Política Doméstica

A América jamais será cancelada: a primeira CPAC pós-Trump

DE VOLTA: Em discurso na CPAC, ex-presidente Donald Trump descarta formar novo partido e cogita retorno em 2024, Orlando, Flórida, 28 fev. 2021 (Crédito: Erin Schaff/The New York Times)

Por Otávio Dias de Souza Ferreira*

“AMERICA UNCANCELED” foi o slogan divulgado nos anúncios do evento da Conservative Political Action Conference – a CPAC –, autodenominado “o maior e mais influente” encontro de conservadores no mundo, realizado entre 25 e 28 de fevereiro de 2021, no Hyatt Regency Orlando, na Flórida. Grande expectativa se criou sobre essa conferência por ser a primeira promovida após o episódio da invasão do Capitólio e a derrota de Donald Trump na eleição presidencial estadunidense, constituindo-se na primeira aparição pública do ex-presidente depois de um tempo afastado em meio a sua turbulenta saída da Casa Branca.

Política de cancelamento

“Cancelar” é um termo que se tornou conhecido nos últimos anos para apontar para práticas de corte sumário de relações, de diálogo, ou até para a supressão da exposição da imagem e da fala do outro. Pode se materializar simplesmente ao parar de “seguir” um perfil, ao excluir uma “amizade” em uma rede social digital, ou quando a corporação de comunicação bloqueia usuários e perfis por motivos diversos que supostamente atentem contra suas regras de uso, como, por exemplo, para coibir crimes contra a ordem pública, ou contra a honra alheia no mundo digital.

Os conservadores se referem a uma suposta perseguição deliberada, da qual acreditam estar sendo vítimas por parte de opositores poderosos da esquerda radical. O cancelamento seria disseminado pelos democratas, seus simpatizantes, pelas universidades, pela imprensa e pela indústria cultu  ral hegemônica e atingiria a própria política institucional estadunidense.

Preconizando o “cancelamento da cultura do cancelamento”, o anúncio inicial do evento acusava os “esquerdistas” radicais de estarem envidando todos os esforços para cancelar toda a voz conservadora, utilizando as ferramentas e os poderes da grande tecnologia, de Hollywood, entre outros. Nas palavras do radialista, apresentador e ativista conservador Rush Limbaugh, em entrevista para Matt Schlapp em 2018:

Eu não creio que estamos mais em uma batalha de ideias. A esquerda não é feita de gente de ideia, especialmente após duas gerações de corrupção das mentes dos jovens nas instituições de ensino. Eu penso que eles têm um objetivo, que é nos eliminar, eliminar toda a oposição. Eles não têm nada em comum com o que fomos nós na fundação da América (tradução livre).

Limbaugh, que chamara de “patriotas” os invasores do Capitólio, faleceu por conta de um câncer em meados de fevereiro de 2021 e acabou sendo homenageado neste evento, inclusive na fala do ex-presidente Trump.

Nessa perspectiva, os valores tradicionais, o ideal de um país glorioso e rico, as liberdades e a própria democracia estariam sendo vilipendiados, por causa de esforços empreendidos pela esquerda nas últimas décadas, contaminando a capacidade de reflexão da juventude americana, provocando o estágio atual de radicalização e inviabilizando qualquer possibilidade de diálogo entre os adversários políticos e de exposição das ideias conservadoras e da defesa das liberdades. O próprio presidente republicano teria sido “cancelado” nas eleições de 2020, vítima de uma campanha suja, de fraudes, o que configuraria um golpe de Estado.

A referência é similar a ideias difundidas no Brasil por Olavo de Carvalho e seguidores, nas crenças em relação a uma guerra cultural em marcha de forma bem-sucedida há décadas pela esquerda radical em instituições da cultura e da educação, formulada com base em uma releitura do conceito de hegemonia em Antonio Gramsci.

Diante da “cultura do cancelamento” que os vitimaria a cada dia, a palavra de ordem na CPAC Flórida 2021, reiterada à exaustão ao longo dos três dias, foi “FREEDOM”, proferida por vários dos palestrantes, dos mais ilustres aos menos famosos, e pelo público presente, por vezes de modo efusivo. Basta lembrar o final da palestra do senador Ted Cruz, quando anunciou, com sarcasmo, que terminaria sua fala com o “grito imoral de William Wallace˜, simulando em seguida a derradeira cena de Mel Gibson no filme “Coração Valente”.

