Política Doméstica

Percalços para processar Trump mostram que brasileiros foram mais realistas que o rei

Dia de Trump na Justiça (Crédito: print de vídeo do jornal The Washington Post)

Por Fabio de Sa e Silva*

No último dia 30 de março, as atenções do público global se voltaram para o até então desconhecido “grande júri” de Manhattan, onde o ex-presidente e possível candidato às próximas eleições presidenciais americanas Donald J. Trump havia sido “indiciado”.

Esse “indiciamento” equivale, no Brasil, ao “recebimento da denúncia,” quando o Ministério Público, após investigação, já acusou alguém, formalmente, pela prática do delito e um juiz, analisando as evidências dos autos, entendeu haver “indícios de autoria e materialidade” para justificar a abertura de uma ação penal. Trump, assim, não é mais apenas investigado, é réu.

Para quem acompanha a política americana, seja pelos jornais, seja pela indústria cultural, o fato de o ex-presidente estar às voltas com problemas na Justiça não chega a ser surpreendente. Ao longo de sua carreira como empresário, Trump se envolveu em inúmeras controvérsias e, na política, foi um violador contumaz de normas escritas e não escritas que regulam a atuação de presidentes. Mas, até por isso, os detalhes e as perspectivas de sucesso da acusação podem soar frustrantes.

Trump está sendo acusado por fazer pagamentos em caixa dois a uma atriz pornô, na corrida para as eleições de 2016, a fim de que ela não divulgasse detalhes sobre um relacionamento extraconjugal que os dois haviam mantido. Fazer pagamentos por caixa dois, porém, por si só não é um crime. O que o promotor de Manhattan, Alvin Bragg, acusa Trump, é apenas de não haver declarado esses pagamentos, conforme é exigido por leis estaduais de Nova York.

A pena para esse crime é, por sua vez, pequena (no Brasil, seria equivalente à de um “crime de menor potencial ofensivo”). O promotor tenta aumentar a gravidade das condutas, alegando que o caixa dois era, também, um meio para a violação de leis federais de caráter tributário (relativas a impostos) e eleitoral. Essa interpretação tem sido, no entanto, vista com desconfiança na mídia e na comunidade jurídica (incluindo entre os que se identificam como democratas) e pode não ser aceita pelos jurados. No plano eleitoral, por exemplo, alguns observam que esses pagamentos já foram investigados pelo Departamento de Justiça e, embora tenham gerado responsabilização do agora ex-advogado de Trump Michael Cohen não alcançaram o ex-presidente. Se promotores federais que se debruçaram sobre o caso não investigaram Trump pela violação de leis federais, é razoável que um promotor estadual o faça?

Além da acusação de Bragg, Trump enfrenta ao menos outras três, que muitos analistas consideram mais bem embasadas e que envolvem: 1) possível violação de leis de segurança nacional, em função de o ex-presidente ter levado documentos confidenciais para sua casa de campo em Mar-a-Lago, na Flórida; 2) possível violação de leis da Geórgia, na medida em que o ex-presidente teria tentado aliciar funcionários públicos locais para subverterem os resultados da votação presidencial, nesse estado, nas eleições de 2020; e 3) possível envolvimento do ex-presidente na insurreição de 6 de janeiro de 2021 no Capitólio. Esses casos ainda se encontram em estágio embrionário, e é razoável pensar que sequer sejam julgados antes das eleições de 2024.

Trump na Justiça (Crédito: The Guardian)

O tempo dirá se alguma dessas acusações resultará na condenação e na prisão do ex-presidente. Mas, para os brasileiros, acompanhar essa saga não deixa de ser instrutivo.

Nos EUA, levou seis anos para que Trump tivesse de confrontar sua primeira acusação. No Brasil, o, à época, ex-presidente Lula, foi investigado, acusado e condenado em duas instâncias em menos de dois anos. Nos EUA, como registrado acima, a imprensa e profissionais do direito enxergam com preocupação o esgarçamento da legislação, visando à punição de Trump a qualquer custo. No Brasil, no caso do “triplex do Guarujá”, Lula foi condenado por “ato de ofício indeterminado” em troca de reformas em um apartamento que ele visitou, mas nunca recebeu, nem sequer habitou. Em vez de qualquer mal-estar, isso causou euforia entre formadores de opinião, os quais celebravam, extasiados, o “fim da impunidade”.

Nos EUA, mesmo se for condenado e preso, Trump ainda pode ser candidato. Há, inclusive, precedente disso: em 1920, o socialista Eugene Debs concorreu de dentro da prisão de Atlanta e teve mais de 1 milhão de votos. No Brasil, a condenação relâmpago de Lula em segunda instância deu causa à sua inelegibilidade, mesmo havendo um pedido do Comitê de Direitos Humanos da ONU para que o país assegurasse ao atual presidente o direito à participação no pleito de 2018.

Essas diferenças mostram que, ao contrário do que leituras românticas do sistema jurídico dos EUA podem fazer crer, americanos são bastante cautelosos na aplicação de leis penais contra políticos. Prender, ou tornar candidatos inelegíveis, não é visto como atuação virtuosa dos tribunais, mas sim como intrusão do direito na vida política que, se não é totalmente indevida, deve ao menos estar bem calçada. A escolha dos governantes cabe, em princípio, ao eleitor.

Durante os anos da Lava Jato, não faltou quem postulasse que o Brasil estava, finalmente, tornando-se um pouco mais como os EUA, um país “moderno”, onde prevalece o “império da lei”. Se fosse verdade, talvez a história política do país tivesse seguido por outro caminho. Olhando para trás e para o lado, parece mais uma fantasia que visava a legitimar abusos.

 

* Fabio de Sa e Silva é professor da Universidade de Oklahoma, onde dirige o Centro de Estudos Brasileiros. Atualmente estuda a relação entre direito e declínio da democracia no Brasil e em perspectiva comparada, sendo um dos coordenadores do projeto sobre legalismo autocrático. Contato: fabio.desaesilva@ou.edu.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. 1ª versão recebida em 10 abr. 2023. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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