Brasil

Reforma ou ruptura: ante crise da governança global, Brasil e EUA discursam na 78ª AGNU

Presidente Lula discursa na 78ª AGNU, em Nova York (Crédito: ONU/Cia Pak)

Por Rúbia Marcussi Pontes, Patrícia Nogueira Rinaldi, Roberta Silva Machado e Patricia Capelini Borelli* [Informe OPEU]

O Debate Geral da 78ª sessão da Assembleia Geral das Nações (AGNU) teve início em 19 de setembro na sede da ONU, em Nova York. Ao mesmo tempo que se trata de uma sessão crucial, já que marca a metade do caminho para o cumprimento dos 17 Objetivos que compõem a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, a ausência dos chefes de Estado e Governo de quatro dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (CSNU) — China, Federação Russa, França e Reino Unido — demonstra o desinteresse das grandes potências em apresentar suas agendas e compromissos de mais alto nível para fortalecer a governança global no maior fórum multilateral existente.

António Guterres: “reforma ou ruptura”

A ausência das quatro potências não impediu que o secretário-geral da ONU, António Guterres, abrisse a sessão com um dos discursos mais enfáticos em seus seis anos de mandato à frente do Secretariado da organização. Guterres afirmou que é hora de reformar e modernizar as instituições internacionais, ou de enfrentar a ruptura — do multilateralismo e da própria existência humana, ameaçada, mais do que nunca, pelos conflitos e pelo caos climático.

Em seu segundo mandato como secretário-geral da ONU e sem a pressão política de buscar uma reeleição, Guterres apresentou, em seu discurso, os dois pilares do legado político que almeja deixar para a organização. Em primeiro lugar, consolidar seu Pacto de Solidariedade Climática para acelerar a ambição das metas de mitigação da emissão de gases do efeito estufa por parte dos países desenvolvidos; e garantir maiores compromissos para o financiamento da adaptação climática nos países em desenvolvimento.

Em segundo lugar, promover sua Nova Agenda para a Paz, que visa a reformar a arquitetura da paz e segurança internacionais em cinco áreas prioritárias: prevenção de riscos geopolíticos e nucleares; articulação entre as agendas de paz e desenvolvimento para prevenir a escalada da violência; fortalecer as missões de paz e buscar caminhos legítimos em situações de imposição da paz; lidar com os problemas de segurança relacionados com o avanço da tecnologia, como os conflitos no espaço sideral e no ciberespaço; e fortalecer a governança da segurança coletiva internacional.

Brasil no centro das atenções

Assim como Guterres, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva aproveitou a tradição de ser o primeiro país a discursar no Debate Geral para reforçar o slogan que vem acompanhando seus discursos em temas de política externa desde sua vitória eleitoral: “o Brasil está de volta”, disse Lula, enaltecendo o papel da democracia frente à opressão, ao ódio e à desinformação.

Lula começou seu discurso relembrando Sérgio Vieira de Mello, brasileiro e funcionário da ONU morto em um atentado em Bagdá, em 2003, e expressou condolências às pessoas que sofreram com as tragédias no Marrocos, no Líbano e no Rio Grande do Sul. Tal expressão da solidariedade nacional e internacional indicou, logo de início, que sua fala resgataria as linhas tradicionais da política externa brasileira (PEB), rompendo, portanto, com os discursos feitos pelo Brasil nas últimas Plenárias de Abertura da AGNU.

Sergio Vieira de Mello | (UN Photo/Patrick Bertshmann) | Flickr

Sérgio Vieira de Mello (Crédito: ONU/Patrick Bertshmann)

O presidente combinou os princípios clássicos da diplomacia brasileira com a questão da desigualdade, que foi o eixo estruturante de sua fala: Lula mencionou a palavra 14 vezes em seu discurso. Ao enfatizar a urgência em reduzir a desigualdade social e superar o problema da fome, Lula mostrou, mais uma vez, que estava trazendo a tradicional agenda da política externa brasileira para a ONU. O presidente deixou isso claro ao reforçar a volta do universalismo como diretriz e o papel do multilateralismo para enfrentar os atuais desafios, especialmente a crise climática.

Ao falar da crise climática, Lula resgatou também uma postura tradicional de política externa, denunciando a desigualdade internacional entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, já que esses grupos de países contribuem e são afetados de formas distintas pelo aquecimento global. Nesse contexto, resgatou o Princípio 7 da Declaração do Rio (1992), reafirmando “as responsabilidades comuns, mas diferenciadas”.

Ainda, Lula reforçou o pouco tempo hábil para alcançar os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), cujo prazo é 2030, e destacou algumas das medidas que o Brasil vem tomando nesse sentido, especialmente no combate à fome, à insegurança alimentar e à redução da pobreza e desigualdade de gênero. Para além, destacou que atingir a igualdade racial será o 18º ODS implementado pelo país.

Na sala da AGNU, Lula foi interrompido várias vezes por aplausos, e a repercussão de seu discurso nas mídias nacional e internacional foi extremamente positiva. Contudo, seu oitavo pronunciamento frente à AGNU, o que o tornou o líder que mais subiu ao púlpito na história das Plenárias de Abertura do órgão, poderia ter sido mais fidedigno ao momento histórico que representava. Ainda que o discurso de Lula traga algum conforto por resgatar as linhas tradicionais de política externa, ele também gera incômodos por esse mesmo motivo.

PEB: é preciso ir além do tradicional

O discurso do Brasil retomou pautas importantes da política externa brasileira referentes à agenda de direitos humanos, como igualdade de gênero e combate à violência contra as mulheres, combate ao racismo, xenofobia e intolerância, direitos de pessoas LGBTQIA+ e direitos de pessoas portadoras de deficiência. Nesse sentido, a desigualdade foi apresentada como raiz dos problemas globais atuais, como é o caso do racismo, da intolerância e da xenofobia.

Outro tema retomado no discurso do Brasil foi a promoção da igualdade de gênero, com ênfase na igualdade salarial e no combate ao feminicídio e violência contra a mulher. A temática dos direitos das mulheres e da igualdade de gênero foi, no entanto, pouco explorada no discurso brasileiro, se levarmos em conta os últimos quatro anos, nos quais houve iniciativas articuladas pelo governo Bolsonaro de trazer uma agenda conservadora à ONU, alinhando-se a países que violam direitos das mulheres e promovendo retrocessos na garantia desses direitos no âmbito doméstico.

Os direitos de pessoas LGBTQIA+ e de pessoas portadoras de deficiência foram citados no discurso do presidente Lula, mas de forma tímida. Assim como a agenda de gênero, os direitos de pessoas LGBTQIA+ sofreram enormes retrocessos durante o governo Bolsonaro, levando à mobilização da sociedade civil nacional e, como resultado, à eleição de duas parlamentares LGBTQIA+ para a Câmara dos Deputados. Em consonância com a própria crítica do presidente Lula ao avanço da extrema direita pelo mundo, nos quais a perseguição a pessoas LGBTQIA+ e a negação de seus direitos se tornaram lugar comum, o Brasil poderia ter explorado mais esse tema em seu discurso.

Ao mesmo tempo, Lula “alfinetou” o Norte Global, como EUA e União Europeia, quando defendeu a liberdade de imprensa e Julian Assange, bem como quando criticou os discursos anti-imigração que crescem nesses países.

A crise climática e sua relação com as desigualdades foi o destaque do discurso do Brasil, especialmente as políticas nacionais e regionais de preservação da Amazônia e combate ao desmatamento. Nesse sentido, o presidente destacou que “o mundo inteiro sempre falou da Amazônia. Agora, a Amazônia está falando por si”.

Não houve, entretanto, uma menção sequer ao papel dos povos indígenas no combate às mudanças climáticas e na garantia de seus direitos coletivos. Após os quatro últimos anos, em que foram cometidas as mais graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas brasileiros, era extremamente necessário que o discurso do Brasil destacasse esse tema.

Além disso, o fato de o governo contar com um Ministério dos Povos Indígenas, dirigido por uma representante indígena, é um marco histórico que seria digno de menção e reforçaria seu compromisso com o combate às mudanças climáticas. Afinal, para que a Amazônia “fale por si”, é preciso dar voz aos povos indígenas e reconhecer seu papel ancestral na preservação do bioma.

Por fim, considerando os resultados da Cúpula da Amazônia em agosto e a escolha do Brasil para sediar a Conferência das Partes (COP-30) sobre mudanças climáticas em 2025 na Amazônia Legal, em Belém do Pará, era crucial que Lula mencionasse compromissos concretos para além do combate ao desmatamento na Amazônia. Desse modo, era importante que o Brasil liderasse pelo exemplo e apresentasse um conjunto de metas mais ambiciosas para a mitigação e a adaptação da crise climática na região.

Nada de novo no front? O discurso de Biden

Logo depois de Lula, foi a vez do presidente estadunidense, Joe Biden, subir ao púlpito. Como antecipado, seu discurso buscou reafirmar algo que a prática internacional parece contradizer: os EUA seguem comprometidos em liderar e financiar a ordem mundial para todo o mundo.

Suas primeiras palavras ecoaram a Guerra do Vietnã e o grupo de veteranos, formado por estadunidenses e vietnamitas, com o qual Biden teve contato na semana anterior. Isso, para dizer que, “com liderança certa e esforços cuidadosos, adversários podem se tornar parceiros, desafios esmagadores podem ser resolvidos, e feridas profundas podem curar”. Sem menções, é claro, aos milhares de vietnamitas mortos no conflito.

Mas sua intenção era, como tradicionalmente na política externa estadunidense, relembrar o dever histórico dos EUA de liderar o mundo em momentos críticos. Nesse sentido, Biden reforçou o compromisso que seu país tem para com as instituições internacionais e, em especial, a ONU.

Biden says 'when we stand together', we can tackle any challenge | UN NewsPresidente Joe Biden discursa na 78ª AGNU, em Nova York (Crédito: ONU/Cia Pak)

Curiosamente, na ausência dos chefes de Estado e Governo dos demais membros permanentes do CSNU, Biden fez um discurso diferente esse ano, voltado para as demandas do Sul Global. Com frases como “Nós [EUA] sabemos que nosso futuro está ligado ao de vocês” e “Nós temos que trazer maior liderança e capacidade (…) especialmente para regiões que nem sempre foram incluídas”, Biden sinalizou medidas para regiões que têm sido negligenciadas por sua política externa, como a América Latina e a África. Não se pode deixar de notar que tal posicionamento de Biden sinaliza uma reação ao fato de que a expansão chinesa tem sido feita com base em alianças e parcerias com os países em desenvolvimento.

Da mesma maneira, a sinalização positiva a uma reforma do CSNU, com a expansão dos membros permanentes e não-permanentes, ecoa uma demanda antiga do Sul Global, embora ainda haja que se ver os reais esforços dos EUA nesse sentido.

Biden também reforçou como os EUA “estão empenhados em fazer a sua parte para nos colocar de volta no caminho certo”, incluindo o momento crítico de aceleração do cumprimento da Agenda 2030 e seus 17 ODS. Ele também dedicou parte de seu discurso à questão climática e reforçou seu esforço doméstico, junto ao Congresso, para quadruplicar o financiamento para adaptação e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas, com destaque para a atuação dos EUA nesse sentido com o Fórum das Ilhas do Pacífico.

Por fim, como era de se esperar, o presidente Biden relembrou que a ONU está fundada no princípio da soberania e que uma guerra ilegal, a guerra da Ucrânia, segue em curso. Ele reforçou que, assim como a Rússia é, sozinha, a única responsável pelo início desse conflito, também ela, sozinha, pode encerrá-la imediatamente.

Biden e Lula se encontram

A 78ª sessão da AGNU está apenas começando e muitos pronunciamentos ainda precisam ser ouvidos. Mas os trabalhos às margens da Assembleia já sinalizam como o Brasil recobrou destaque na agenda de política externa estadunidense.

Nesse sentido, Biden se encontrou, na tarde de 20 de setembro, com o presidente Lula. Os líderes anunciaram a Parceria pelos Direitos dos Trabalhadores e Trabalhadoras, iniciativa que busca promover o trabalho decente em um contexto crescente de digitalização das economias e de uso de Inteligência Artificial.

Segundo Lula, tal parceria busca diminuir as desigualdades e a pobreza, “que não interessam a ninguém”. Ele afirmou, ainda, que o encontro bilateral foi o “renascer de um novo tempo na relação entre EUA e Brasil”. Esperemos para analisar se essa possível nova fase corresponderá à urgência e às promessas para lidar, coletivamente, com os desafios enumerados perante a audiência mundial.

 

* Rúbia Marcussi Pontes é doutoranda em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora de Relações Internacionais das Faculdades de Campinas (FACAMP) e pesquisadora do INCT-INEU. Contato: rubia.pontes@facamp.com.br.

Patrícia Nogueira Rinaldi é Doutora em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora de Relações Internacionais das Faculdades de Campinas (FACAMP). Contato: patricia.rinaldi@facamp.com.br.

Roberta Silva Machado é Doutora em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e em Direito pela Universidad de Sevilla. Professora de Relações Internacionais das Faculdades de Campinas (FACAMP). Contato: roberta.machado@facamp.com.br.

Patricia Capelini Borelli é Doutora em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (UNICAMP/UNESP/PUC-SP). Professora de Relações Internacionais das Faculdades de Campinas (FACAMP). Contato: patricia.borelli@facamp.com.br.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 21 set. 2023. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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