O Evento

Patrocinado pela Fox Nation e pelo Liberty Health Share, além da organizadora American Conservative Union, o encontro teve preços elevados para participação presencial, dispostos em três categorias de ingresso, conforme o acesso a “lounges” diferenciados, a prioridade de reserva de assentos e o direito de participação no jantar que leva o nome do ícone conservador “Ronald Reagan” e em um exclusivíssimo café da manhã: a US$ 330, o General Ticket; a US$ 2.500, o Premium Silver Package; e a US$ 7.500, o Premium Gold Package.

At CPAC, It's Now an All-Trump Show - The New York Times

 (Crédito: Pete Marovich/The New York Times)

Para fomentar a difusão do evento, produziu-se um aplicativo gratuito, que ofereceu facilidades ao público, com ferramentas para acompanhar o evento pelo aparelho de celular, ou pelo tablet, enviando atualizações com agilidade.

Os primeiros horários da manhã do evento e alguns momentos ao final do dia foram reservados para celebrações específicas e prestação de serviços religiosos da igreja católica, de protestantes e de judeus. Dezenas de grupos do mercado, da sociedade civil, da política institucional e de movimentos sociais organizaram stands espalhados pela área comum dos edifícios do Hyatt Regency Orlando para promover suas crenças, suas marcas, divulgar seus trabalhos e mesmo para vender produtos e serviços, como por exemplo: Atheists for Liberty, Republicanmarket,com, Young Americans for Liberty, ByebyeDems, Liberty University School of Law, Concerned Women for America, Alberta Adventures, Freedom Foundation, Mises Institute, Students for Life America, Christian Action Network, Moms for Liberty, Towhall Media, We Can Be Heroes e American Principles Project.

Extensa programação

Entre os palestrantes – speakers – anunciados, além do ex-presidente Donald Trump, destacam-se Matt Schlapp, o chairman da American Conservative Union; o governador da Flórida, Ron DeSentis, e o da Dakota do Sul, Kriesti Noem; o ex-secretário de Estado Mike Pompeo; dez senadores; 38 representantes dos diversos estados, além de influenciadores da televisão, rádio e mídias sociais, de lideranças de movimentos sociais e organizações da sociedade civil e do mercado.

A programação intensa de palestras e mesas ocupou três dias inteiros, da manhã até a noite, versando sobre os temas mais variados, como:

– cultura – em contexto de “guerra cultural” e da “cultura do cancelamento” (como nas palestras “Bill of Rights, Liberty and Cancel Culture”, do senador Ted Cruz, e “The Way Forward: Unlocking Our Churches, Our Voices, and Our Social Media Accounts”, do senador Rick Scott);

CPAC 2021 organizers begged attendees to wear masks — and got booed - Vox

PELA LIBERDADE: Senador Ted Cruz (R-TX) discursa em 26 fev. 2021 (Crédito: Joe Raedle/Getty Images)

– direito à vida e a pauta Pró-Vida e Pró-Família (como nas mesas “Hard Question for the Hard Cases: How to Defend Life”);

– importância da religião (como no painel “Loosing my Religion? Why a Christian Worldview is Foundational to Political Engagement”);

– defesa do liberalismo econômico (como nas mesas “Do not Pass Go: The Meaning of Monopoly in the Modern Era”, “Amendment V: Freedom from Confiscation of Private Property” e “The Only Thing We Have to Fear is… Neera, Herself: How to Block  a Tyrannical Administrative State” e na palestra de Larry Kudlow “The Dangers of Denying People their Prosperity”);

– meio ambiente e mudanças no clima (como no painel “Expose the Climate Hustle”);

– tecnologia e mídias (como nas mesas “The Left Assault on a Free People: How Government, Big Tech, and Media are Colluding to Deprive us of our Humanity” e “Big Tech is for Sale and China and Russia are Buying”);

– a defesa dos armamentos (como na mesa “Amendment II: The Right to Bear Arms”);

– temas de liberdades civis (como nas palestras “Why the Left Hates the Bill of Rights… and We Love it”, do senador Mike Lee; “Fighting for Freedom of Speech at Home and Across the World”, da senadora Marsha Blackburn; e “Amendment VI: Rights of the Accused”, de KT McFarland; assim como nas mesas “Amendment I: Freedom of Speech, Religion, Press, Assembly and Petition” e “Amendment VIII: Cruel and Unusual Punishment”);

– divisão de poderes e pacto federativo (como na discussão sobre as Emendas IX e X, pelo representante Jim Jordan);

– saúde (como nas mesas “Health-Rationing vs Health-Sharing: Your Savings, your Freedom and your Life” e “Prescription for Pain: The Left Agenda on Healthcare”);

– sobre o orgulho patriótico conservador estadunidense (como na palestra “Reigniting the Spirit of the American Dream”, de Donald Trump Jr., e na mesa “Tea Party Patriots: Surviving Socialism”);

– conservadorismo na ação política (como na mesa “Conservative Prosecutors: Conservative Reforms”);

– e, especialmente, o golpe de que teria sido vítima o presidente Donald Trump (com nada menos que sete mesas dedicadas a discutir a necessidade de proteção das eleições, em mesas como “Shinning Lights on the Left’s 2020 Shadow Campaign”, ou “Winning Back America”, sem falar em inúmeras falas ao longo de outras palestras que corroboram essa versão de um suposto golpe na eleição de 2020).

Ainda que os conservadores provavelmente assumam a publicação de mais uma perseguição, ou “cancelamento”, por parte da mídia corporativa, vale mencionar que a rede CNN produziu uma análise de “fact checking” sobre as acusações proferidas no primeiro dia da CPAC Florida 2021, identificando falsidades nas declarações dos palestrantes sobre a eleição e sobre a invasão do Capitólio.

O combate ao socialismo, à esquerda, ou ao esquerdismo, apareceu de modo transversal em praticamente todas as mesas e temáticas abordadas, por vezes adotando abordagens realistas e pragmáticas ao tratar das disputas no espectro político-ideológico e da necessidade de aperfeiçoar as estratégias dos conservadores (como nas mesas “Red Votes, Blue Votes: How to Win New Votes”, “California Socialism: Promising Heaven, Delivering Hell” e no “Please Check the Number and Dial Again: Doubt, Disfunction”, um acalorado debate entre jovens negros de movimentos sociais conservadores), mas, por muitas outras vezes, alcançou tons mais virulentos, como na ênfase nas “guerras culturais”, na ameaça chinesa, nas alegações de Golpe eleitoral e de acirramento da cultura do cancelamento desde as eleições de 2020.

A esquerda, hegemônica no controle da imprensa e do aparato cultural e educacional do país, foi acusada de ser intolerante com as diferenças, de atentar contra as liberdades, de ser autoritária, de não colocar o país e seus trabalhadores em primeiro lugar.

Ao mesmo tempo, a organização da CPAC 2021 e a maioria dos palestrantes evitaram expor determinadas posições mais radicais da direita estadunidense, como na não inclusão na programação dos mais notórios supremacistas brancos e defensores da teoria Qanon e no reiterado repúdio a práticas de violência e vandalismo na esfera pública, associadas geralmente aos movimentos sociais da esquerda, ou a “bad apples” dos conservadores.

Ameaça chinesa e AL em segundo plano

Em matéria de política e relações internacionais, os países que foram objeto central de mesas, painéis e palestras da Conferência foram Coreia do Sul (3 casos), Coreia do Norte (1), Hong Kong (2), Rússia (1), Israel (1), mas principalmente a China (6), pintada como a grande ameaça no cenário internacional.

Em vídeos divulgados nos intervalos da programação, o escritor e jornalista conservador japonês Gemki Fujii desenhou a imagem de Donald Trump como um “American Samurai”, insinuando um paralelo entre a simbologia da espada dos antigos guerreiros nipônicos e a espingarda dos patriotas americanos. A batalha da vez seria travada contra a monstruosa China, um Império Comunista propagador do totalitarismo pelo mundo, ameaçando as liberdades e o livre-mercado. Em variados contornos, a ameaça chinesa foi recolocada por vários palestrantes no evento.

Os títulos a seguir oferecem uma perspectiva da pluralidade de temas e abordagens: “Quad Goals: Fighting Communist China from all Four Corners”, “China Puppets in South Korea and Hong Kong”, “Corporate America Surrending to China”, “Familiarity Breeds Contempt: How will China’s Neighbors Survive”, “China Subverts America: Winning without fighting”, “Fraudulent 2020 Elections in South Korea and the United States – Lessons Learned and Warning for the Future”, “Strangling Democracy and Threatening the United States: Human Rights Abuses and Oppression by South Korea’s Moon Administration”, “Love and Hate Relations between China and North Korea – a Threat to America?” e “Israel and Anti-Semitism”.

Pompeo leans into pro-Trump lane in fiery CPAC speech - POLITICO

DESTAQUE: Ex-secretário de Estado Mike Pompeo repete slogan ‘America First’, em discurso autocongratulatório da gestão Trump, 27 fev. 2021 (Crédito: John Raoux/AP)

Em relação à América Latina, a programação reservou apenas espaço secundário em discussões sobre a fronteira sul dos Estados Unidos (como na mesa “The Looming Humanitarian Crisis at the Border”). O continente apareceu em alguns debates, como na mesa com Mercedes Schlapp e o embaixador Richard Grenell, quando se colocou especialmente a questão da imigração de vários dos países vizinhos ao sul em situação de crise, com o prognóstico de que o governo Biden iria abrir as fronteiras sem maiores controles, mesmo durante a pandemia; ou no debate entre o senador Bill Hagerty e o embaixador Robert Lighthizer, defendendo-se modelos de acordos de livre-comércio com o México – ou bilaterais com outros países – que favoreçam empregos na América, ou que tragam ganhos recíprocos para os envolvidos.

O Brasil ficou de fora da programação e dos debates principais. A edição brasileira da CPAC promovida em 2019 foi lembrada brevemente em vídeo institucional divulgado durante o evento e em uma, ou outra, fala dos organizadores.

O maior destaque do evento em relações internacionais foi a palestra do ex-secretário de Estado Mike Pompeo, “How the Bill of Rights inspires Us at Home and Across the World”. Ele apresentou um panorama positivo da gestão, declarando-se orgulhoso por terem incomodado bastante o status quo, por terem protegido os empregos dos americanos, por defenderem a liberdade dos americanos no exterior, por terem zelado pela paz e por afirmarem sempre na política exterior o slogan “America First”.

A volta de Trump à cena pública

O encerramento e o mais aguardado momento da Conferência da Flórida foi a palestra de Donald Trump, em primeira aparição pública após o turbulento final de gestão, com o episódio de invasão do Capitólio e o questionamento dos resultados das eleições.

A entrada no auditório lotado foi apoteótica, sendo ovacionado, em meio a gritos de “USA”, uma longa trilha musical de letra ufanista em elevado volume e um ambiente especial de luzes. Começou sua fala com agradecimentos e homenagens e prometeu que vai seguir lutando contra os democratas radicais, contra a mídia tóxica, contra a indústria das fake news, contra o socialismo e o comunismo. Conclamou a união da direita, evitando disputas internas, para que se tornem mais fortes do que nunca.

Em pouco mais de um mês de nova gestão dos “socialistas”, com laços com os chineses, o “America First” teria virado “America Last”. Criam gastos absurdos no exterior e no território, com os recursos naturais, elevam os preços de energia, destroem bons empregos. Abrem as fronteiras, estimulam a imigração sem controles, geram um desastre humanitário nas fronteiras, fomentam conflitos na sociedade. Assumem posições “moralmente inescusáveis”, promovem políticas públicas contra a ciência, a educação infantil, as mulheres, sagrando-se em catástrofe para as famílias e para os trabalhadores. Restou um ataque ao Green New Deal, ao que chamou de ideias “totalmente ridículas” compartilhadas pelos adversários.

Audience members cheering Mr. Trump.
é recebido por uma multidão em delírio (Crédito: Erin Schaff/The New York Times)

Assim como Pompeo, Trump se declarou orgulhoso por conquistas de sua administração. Seria o responsável pela produção de diferentes vacinas nos Estados Unidos e no exterior contra o “vírus da China”, ao assumir investimentos vultosos e riscos necessários, antes mesmo dos resultados dos testes, de modo que seria hipocrisia do sucessor não lhe prestar o justo crédito pela vacinação dos americanos. O poderio militar do país nunca estivera tão fortalecido. Os valores tradicionais do país e as famílias estavam protegidos.

Preconizou a importância do império da lei, da defesa da Constituição e, no campo da segurança pública, das políticas de “law & order”. Defendeu a educação patriótica ante a doutrinação ideológica. Afirmou a liberdade de pensamento, rejeitando a “cultura do cancelamento”.

O ex-presidente reconheceu que as eleições foram justas, complementando imediatamente – com ironia – que seus resultados é que não foram. Reclamou duramente do processo eleitoral estadunidense corrupto, de suas possibilidades imensas de fraude. Não admitiu a derrota.

Previu um futuro triunfal para o movimento conservador, com vitórias tremendas pela frente, com seus talentos, as novas gerações e a bênção de Deus. Final previsível: aplausos, aplausos, aplausos. Abandonou o auditório sob a famosa trilha Y.M.C.A. da banda Village People, deixando parte do público presente a dançar em êxtase diante das câmeras até o final da música e da transmissão “ao vivo” do evento.

 

* Otávio Dias de Souza Ferreira é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Contato: euotavio@gmail.com.

** Recebido em 1º mar. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

[Edit. em 3 mar. 2021, às 14h25] Correção na legenda da 1ª foto: a imagem é de 2020, não 2021, quando Mike Pence ainda era vice-presidente dos EUA.

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