OPEU Entrevista

‘Primeiro vencedor da guerra está do outro lado do Atlântico’, diz Solange Reis ao OPEU Entrevista

Por Vitória Martins Queiroz*

Solange Reis (@solangereis) / Twitter

Pesquisadora Solange Reis (Arquivo pessoal)

Doutora e mestra em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e parte do PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, Unicamp e PUC-SP), jornalista de formação e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU), Solange Reis é referência em Relações Transatlânticas na rede e no Observatório.

Neste OPEU Entrevista, Solange trata de seu capítulo “Realidade pós-Trump: vias e barreiras para a reconstrução dos elos transatlânticos”, publicado no livro De Trump a Biden: Partidos, políticas, eleições e perspectivas organizado por Sebastião Velasco e Cruz e Neusa Maria P. Bojikian (Editora Unesp, 2022), e relembra acontecimentos de sua trajetória profissional.

Em conversa com a pesquisadora Vitória Martins Queiroz (bolsista INCT-INEU/PIBIC-CNPq), a autora aborda desde temas de segurança energética da Europa até os possíveis desdobramentos da tentativa americana de reaproximação com seus parceiros do outro lado do Atlântico no governo de Joe Biden. Confira a entrevista abaixo.

OPEU: Você se tornou referência em Relações Transatlânticas na rede do INCT-INEU e aqui no Observatório. Como esta área surgiu em sua trajetória profissional?

Começou no mestrado, quando pesquisei sobre a política externa da Alemanha depois da reunificação. Percebi que a política internacional da Alemanha reunificada não dependia apenas dos interesses nacionais, mas da posição alemã dentro da União Europeia (UE) e do quanto o bloco conseguiria ser relevante para seus integrantes e para o mundo. Embora a Alemanha já fosse uma potência econômica individual, dados os receios históricos, sua ambição política seria mais bem recebida externamente sob um escudo europeu. A UE funcionou, então, como uma espécie de crachá de poder para a Alemanha. E tudo isso acontecia em um tempo de transição, da longeva bipolaridade para a unipolaridade provisória. Em algum momento adiante, as relações transatlânticas precisariam passar por ajustes na nova ordem mundial que se delineava, na qual as relações entre EUA e os países europeus seriam determinadas por novos fatores de segurança, entre outros. Era importante observar tais transformações do ponto de vista acadêmico.

OPEU: Como foi o processo de escrita deste capítulo?

O livro era sobre o segundo período do primeiro mandato do governo Trump – após as midterms –,  o qual, no que diz respeito à UE, variou pouquíssimo em relação ao primeiro. As relações transatlânticas, de fato, seguiram desgastadas. Quando comecei a escrever o capítulo, Joe Biden tinha sido eleito, e as apostas eram feitas em torno da provável “normalização” das relações transatlânticas. O processo de escrevê-lo foi o de colocar um olho no retrovisor, e outro, na estrada adiante. Afinal, mais do que analisar o quanto Trump rompera, interessava entender a possibilidade, ou não, de restauração.

President Trump & the First Lady's Trip to Europe | Presiden… | FlickrO então presidente Donald Trump e o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, no retrato de família da organização,  em 11 jul. 2018 (Official White House Photo by Shealah Craighead) (Crédito: Shealah Craighead/Casa Branca)

OPEU: Sua dissertação de mestrado aborda a relação entre política externa e identidade nacional no debate doméstico da Alemanha reunificada. Olhando para os Estados Unidos, também podemos estabelecer esse paralelo entre construção de uma identidade americana e sua política externa para a Europa?

