Economia e Finanças

EUA, crise na OMC e as incertezas para o sistema multilateral de comércio

Ao centro, o diretor-geral da OMC, o brasileiro Roberto Azevêdo

Por Carolina Loução Preto e Edna Aparecida da Silva*

É o fim do mecanismo de resolução de contenciosos comerciais da Organização Mundial do Comércio (OMC)? É o fim de um sistema de comércio influenciado por regras e que, portanto, favorece os Estados menos poderosos? Esse tem sido o conteúdo de indagações e conclusões propostas pelos observadores mais alarmados com a paralisação, a partir de 11 de dezembro, do Órgão de Apelação (OAP) da OMC, uma espécie de tribunal de segunda instância que compõe o mecanismo encarregado de solucionar disputas comerciais entre os membros da organização, o Órgão de Solução de Controvérsias (OSC).

O OAP é normalmente composto por sete árbitros, que possuem mandatos de quatro anos, sujeitos a uma renovação, mas vinha funcionando com apenas três. Com o término, em 10 de dezembro, dos mandatos de dois de seus árbitros, Thomas Graham (EUA) e Ujal Sibgh Batia (Índia), o OAP deixou de ter o número mínimo de membros exigido para resolver casos, segundo as regras da OMC. Assim, as atividades da instância apelatória tiveram de ser interrompidas pela falta de membros. Há cerca de dois anos, os EUA vêm bloqueando a nomeação de árbitros para o Órgão de Apelação, o que impediu a substituição dos “juízes”, cujos mandatos foram se encerrando ao longo desse período.

Em reunião do dia 9 de dezembro entre o diretor-geral Roberto Azevêdo e líderes das delegações, ainda se tentou um último acordo para iniciar a seleção de árbitros. O objetivo era permitir que pelo menos as apelações em andamento fossem concluídas por aqueles que já trabalhavam nelas, mesmo tendo encerrado seus mandatos. Prática esta adotada na OMC e alvo de queixas dos EUA. O governo Trump se recusou a apoiar a proposta. Washington alega que suas preocupações de que o Órgão de Apelação tem extrapolado sua autoridade legal e se desviado das regras da OMC não foram solucionadas.

EUA: muitas queixas, nenhuma proposta

Para os EUA, os árbitros têm interpretado as regras da OMC de maneira expansiva, criando obrigações que os países não negociaram, ou acordaram previamente, e alterando o equilíbrio entre compromissos e direitos dos membros. Ligada a essa insatisfação está um grande número de casos perdidos pelos EUA, principal alvo de reclamações por outros países desde que a OMC foi criada oficialmente, em 1995. Desde então, os americanos amargam uma longa série de derrotas relativas ao uso de medidas de defesa comercial.

Além disso, os EUA entendem que as regras da OMC têm sido insuficientes para conter práticas comerciais problemáticas da China, como a concessão de subsídios por empresas estatais, os quais, em alguns casos, favorecem indústrias chinesas de alta tecnologia. Tampouco ajudou o fato de, em novembro, o OSC ter decidido em favor de Pequim em um caso sobre defesa comercial contra os EUA, envolvendo cerca de US$ 3,6 bilhões. Em outras palavras, uma antiga insatisfação dos EUA com o OSC foi profundamente intensificada pela ascensão econômica e tecnológica da China.

Apesar das críticas da maioria dos países-membros e da apresentação de algumas propostas de reforma do OSC em um grupo de trabalho criado na própria OMC para discutir a questão, os Estados Unidos não se mostravam satisfeitos. Também não assumiam uma postura propositiva que indicasse as mudanças que esperavam como condição para destravar o processo. Ao contrário, em uma provável referência a um paper circulado pela delegação da União Europeia, criticou propostas de reforma que, segundo os americanos, apenas legitimariam os desvios do órgão.

Diante desse quadro, analistas especulavam que o governo Trump tinha a intenção de paralisar o OAP e tornar a solução de controvérsias comerciais menos legalista e mais diplomática, como ocorria nos tempos do GATT (1947-1994), o acordo internacional que precedeu a OMC. Diante de declarações alarmistas, adotar certa cautela e perspectiva histórica pode ajudar a refletir sobre o impacto desse acontecimento para o mecanismo de solução de controvérsias e para o multilateralismo comercial em geral.

Retorno ao passado

Os painéis – a etapa do processo de solução de disputas da OMC que antecede uma eventual apelação – seguirão funcionando. Além disso, antes ainda desse estágio, o processo prevê a realização de consultas entre as partes – etapa em que parte considerável das queixas tem sido historicamente solucionada – e existem outros instrumentos, como mediação e arbitragem. Portanto, cabe pontuar, não se trata do fim completo do mecanismo de solução de controvérsias da OMC, que poderá continuar a receber reclamações sobre descumprimento de regras. Adicionalmente, para suprir a ausência de uma instância apelatória, atores como a UE têm proposto que se use arbitragem voluntária para resolver apelações, tendo anunciado um entendimento com o Canadá nesse sentido.

Como destacou o diretor-geral da OMC, Roberto Azevêdo: “Members will continue to resolve WTO disputes through consultations, panels, and other means envisaged in the WTO agreements such as arbitration or good offices of the DG … but we cannot abandon what must be our priority, namely finding a permanent solution for the Appellate Body”.

Destaca-se, porém, que, nos debates para a aprovação do orçamento da OMC, os EUA têm defendido restrições nas condições de uso do orçamento para o Órgão de Apelação e para os procedimentos de arbitragem. Trata-se de um movimento que parece tentar impedir que essas alternativas prosperem e tomem a mesma relevância do antigo OAP. Também é importante ressaltar que, com a paralisia do OAP, qualquer uma das partes em um caso pode apelar da decisão emitida pelo painel, o que suspenderia os efeitos legais da decisão. Caso sigam assim, as novas circunstâncias são realmente mais próximas do mecanismo de solução de controvérsias existente no GATT, no qual os Estados tinham o direito de vetar a obrigatoriedade de decisões contra eles.

Também é preciso lembrar que, apesar de suas limitações, o mecanismo do GATT foi, por décadas, usado para resolver contenciosos comerciais. Por seu razoável sucesso, o sistema atraiu o interesse de atores econômicos que buscavam ter seus setores disciplinados por compromissos internacionais e monitorados pelo mecanismo do GATT. Foi na passagem do GATT para a OMC que os países aceitaram abrir mão do poder de bloquear decisões que não lhes agradassem, dando mais autonomia ao mecanismo de solução de controvérsias. Ironicamente, foram os Estados Unidos os grandes proponentes dessa mudança. E foi apenas nesse momento que se estabeleceu a instância apelatória, hoje inativa, para rever as decisões, posto que não poderiam mais ser vetadas.

Enfraquecimento da OMC e do multilateralismo

Sem dúvida, o cenário é de enfraquecimento do multilateralismo comercial e de uma peça central da OMC, que se destacava entre as organizações internacionais por possuir um mecanismo de solução de disputas robusto, capaz de autorizar retaliações comerciais bilionárias. Desde sua criação em 1995, o OSC vem sendo usado pelos membros da OMC na tentativa de dirimir mais de 500 contenciosos sobre temas diversos, como bens industriais, agricultura, serviços, propriedade intelectual, subsídios e barreiras técnicas, sanitárias e fitossanitárias ao comércio.

O problema é ainda mais profundo, porque essa não é a única medida da administração Trump que enfraquece a institucionalidade da OMC. É notório que os Estados Unidos têm tomado medidas unilaterais ao impor tarifas e outras barreiras à China e a diversos outros países, o que é visto por muitos como uma violação escancarada de regras centrais da instituição. Além disso, a crise no OSC, um braço da OMC que continuava em plena atividade apesar do fracasso da Rodada de Doha, deve ser pensada em sua relação com a crise que já há muito tempo afeta a capacidade da instituição de servir como espaço para a negociação e produção de novas regras comerciais. Sem que elas fossem criadas, o órgão absorveu disputas controversas e, na visão dos EUA, preencheu lacunas indevidamente.

Compõe o problema o fato de que, em um cenário de competitividade crescente, a perspectiva dos Estados Unidos é a de que a OMC não apenas não produz novas regras para disciplinar determinadas práticas problemáticas chinesas, como também permitiu que algumas delas fossem mantidas. Um exemplo, de acordo com os EUA, seriam os casos em que subsídios concedidos por empresas estatais chinesas não foram considerados ilegais. Enquanto esse for o cenário, o OSC perde relevância para os Estados Unidos, uma vez que sua função é monitorar a observância de regras.

Considerando-se esses elementos em perspectiva histórica, não é a primeira vez que os EUA agem de maneira unilateral, ou que enfraquecem a institucionalidade do sistema de comércio. Durante as negociações da Rodada Uruguai (1986-1994), os EUA fortaleceram leis domésticas que permitiam a imposição de sanções comerciais unilaterais contra outros países, pressionando-os a aceitar a reforma do mecanismo de solução de controvérsias do GATT, sobretudo, depois de terem negociado novos acordos e o estabelecimento de disciplinas de seu interesse. Dessa forma, dirigiram duros golpes ao sistema de comércio, mas ele foi depois reorganizado em seu favor e saiu fortalecido. A questão é que, agora, é a China que está do outro lado da mesa de negociação. Não é claro em que termos um entendimento seria possível, visto que a China zela por sua liberdade de adotar uma série de políticas econômicas.

‘Ativismo judicial’ não é de hoje

Muitos se referem com pesar à destruição, promovida pela reviravolta na política comercial e pelo unilateralismo do governo Trump, de uma ordem econômica internacional que teria gerado prosperidade e estabilidade e cujo estabelecimento os EUA patrocinaram no pós-Segunda Guerra Mundial. É preciso lembrar, contudo, que esta mesma ordem já havia se alterado profundamente desde a ascensão do neoliberalismo e do aprofundamento da globalização, momento em que a OMC e o OSC se tornaram símbolos de um multilateralismo mais ambicioso e com impactos mais profundos no plano doméstico dos Estados.

Talvez surpreenda alguns que as críticas ao OSC e o argumento do “ativismo judicial” não têm raízes no governo Trump. O mecanismo já há muito tempo é alvo de críticas de ambientalistas e de ativistas no campo da saúde pública e dos direitos humanos em países avançados como os EUA, que também defendiam que as decisões foram muito longe, eram intrusivas e restringiam políticas ambientais, de saúde pública e de desenvolvimento legítimas. Nos EUA, não é de hoje o argumento do ativismo judicial, mas ele certamente foi abraçado e levado a consequências sem precedentes pela administração Trump. A própria administração Obama rejeitou pontualmente a nomeação de determinados árbitros, em 2011 e em 2016, por discordar do conteúdo de decisões, gerando críticas internacionais de que os EUA tentavam enfraquecer a independência do órgão.

O OSC, por sua vez, por ser mais pautado por regras, tem sido descrito como um mecanismo que favorece os Estados com menor poder e influência. Sua paralisia é bastante lamentada. Países em desenvolvimento, como o Brasil, têm usado o mecanismo com maior frequência e obtido vitórias, ao contestar práticas comerciais de países muito mais poderosos, entre eles os EUA. Ainda assim, é sempre preciso lembrar que, quando se leva em conta que a OMC possui 164 membros, é visível que um número muito limitado de países é responsável pela grande maioria das disputas. Países como Brasil e Índia são usuários relevantes, mas o acesso ao sistema é, na prática, muito custoso do ponto de vista financeiro e de recursos humanos para muitos outros países. A ameaça de retaliação comercial – instrumento que pode ser autorizado em caso de descumprimento das decisões quando realizada por países mais fracos – tem um peso muito menor do que as de países poderosos.

Como apresentado neste texto, é inegável que o sistema têm graves problemas e deficiências. Justamente por isso, é útil e necessário levar em conta os dados expostos e a trajetória histórica para se entender as razões da crise e refletir sobre as implicações da paralisia do Órgão de Apelação sem exageros.

 

* Carolina Loução Preto é doutora em Relações Internacionais e pesquisadora do INCT/INEU.

Edna Aparecida da Silva é cientista política e pesquisadora INCT/INEU.

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