OPEU Entrevista

‘Relação dos EUA com Brasil e AL hoje é um vazio e precisa ser construída’, diz Hirst ao OPEU Entrevista

Crédito da Arte: Natália Constantino (bolsista de IC INCT-INEU/Pibic/CNPq), da Equipe Opeu

Por Marcus Tavares e Nathan Oliveira*

Mônica Hirst (arquivo pessoal)

Um dos nomes mais emblemáticos na área de Relações Internacionais no Brasil, Mônica Hirst tem uma extensa trajetória de pesquisa aqui e na América Latina. É doutora em Estudos Estratégicos pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); mestre em Ciência Política pelo antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj, hoje Iesp/Uerj) e bacharel em História pela PUC-RJ.

Atualmente, é professora na Universidad Torcuato Di Tella, na Argentina, e no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp-Uerj). Suas principais áreas de interesse são: política e segurança regional, paz e governança global, política externa do Brasil e dos EUA, cooperação internacional e ajuda humanitária.

Entre uma aula e outra, Mônica falou com o OPEU Entrevista. Na conversa com os pesquisadores Marcus Tavares e Nathan Oliveira, abordou os desafios e as conquistas de sua carreira, o crescimento e o amadurecimento da área de RI no país, as relações entre Brasil e Estados Unidos, entre outros pontos. Confira os principais trechos abaixo.

OPEU: A sra. tem uma longa e sólida trajetória acadêmica, com projeção internacional nos estudos sobre Estados Unidos, Brasil e também na América Latina. Como a sra. avalia sua contribuição para esse campo e que desafios enfrentou?

Na realidade, minha trajetória, em grande parte, é a história recente da área de Relações Internacionais no Brasil e na América Latina, porque quando eu comecei minha vida profissional nesse campo havia muito pouco em matéria de estudos de Relações Internacionais no Brasil e na América Latina também. Era uma área ainda muito incipiente. Nós ainda estávamos saindo de períodos autoritários. Havia uma ênfase na geopolítica, na presença de um pensamento mais militarizado que falava e que via e sublinhava muito a importância dos conflitos intrarregionais – as hipóteses chamadas hipóteses de conflito. Então esta será uma área que vai-se transformar muito, e eu tive a sorte de ser parte dessa transformação. Ou seja, eu fiz parte como geração e pude também, eu acho, contribuir para a sua edificação não só com que eu escrevi e pesquisei, mas institucionalmente. Havia um vazio institucional no Brasil.

Nós – não fiz isso sozinha, obviamente –, nós trabalhamos na época no CPDOC [Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getulio Vargas, FGV], com Gerson Moura; depois na PUC, com a criação do Instituto de Relações Internacionais, o IRI. Fiz minha pós-graduação no IUPERJ, numa área que não existia. Fui a segunda orientanda da professora Maria Regina [Soares de Lima]… Ou seja, é todo um esforço de criação institucional. Que não se deveu a nós, óbvio, mas, sem dúvida nenhuma, nós fincamos as bandeiras.

E na América Latina também. Nós tínhamos um grupo chamado Rial, que era uma rede de latino-americanistas trabalhando na área de Relações Internacionais. E também, quer dizer, uma coisa nova, áreas, temas, enfim, não trabalhados, perspectivas comparadas, relacionamento com os Estados Unidos, com a Europa. Nós estávamos ainda na Guerra Fria. Então, também temas importantes da Segunda Guerra Fria, a crise na América central, tudo isso era o nosso cotidiano e nossos temas de trabalho. Então, digamos, é uma trajetória muito vinculada também a essa gênese da área de Relações Internacionais. Depois, ela se desenvolveu muito, e muito bem. Tanto na América Latina como no Brasil.

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O Brasil ainda é, até hoje, um país autorreferido, graças a ter tido um tipo particular de inserção internacional, principalmente nos últimos 20 anos. O Estado e as Fundações estrangeiras apoiaram muito o desenvolvimento da área, de diferentes maneiras. Graças a estes apoios fizemos muitas coisas. Eu sublinharia a iniciativa que eu e Maria Regina conduzimos, com o apoio da Fundação Ford, para a criação de uma área no Brasil de pesquisa em relações Sul-Sul, em um momento em que este tema estava começando a aparecer como um tema importante na nossa agenda da política externa. E também escrevíamos sobre esses temas. Então, era trabalhar nas duas frentes, construção institucional, docência, que eu sempre gostei muito, e a própria pesquisa.

Tem sido um caminho de realizações e de complementariedade com os colegas, acompanhado por grandes amizades.

OPEU: E ainda é possível observar uma menor importância do Brasil e do continente americano como um todo para a política externa dos Estados Unidos nos últimos dois governos estadunidenses?

As relações dos Estados Unidos com o Brasil são um relacionamento que mudou muito, é verdade. Mudou nos últimos 20 anos de diferentes maneiras. Os Estados Unidos perderam a centralidade que tinham na agenda internacional do Brasil a partir do início do século XXI. Essa perda da centralidade está muito vinculada também a toda uma mudança na política externa dos governos do PT e de um momento internacional também diferente, de transição, de busca de uma multipolaridade onde o Brasil tivesse um lugar e uma contribuição. Então, digamos, que a revisão dessa centralidade leva a que as relações com os Estados Unidos mantenham uma importância, mas já não são um ponto de referência. Houve uma época da nossa história em que a gente precisava olhar para os Estados Unidos e para as posições internacionais dos Estados Unidos para definir as nossas próprias. Isso foi o que desapareceu com a perda dessa centralidade.

Brasil-Estados Unidos: desencontros e afinidades (FGV de Bolso) eBook : Hirst, Monica: Amazon.com.br: LivrosAgora, nesse momento, com o governo Bolsonaro, existe, e existiu mais ainda nos anos do governo Trump, um bilateralismo histriônico. Eu não chamo isso de centralidade, porque é muito referido a própria centralidade da visão de mundo do presidente Bolsonaro na política externa, ou seja, é um outro tipo de centralidade, e que trouxe de volta a relação com os Estados Unidos. Eu diria que já colocada em uma perspectiva que já não é nem de alinhamento; é de adulação, de aquiescência. Eu trabalhei muito com o jogo de palavras com “As”.

E agora a gente tem um grande vazio, mas é um vazio que não é só nosso com os Estados Unidos, é um vazio dos Estados Unidos com a região. Então é vazio com um vazio. E isso, digamos, obviamente, não é bom, porque a relação com os Estados Unidos é instrumental, é importante. Ela precisa ser construída, obviamente, mantendo as diferenças, as soberanias, enfim, tudo o que está em jogo neste momento. Porque o que nós temos são migalhas.

OPEU: Esta seria a minha segunda pergunta. Porque eu trago essa contribuição sua em que você dividiu a relação entre o Brasil e os Estados Unidos em quatro momentos, usando os “As”: aliança, alinhamento, autonomia e ajuste. E eu iria perguntar exatamente isso: como que a sra. enquadraria, se enquadraria, esse momento do governo Bolsonaro com Donald Trump dentro de algum desses quatro conceitos, ou outros, mas a sra. já respondeu.

Aquiescência e adulação.

OPEU: A pandemia da covid-19 trouxe ao mundo esse clima de incertezas quanto ao futuro e, ao mesmo tempo, a criação de redes de colaboração. Por um lado, bem no comecinho da pandemia gerou um clima de otimismo para uma cooperação maior no futuro. Por outro, a concentração de insumos e de vacinas em países desenvolvidos também permite que se pense o contrário. É como a sra. tem enxergado essa situação?

A pandemia, para nós, foi devastadora, não é? Quer dizer, para nós, tanto no Brasil como na América Latina… É difícil a gente conseguir achar que ela foi uma oportunidade. Nós temos que nos recuperar. E vai levar tempo. O mundo mudou. Do ponto de vista, inclusive, da corrida dos seus estados tecnológicos – e nós ficamos mais atrás. Eu não tenho uma visão positiva, otimista nesse momento sobre as janelas, as chamadas janelas de oportunidades criadas pela pandemia. Infelizmente, a região está muito fragmentada, muito dispersa politicamente. Nós temos um vazio institucional muito grande. A falta de interesse do Brasil pela região cria um vazio que também complica mais ainda o regionalismo latino-americano. E o mundo está mais desigual. E nós, tanto como país como enquanto região, estamos mais irrelevantes. Então, nós ficamos bastante prejudicados. Isso não é uma maldição bíblica que não vai ser superada. Haverá uma reação. A reação, eu acredito, que virá muito mais da sociedade do que das elites e das classes dirigentes, enfim, dos líderes que governam. Acho que há uma crise de liderança, inclusive nesse momento, nos nossos países em geral. E há uma necessidade de novas configurações políticas, de organização, da própria voz da sociedade. Esse é um momento de enorme desamparo. Que, como eu digo, eu acho que terá condições de ser superado, mas as condições internacionais não são muito favoráveis nesse momento. E nós estamos muito fragilizados.

OPEU: A sra. falou em um mundo que mudou, em crise de liderança. E os Estados Unidos sempre foram vistos em um papel de liderança nas instituições multilaterais internacionais. Com Donald Trump chegando ao poder, isso mudou em certa medida e também havia uma incógnita de como os Estados Unidos se posicionariam quanto ao tema no transcorrer da pandemia, sobretudo, com o posicionamento do governo chinês, defendendo essas agendas multilaterais. Como a sra. avalia essa situação do multilateralismo?

Acho que nós temos um problema que não está claro como vai ser encarado. Eu não diria resolvido, mas pelo menos, digamos, colocado com uma certa dinâmica quotidiana na nos âmbitos da governança global. Nós temos um esforço enorme por parte dos Estados Unidos de recolocar sua liderança a partir, digamos, da afirmação de sua rivalidade com a China, e isso dentro dos próprios espaços multilaterais e das agendas propriamente ditas da governança global. Um grande exemplo é a agenda ambiental, mas não é a única, há a agenda digital, temos a agenda de direitos humanos… Como conciliar essas duas pressões? Isso é uma tensão. A tensão produzida pelas diferenças que se se manifestam na rivalidade China-Estados Unidos e a agenda global, que tem, digamos, um nível de autonomia. É relativo, mas, enfim, ela é inspirada e alimentada desde baixo, desde as próprias raízes sociais. A demanda por algum tipo de resposta positiva, eficaz dos governos em relação à mudança climática vem de baixo. Então, como fazer a conciliação? Como criar e reconfigurar as instituições multilaterais para lidar com essa tensão? Esse é a pergunta que nós estamos nos fazendo nesse momento. É sem maiores respostas, porque os Estados Unidos estão muito desejosos de recuperarem uma liderança internacional, que está muito prejudicada, e baseados numa polarização que é muito disfuncional para a agenda global.

OPEU: Em 2021, Glenn Youngkin, um candidato republicano, foi eleito governador na Virgínia, um estado historicamente democrata, devido a algumas fake news que foram disseminadas. Como a sra. avalia o impacto desse debate no contexto doméstico? Há perda de capital político do presidente Joe Biden, do Partido Democrata, com potenciais consequências nas eleições para o Congresso em 2022?

Há uma volatilidade da política que independe, já, das lideranças. Ou seja, o que a gente está observando, e isso ocorre em todo mundo, é uma fatiga da sociedade com respeito às lideranças da vez, a bola da vez. E o esgotamento cada vez mais rápido dessas lideranças. Os Estados Unidos não estão numa situação ruim economicamente. Há um processo de reativação da economia. Enfim, há uma série de elementos que deveriam estar favorecendo a saída da pandemia, campanha da vacinação… Ou seja, uma série de coisas que deveriam estar favorecendo o governo Biden e é justamente o calcanhar de Aquiles ali no estado de Virgínia. Vai depender muito da capacidade desse governo mostrar mais resultados para poder construir, de uma maneira mais sólida, essa liderança. Eu não sou muito otimista, porque eu acho que o trumpismo deixou sementes muito poderosas na sociedade americana que pegam rapidamente. Porque os problemas que geraram e que abriram espaço para o trumpismo continuam, absolutamente, vigentes: é uma sociedade armada, uma sociedade com um grau de racismo muito alto, é uma sociedade com níveis de empatia e solidariedade muito baixos, é uma sociedade que tem uma visão crescentemente militarizada e securitizada com respeito ao tema da imigração.

Carter, em 2008 (Wikimedia Commons)

Então, não sei o quão eficaz pode ser uma liderança democrata para se manter, para ser sustentável. E eu não vejo o Partido Democrata fazendo uma grande transformação do ponto de vista da sua presença política. Então, eu acho que se corre um risco muito alto de que esse governo seja um momento, como foi o governo [Jimmy] Carter [1977-1981] – que foi um parêntese, num processo de declínio que continua se acelerando. Eu acho que a gente vai saber disso rapidamente.

OPEU: Perfeito, professora. A gente agora queria saber se a sra. está desenvolvendo alguma pesquisa, algum trabalho para o futuro próximo. E também, assim, como a sra. comentou, a sra. iniciou sua jornada acadêmica em tempos bem conturbados e de enormes desafios. E hoje, embora de uma forma diferente, nós também vivemos tempos de incertezas para a comunidade acadêmica. A sra. teria alguma palavra para os corações aflitos da nossa época?

Os corações aflitos não têm outra alternativa senão investir em produção de conhecimento, para fazer pesquisa de campo, que eu sempre defendo muito. Desbravar. Desbravar território, trabalhar com parcerias regionais e do Sul Global, que são as mais promissoras, as mais criativas. O Brasil precisa sair do seu encapsulamento, mais ainda. Já começou a sair, mas precisa sair mais. O Brasil precisa sair mais de si mesmo, e a área de Relações Internacionais é estratégica para isso. Então, é importante estudar e conhecer mais o outro. O Brasil ainda conhece pouco o outro – é inevitável, pelo seu tamanho, pela autorreferência –, mas a área de Relações Internacionais é que pode liderar isso. E eu acho que é importante.

Nesse momento, eu estou fazendo um texto com a Lia Valls Pereira sobre, justamente, as relações Brasil-Estados Unidos do período Bolsonaro. Estou trabalhando junto com uma equipe maravilhosa na Friedrich Ebert, na [revista] Nueva Sociedad. A gente tem um projeto sobre paz e diálogo desde um prisma regional. Estamos agora por lançar uma pesquisa de opinião latino-americana, que obviamente inclui o Brasil, sobre temas da agenda internacional. É o suficiente para me deixar muito ocupada. Além do prazer de estar dando um curso no IESP [a disciplina As bases internas da política internacional dos Estados Unidos], onde vocês dois são muito bons alunos.

OPEU: Muito obrigado, Mônica.

 

* Marcus Tavares é pesquisador voluntário do Opeu e mestrando em Economia Política Internacional no Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PEPI/UFRJ). Contato: marcus.tavares1987@yahoo.com.br.

Nathan Oliveira foi pesquisador voluntário do Opeu e é mestrando em Relações Internacionais no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGRI/Uerj). Contato: ods.nathan@gmail.com.

** Recebido em 16 jun. 2022. Este relato não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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