Of Paradise and Power: America and Europe in the New World Order: Kagan,  Robert: 9781400034185: Amazon.com: BooksSeria preciso estudar o tema para responder a essa pergunta com seriedade. Como opinião pessoal, creio que a identidade americana hoje dialoga muito pouco, ou quase nada, com a política externa dos EUA para a Europa. Bem diferente do que aconteceu no pós-1945, quando as relações transatlânticas se tornaram centrais para a formação dos EUA como superpotência. A chamada Pax Americana sobrescreveu a anterior, britânica, de forma inconteste e bem aceita pelos europeus. Foi o que Geir Lundestad chamou de “império a convite”. Ser um império visto como benigno era fundamental para a grande estratégia liberal dos EUA e, para isso, a Europa foi fundamental. Ou, como nos anos 1990, quando havia a dialética Vênus x Marte. Uma analogia sexista feita pelo neoconservador Robert Kagan, que identificava a Europa com a fragilidade feminina, e os Estados Unidos, com a força masculina (inspirado em um best-seller da época). Já os europeus viam essa dicotomia por uma ótica que lhes era mais favorável: a Europa como um Estado pós-moderno, que havia superado o estado permanente de barbárie e guerra, no qual os EUA ainda se encontravam.

OPEU: A mobilização das ideias relacionadas ao “Excepcionalismo americano” é muito evidente na formulação de política externa dos Estados Unidos para países do Sul Global. Em sua percepção, essas ideias também são mobilizadas na política externa americana para os países europeus?

Indubitavelmente. Na realidade, em seus primórdios, e nas palavras do próprio Tocqueville, o excepcionalismo americano é o oposto da história europeia. Quer seja em contraposição ao derrotado Império Romano, quer seja sobrescrevendo o frágil Concerto Europeu, a excepcionalidade americana se desenvolveu sobre os escombros de sistemas políticos europeus que, no fim das contas, pararam de organizar o mundo. Antes de vender esse falso conceito para outras partes do mundo, os Estados Unidos já o haviam incutido nas mentes das lideranças europeias de viés liberal.

OPEU: No capítulo, você trata de segurança energética da Europa. Em linhas gerais, qual tem sido o papel desempenhado pelos recentes governos americanos na questão energética na Europa?

Desde sempre, ou pelo menos desde a década de 1970, os governos americanos têm sido consistentes em sua política energética para a Europa. Os objetivos foram dois, interdependentes entre si. O primeiro era formar um bloco coeso no mercado global de energia, capaz de subjugar os demais atores aos seus interesses. Nesse sentido, exceto em momentos pontuais de crises políticas, ou de petróleo, os EUA se comportaram como aliados que, em grande medida, levavam em conta os interesses europeus. O segundo objetivo era desestabilizar a relação de energia entre Europa e União Soviética/Rússia, pois essa aproximação não apenas enfraquecia a aliança ocidental no mercado global de energia, como fortalecia os russos econômica e politicamente. Dos anos 1970 até aproximadamente 2011, os EUA não foram bem-sucedidos no segundo objetivo. Isso aconteceu porque eles próprios se tornaram frágeis do ponto de vista da energia. Em outras palavras, não tinham nada para oferecer, a não ser proteção militar. Mas o problema da Europa era militar apenas no ideário da Guerra Fria. No cotidiano, a questão era a energia, e nisso os russos podiam atuar. Foi nesse período que a Rússia expandiu sua rede de oleodutos e, principalmente, de gasodutos para a Europa. De 2011 em diante, com o desenvolvimento das reservas de xisto, os Estados Unidos começaram, gradativamente, a virar o jogo.

Não há como entender a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022 — ano em que Alemanha e Rússia atingiram o ápice da colaboração através do gasoduto Nord Stream 2, cuja construção praticamente elimina a Ucrânia do mercado europeu de energia — sem analisar as relações de energia entre Europa (sobretudo Alemanha), Rússia e Ucrânia à luz dos interesses estratégicos e energéticos dos Estados Unidos nos últimos 50 anos. A guerra ainda não terminou, mas o primeiro vencedor está do outro lado do Atlântico. E há outros bônus para os americanos: interrupção da transição verde na Alemanha, o que dificulta a consolidação alemã na chamada industrialização 4.0; desmonte da liderança climática da UE; abertura do mercado europeu para a indústria de energia dos EUA; avanço e aprofundamento da OTAN; e alguns gatos no telhado da integração europeia.

Nord Stream 2 Rügen 181007 369.jpg | Jürgen Mangelsdorf | FlickrNord Stream 2, em 7 out. 2018 (Crédito: Jürgen Mangelsdorf)

OPEU: Você cita a “confiabilidade” e a “previsibilidade” como fatores importantes para uma parceria sólida em política externa. Isto não foi observado no governo Trump. Ao contrário, como explicado no capítulo, foi quase que imposto aos países europeus saírem de seu “comodismo histórico quanto à garantia da solidariedade dos Estados Unidos” frente ao apoio de Trump ao Brexit, por exemplo. Diante destes episódios, como você vê as tentativas de reaproximação promovidas pelo presidente Joe Biden?

Joe Biden é o que se chama de “guerreiro frio”. Formou-se nessa escola política e soube jogar muito bem para restaurar aquele ambiente na Europa. Não o fez sozinho, naturalmente. Putin e os condicionantes russos, Brexit, aposentadoria de Angela Merkel, todos esses são fatores que criaram o cenário de tempestade perfeita. De fato, Biden conseguiu reaproximar os EUA da Europa, mas não pela via dos valores comuns, da sociedade de Estados. Atuou mais como um despachante, criando dificuldade para vender a solução. A relação Rússia-Ucrânia é um problema europeu que Washington tem sabido manipular muito bem a seu favor, desde a Revolução Laranja, passando pelo Euromaidan [ou Primavera Ucraniana]. Quanto à Europa, que antes tinha estabilidade de fornecimento de energia e alguma previsibilidade militar, agora lida com vários problemas fundamentais ao mesmo tempo. Insegurança energética, guerra em solo europeu, crise econômica, queda do euro, aumento no risco de ataque nuclear e uma credibilidade abalada.

OPEU: Você sugere que há dois contrapontos nas relações sino-americanas. De um lado, há um antagonismo estratégico histórico, não criado, porém materializado por Trump. E, por outro, existe uma crescente interdependência, a qual requer das partes, em muitos aspectos, uma lógica de acomodação mútua. Durante o governo Trump, a União Europeia passou a ter a China como principal parceiro comercial, superando os Estados Unidos. Ao mesmo tempo, você sugere que Biden esperava estabelecer cooperação com os países do bloco para conter a China, mesmo que esta cooperação seja aparentemente mais vantajosa para os americanos do que para os europeus. Como a União Europeia se posiciona nesta lógica de antagonismo estratégico que conduz a política externa americana para a China?

O clássico “se ficar, o bicho pega; se correr, o bicho come”. Como grande parte do mundo, inclusive os EUA, a UE e os países europeus não podem abrir mão das relações comerciais e financeiras com a China. Os EUA sabem disso e esticam as cordas, com jeito, para não arrebentar. Não vão impedir que a Europa continue a se relacionar economicamente com a China, na medida do aceitável, desde que os europeus se mantenham aliados dos EUA geopoliticamente. O preço a pagar pela “liberdade econômica” é o alinhamento militar gradativo no Pacífico. É nessa linha fina que a Europa terá de andar daqui para frente. Nesse sentido, a guerra na Ucrânia funciona como um pré-teste.

OPEU: Com base em seus estudos e neste apanhado sobre as relações transatlânticas feito no capítulo, há alguma questão das relações transatlânticas que você recomenda especial atenção?

Além da pressão derivada da presença da China no sistema internacional, o efeito de mudanças drásticas na política doméstica da França e da Alemanha, e a qualidade da relação entre esses dois países. Dependendo de como esses fatores variarem, as relações transatlânticas serão obrigadas a uma refundação.

 

* Vitória Martins Queiroz é pesquisadora bolsista de Iniciação Científica do OPEU (INCT-INEU/PIBIC-CNPq) e graduanda em Relações Internacionais do IRID/UFRJ. Contato: vitoriamartins488@gmail.com.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Recebido em 22 set. 2022. Esta entrevista não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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