públicas mais intervencionista do país. Há suspeitas de que Bolton, ex-comentarista da Fox News, tenha sido a fonte dos vazamentos, justamente para boicotar os planos de paz. Realmente, seria improvável ocorrer a retirada militar da Síria com um Bolton influente no governo.

Segundo a secretária de Imprensa, Stephanie Grisham, a missão dos Estados Unidos na Síria terminou com a eliminação do Estado Islâmico. O problema é que a geopolítica é um jogo de tabuleiro; cada lance de um jogador desencadeia uma série de possibilidades para o adversário. 

Adam Wunische, do anti-intervencionista Quincy Institute, disse que a forma da retirada militar foi totalmente errada. “Até onde eu sei, os Estados Unidos são um dos únicos atores que podem, efetivamente, falar tanto com os turcos quanto com os curdos. Então, eles deveriam ter tentado encontrar um arranjo político aceitável para todas as partes envolvidas que não implicasse uma presença militar sem fim e mal definida para os Estados Unidos”.

O argumento faz todo sentido. Exceto que, para isso, seria preciso haver uma doutrina de política externa e segurança formulada com lógica, consistência e objetividade. Em três anos de governo Trump, esses foram os três principais substantivos a desaparecer do léxico oficial. Depois da verdade, é claro.

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais