OPEU Entrevista

Metri: ‘EUA não será indiferente às iniciativas de desdolarização e defenderá sua moeda’

Por Ingrid Marra* [OPEU Entrevista]

https://0.academia-photos.com/27822258/9796506/27359755/s200_mauricio.metri.jpg

Prof. Mauricio Metri (UFRJ)

Neste OPEU Entrevista, conversamos com Maurício Metri, professor associado do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da UFRJ e do programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional (PEPI) do Instituto de Economia da UFRJ. Doutor, mestre e graduado pelo Instituto de Economia da UFRJ, é coordenador do Laboratório Orti Oricellari de Estudos em Economia Política Internacional, vinculado ao PEPI-UFRJ e ao IRID-UFRJ. Também é membro do grupo de pesquisa Poder Global e Geopolítica do Capitalismo, vinculado ao PEPI-UFRJ e ao CNPq. Tem como principais linhas de pesquisa Economia Política Internacional, Geopolítica e História.

Entre outros temas, o professor Metri falou sobre sua trajetória acadêmica, diplomacia monetária, Estados Unidos, desdolarização e China. Abaixo, os principais trechos da entrevista:

OPEU: Olá, prof. Metri! Muito obrigada por aceitar participar da entrevista com o OPEU. Gostaria que você começasse nos contando um pouco sobre sua trajetória acadêmica. O que mais te interessa em seu campo? Como e por que escolheu esse caminho?

Primeiro, gostaria de agradecer ao OPEU pela oportunidade, para mim uma satisfação, pois se trata de uma referência para quem acompanha política doméstica e internacional dos Estados Unidos. Sou formado em Economia (1999), com mestrado (2003) e doutorado (2007) também em Economia, tudo pela UFRJ. No entanto, minhas pesquisas de dissertação e tese se voltaram para a área internacional, mais precisamente para uma reflexão interdisciplinar entre moeda, finanças, diplomacia, geopolítica e história. Algo não pouco estranho aos meus colegas economistas e, na verdade, com enorme interface com o campo das Relações Internacionais, mais precisamente com a área de Economia Política Internacional (EPI).

Após eu terminar o doutorado, não demorou muito e entrei para o Departamento de História e Economia do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ em 2009 e, para minha sorte, pouco tempo depois, começaram os primeiros concursos para o então recém-criado curso de Relações Internacionais na UFRJ. Época em que também ali estava sendo estruturado o Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional (PEPI). Assim, praticamente, desde meu ingresso na UFRJ em 2010, dedico-me à graduação de RI e ao PEPI.

The geoeconomics of the empire and the mutations of the capital: the two cycles of US economic expansion in the late twentieth century | Brazilian Journal of Political EconomyEm relação aos meus interesses, embora tenha aberto outras frentes, segui me dedicando ao tema da moeda e das finanças no campo do que é estratégico às disputas interestatais, sobretudo, entre as grandes potências. Uma temática que abarca geopolítica, política externa, moeda, finanças, além de história. Sempre me instigou refletir sobre a moeda como um instrumento de poder nas relações internacionais. Tema esse inaugurado no Brasil pela querida professora Maria da Conceição Tavares em seu clássico artigo “A Retomada da Hegemonia Americana” publicado na Revista de Economia Política (REP), de 1985. Tive a oportunidade de trabalhar diretamente com ela nos anos de 2003 e 2004, cujo resultado foi a publicação de um artigo, também na REP, denominado “A Geoeconomia do Império e as Mutações do Capital: os dois ciclos de expansão econômica dos Estados Unidos no final do século XX”.

Não deixa de ser curioso que acabo de fechar um livro, denominado “Diplomacia Monetária”, que amarra esse longuíssimo esforço de pesquisa. Enviei, não faz muito tempo, para uma editora avaliar e espero publicar ainda este ano. Talvez, por sorte, o crescente interesse no tema da desdolarização ajude nesse processo, já que o livro trata do assunto de uma perspectiva teórica e histórica de longa duração. Algo não muito usual, mas que permite novos olhares.

OPEU: Em relação ao processo de criação de liquidez internacional pelos EUA, quais seriam as principais vantagens em administrar a liquidez internacional? Qual o papel da diplomacia monetária nesse mecanismo?

Antes de tudo, é importante notar que não são pequenas as vantagens para um determinado Estado que consegue expandir o espaço de circulação de sua moeda nacional para além de suas fronteiras de origem, no limite, impondo-a globalmente, como foi o caso da libra, a partir de 1871 até o Entreguerras, e do dólar, a partir de 1971 até hoje. Primeiro, ele alavanca sua capacidade de financiamento e gasto, uma vez que os demais são obrigados a acumular ativos líquidos nela denominados, sobretudo, sua dívida pública, em proporção suficiente para lidar com suas contínuas obrigações com o exterior. Segundo, parte desses saldos acumulados tende a ser drenada para o seu sistema financeiro nacional, ampliando desproporcionalmente sua escala, profundidade e liquidez, permitindo uma inserção privilegiada de seus bancos e demais instituições financeiras nos negócios internacionais. Isto porque, no caso dos bancos, esses são capazes de expandir os meios de pagamento na moeda de referência internacional, pois operam naturalmente num sistema de reservas fracionadas nela estruturado.

OPEU: É possível afirmar que a administração de liquidez internacional está ligada ao aprofundamento dos mercados financeiros secundários sob jurisdição dos EUA? Caso positivo, como? Quais os principais impactos desse aprofundamento na consolidação da importância das praças financeiras estadunidenses?

Atenção, porque não são as inovações de uma praça financeira e de seus mercados de capitais que estimulam a captação de recursos e, com efeito, o maior uso de sua moeda em transações internacionais, como, em geral, meus colegas economistas argumentam. A relação é em sentido contrário. É a internacionalização de uma moeda nacional que garante o influxo de recursos para seu sistema financeiro nacional, alavancando, por conseguinte, as oportunidades de negócios e lucros de quem ali opera.

É importante perceber que, em geral, as experiências de desenvolvimento econômico acarretam a expansão da pauta e do volume de importações, tornando-se um imperativo a todo país, à exceção do emissor da moeda de referência, exportar produtos e serviços, ou se valer do endividamento externo como estratégia para auferir a moeda internacional e, assim, poder viabilizar suas obrigações e necessidades com o exterior. Na verdade, a consolidação de um território monetário global implica a imposição do desafio da “restrição externa” a todos os demais países. O resultado disso é que, por meio do controle de canais de administração da liquidez internacional, o país emissor da moeda de referência, dependendo dos objetivos de sua política externa, pode influenciar a capacidade de importação de alguns e, assim, suas trajetórias de desenvolvimento, como também dificultar o acesso de outros à liquidez na moeda de referência, provocando crises. Esta é uma das faces da diplomacia monetária, ou seja, a utilização da moeda como instrumentos para alcançar objetivos geopolíticos maiores, por exemplo.

OPEU: Você considera que existe algum limite de liquidez que os EUA possam injetar nos mercados financeiros internacionais? Em caso positivo, o que define esse limite?

Quanto aos limites da expansão da liquidez internacional, estes estão mais relacionados à forma como o sistema monetário internacional passou a funcionar depois do fim da Guerra Fria. Não é algo definido diretamente da hierarquia monetária internacional, que segue a mesma desde 1971. Por conta da ausência de controles de capitais e pelo crescimento desproporcional dos fluxos especulativos, as taxas de câmbio passaram a acompanhar sobretudo os diferenciais de juros, e a capacidade de intervenção das autoridades monetárias nacionais passou a requerer um estoque crescente de reservas internacionais em seus respectivos bancos centrais. Pelo lado dos agentes econômicos, os títulos públicos dos EUA se tornaram o único instrumento para administração dos riscos privados de um sistema completamente desregulado e liberalizado. Não por outra razão, há uma corrida na direção desses títulos mesmo quando a crise tem como epicentro a própria economia dos EUA, como foi o caso da Grande Crise Financeira de 2008. Portanto, a princípio, não há limites aparentes à expansão da liquidez do sistema. A não ser que se desestruture o próprio sistema.

OPEU: Em relação ao processo de desdolarização do sistema monetário internacional, qual o papel da China e das instituições financeiras multilaterais?

Embora as vantagens desfrutadas por Washington pelo papel cumprido por sua moeda no sistema sejam mais amplas, foi o uso disseminado das sanções financeiras nas últimas décadas que empurrou o mundo para um processo de desdolarização. Uma espécie de blowback já descrito, inclusive, em relatórios do Departamento do Tesouro dos EUA. Algo que, se há alguns anos era tratado a portas fechadas e em conversas reservadas, hoje está escancarado em discursos de diversas autoridades, em documentos oficiais e nas pautas de fóruns internacionais. Tamanha foi a velocidade que tal agenda adquiriu nos últimos anos.

PDF) Geopolítica e diplomacia monetária: o sistema dólar de tributação global e as iniciativas de desdolarização da economia internacionalEm 2018, num congresso da ABRI, apresentei um trabalho, posteriormente publicado na Revista de Economia e Sociedade da Unicamp (denominado “Geopolítica e Diplomacia Monetária: o sistema dólar de tributação global e as iniciativas de desdolarização da economia internacional”), apontando não apenas os pilares do dólar, enquanto moeda de referência internacional, como também os ataques sobre eles, já evidentes naquele então. Diria que não mudou nada nesses últimos cinco anos.

Primeiro, as disputas em torno da moeda de cotação do petróleo comercializado internacionalmente. Nesse caso, dentre várias iniciativas, por exemplo, russas, venezuelanas, iranianas, e outras, a mais importante ocorreu em 2018, quando a China lançou os primeiros contratos futuros de petróleo denominados em Renminbi, negociados no mercado futuro de Xangai, concorrendo com as praças de Nova York e de Londres, onde tais contratos são transacionados em dólar.

Em segundo lugar, temos a criação, por meio dos BRICS, de novas instituições financeiras multilaterais com capacidade de disputar com o FMI e o Banco Mundial os empréstimos de estabilização e os financiamentos internacionais. Em caso de sucesso e projeção global, essas instituições ganham potencial para, em outro momento, pressionarem a própria hierarquia monetária internacional atual, por meio da difusão e do uso de uma moeda diferente do dólar. Essa discussão tem sido feita de modo aberto nos últimos meses.

Em terceiro, há o projeto chinês da Nova Rota da Seda. À medida que este avança e envolve países em acordos bilaterais para construção de infraestrutura, tende a ocorrer a projeção do Renminbi sobre esse espaço, sobretudo, nos países que apresentam vulnerabilidades e dependência econômica com a China. Algo hoje bastante evidente e descrito pelos próprios relatórios do Banco Popular da China.

Portanto, nos três casos descritos, não é difícil perceber o protagonismo chinês nesse processo, embora [a China] não esteja sozinha. Conta com a cooperação, articulação e entusiasmo sobretudo da Rússia, que também empreende outras iniciativas voltadas para a desdolarização, em razão das pesadas sanções econômicas a que foi submetida.

OPEU: É possível ver a desdolarização como um sinal de “fim/crise do Império”?

Independentemente de qualquer coisa, do meu ponto de vista, conforme escrevi no livro ainda no forno, “as feições específicas de determinada geografia monetária num particular momento da história refletem, ao fim e ao cabo, as características principais das disputas geopolíticas maiores, independente da vontade dos agentes econômicos que atuam globalmente”. Portanto, é necessário acompanhar fundamentalmente as rivalidades geopolíticas entre o eixo sino-russo, de um lado, e o atlântico norte, de outro, para decifrarmos para onde caminha a atual ordem monetária internacional.

OPEU: A criação e a disseminação do Renminbi digital podem ter algum impacto nesse processo? Em caso positivo, qual?

Sobre a moeda digital, esta, na verdade, nada mais é do que uma forma moderna para realização de transações e operações das mais diversas. É possível ter uma moeda digital ligada ao dólar, outra ao Renminbi, uma terceira ao euro, etc. Mas, do meu ponto de vista, isto em si não é relevante para a determinação da hierarquia monetária internacional. Até porque o que é sensível é a “unidade de conta” (se dólar, se euro, se Renminbi, etc.) utilizada nos mais importantes mercados e sistemas de pagamento e liquidação internacionais, inclusive nos mercados digitais.

OPEU: O que você acredita que podemos esperar do governo Lula em relação ao posicionamento do Brasil frente ao processo de desdolarização?

Sobre o governo Lula, este já vem buscando assumir um protagonismo no que diz respeito à desdolarização do sistema, sobretudo por meio dos BRICS, onde fez valer seu prestígio ao conduzir a presidenta Dilma ao comando do Novo Banco de Desenvolvimento. Ambos, em seus discursos na cerimônia de posse da presidenta Dilma em Xangai, atribuíram importância aos esforços de desdolarização do sistema.

(Arquivo) Novo Banco de Desenvolvimento, Xangai, em 25 nov. 2026 (Crédito: Wikimedia Commons/NBD)

A questão no caso é que, por óbvio, Washington não será indiferente às iniciativas de desdolarização do sistema internacional, independentemente de onde venham. Porque se trata de um tema sensível das relações internacionais, defenderá o dólar como o fez em diferentes momentos da história, nem que para isso tenha que desestabilizar rivais (como no caso do golpe de 2016 no Brasil), ou mesmo, no limite, o próprio sistema internacional (como, por exemplo, no choque petróleo de 1973-74 e no choque dos juros de 1979). Nesse caso, algo semelhante à frase do príncipe Falconeri, na obra O Leopardo, de Giuseppe Lampedusa: “Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude”.

OPEU: Há algum tema na entrevista que você gostaria de aprofundar, ou escrever mais livremente?

Avalio que as perguntas foram bastantes amplas e instigantes. Devo, na verdade, reiterar meus agradecimentos pela oportunidade.

 

* Ingrid Marra é mestranda em Global Political Economy and Development (GPED) pela Universität Kassel, graduada em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ (IRID/UFRJ), pesquisadora colaboradora do OPEU e assistente de pesquisa do International Relations Microfoundations Laboratory desde 2022. Pesquisa moeda, enquanto instrumento de pressão política em países não-alinhados à hegemonia estadunidense; hierarquia monetária internacional; e criptomoedas. Contato: LinkedIn.

Maurício Metri é professor associado do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da UFRJ e do programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional (PEPI) do Instituto de Economia da UFRJ. Doutor, mestre e graduado pelo Instituto de Economia da UFRJ, é coordenador do Laboratório Orti Oricellari de Estudos em Economia Política Internacional, vinculado ao PEPI-UFRJ e ao IRID-UFRJ. É membro do grupo de pesquisa Poder Global e Geopolítica do Capitalismo, vinculado ao PEPI-UFRJ e ao CNPq.

** Primeira versão recebida em 15 jun. 2023. Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Este OPEU Entrevista não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mailtatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mailtcarlotti@gmail.com.

 

Assine nossa Newsletter e receba o conteúdo do OPEU por e-mail.

Siga o OPEU no InstagramTwitterFlipboardLinkedin

Facebook e acompanhe nossas postagens diárias.

Comente, compartilhe, envie sugestões, faça parte da nossa comunidade.

Somos um observatório de pesquisa sobre os EUA, com conteúdo semanal e gratuito, sem fins lucrativos.

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais