Internacional

Blinken reforça papel da Índia como centro estratégico das relações internacionais

Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken (à esq.), e o ministro indiano das Relações Exteriores, Subrahmanyam Jaishankar, em entrevista coletiva em Nova Délhi, em 28 jul. 2021 (Crédito: Reuters)

Por Andre Sanches Siqueira Campos*

A Ásia vem-se tornando o centro mais dinâmico e em rápido desenvolvimento da política mundial. Nesse contexto, vemos a Índia cada vez mais engajada na Ásia e no mundo, em busca de uma ordem mundial pluralista, aberta e inclusiva. Em um palco de competição geopolítica protagonizada pela ascensão chinesa como nova potência, a crescente presença internacional da Índia revela como Nova Délhi vem, aos poucos, saindo da condição de coadjuvante para dividir o protagonismo com seu vizinho asiático. Em meio à rivalidade dos países Ocidentais com a China, marcada pela expansão da Belt and Road Initiative (BRI), a política externa indiana tem demonstrado pragmatismo político para elevar o nível de cooperação bilateral e multilateral, a ponto de sustentar sua posição emergente e construir uma percepção mundial de que o “elefante asiático” constitui, atualmente, o novo centro estratégico das relações internacionais.

A recente visita do secretário de Estado americano, Antony Blinken, à Índia, em 27 e 28 de julho, para se encontrar com membros da sociedade civil do país, autoridades religiosas e políticas, entre eles, o ministro das Relações Exteriores, Subrahmanyam Jaishankar, o conselheiro de Segurança Nacional, Ajit Doval, e o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, favorece essa percepção e sinaliza uma continuidade da política externa americana para a Ásia sob o governo Joe Biden. A visita ocorreu poucos dias depois da viagem da vice-secretária de Estado dos EUA, Wendy Sherman, à China.

In this image taken from a video footage run by China's CCTV via AP Video, U.S. Deputy Secretary of State Wendy Sherman, front left, and her delegation meet Chinese counterpart in Tianjin, China Monday, July 26, 2021. China blamed the U.S. for what it called a “stalemate” in bilateral relations as high-level face-to-face talks began Monday. (CCTV via AP Video)

Vice-secretária de Estado dos EUA, Wendy Sherman (em 1º plano), e sua equipe se reúnem com a delegação chinesa em Tianjin, na China, em 26 jul. 2021 (Crédito: CCTV via AP Vídeo)

No histórico recente das relações bilaterais EUA-Índia, nota-se a crescente aproximação política dos países, por meio das visitas presidenciais realizadas por Bill Clinton, George W. Bush, Barack Obama e Donald Trump em comparação ao número de viagens entre 1947 e 1989, período em que apenas Dwight Eisenhower, Richard Nixon e Jimmy Carter haviam visitado o país. Em fevereiro deste ano, o primeiro-Ministro Modi convidou o presidente Biden e a primeira-dama, Jill Biden, para visitarem a Índia, durante a primeira interação oficial entre os governos.

As relações bilaterais EUA-Índia evoluíram para uma “parceria estratégica global”, com base nos esforços de cooperação entre o premiê Modi e o então presidente Obama e materializada pela realização de duas cúpulas. Ambas resultaram em declarações: The U.S.-India Strategic Partnership – Chalein Saath Saath: Forward Together We Go, em 2014, e India-U.S. Delhi Declaration of Friendship, em 2015. No ano seguinte, os dois líderes aprofundaram a parceria, mediante a declaração conjunta intitulada Enduring Global Partners in the 21st Century. Dentre os diversos acordos de cooperação, os laços EUA-Índia se expandiram nos últimos anos com a assinatura de três acordos: 1) Logistics Exchange Memorandum of Agreement (LEMOA), em 2016; 2) Communications Compatibility and Security Agreement (COMCASA), em 2018; e 3) Basic Exchange and Cooperation Agreement (BECA), em 2020.

Este ano, Blinken foi o terceiro oficial de alto escalão da administração Biden a visitar Nova Délhi, depois do secretário da Defesa, Lloyd Austin, responsável pela primeira visita internacional de alto nível da atual administração, em março, e do enviado especial para Mudanças Climáticas, John Kerry, em abril. Em seu discurso de abertura em uma mesa-redonda com representantes da sociedade civil, Blinken afirmou que “o relacionamento entre nossos países é um dos mais importantes do mundo”. O secretário de Estado americano já havia destacado a importância das relações entre os dois países em 29 de janeiro, via Twitter, poucos dias após a posse de Joe Biden e Kamala Harris.

A Índia no cálculo político americano

Em sua visita à Nova Délhi, Blinken demonstrou que o governo americano está aberto para aproveitar novas oportunidades de cooperação e enfrentar os desafios compartilhados na região do Indo-Pacífico e além. O secretário destacou a importância de os países estarem conectados por valores democráticos e por aspirações compartilhadas, baseadas nas liberdades fundamentais e no Estado de Direito e que reforçam os laços comerciais, educacionais, religiosos e familiares entre os dois países.

Segundo análise de Hanna e Batalova (2020), publicada no Migration Information Source, os indianos são o segundo maior grupo de imigrantes nos Estados Unidos, atrás do México. A diáspora indiana nos EUA vem apresentando crescente influência nas mais diversas camadas da sociedade, ao ocuparem, por exemplo, cargos na área de tecnologia, em lideranças empresariais e posições no governo. Esta crescente presença pesou até mesmo sobre os ombros da vice-presidente, Kamala Harris, norte-americana de ascendência indiana de maior posição política na história, em relação à sua manifestação de solidariedade ao povo indiano e aos esforços na articulação do governo para ajudar a Índia. Para muitos, foi uma reação lenta, diante da força com que a pandemia da covid-19 afetou a Índia.

Fato que abriu discussão para os limites da representação no governo americano. Enquanto as ações de Harris estão limitadas pela agenda mais ampla do presidente Biden, assim como seria para qualquer outro vice-presidente, os esforços do governo americano em ampliar uma rápida resposta à crise da pandemia na Índia poderia demonstrar à opinião pública como o governo democrata se distancia, na prática política, da administração anterior, do republicano Donald Trump. Seu governo era conhecido pelo slogan de campanha e política externa, baseado na ideia de “América em Primeiro Lugar” (America First), criticado por praticar uma política de perfil “isolacionista”. Embora a administração de Biden e Kamala sinalize não terem-se afastado do ideal nacionalista americano, sua estratégica política de cooperação e de aprofundamento das relações com a Índia tem sido habilidosa, algo demonstrado pelos inúmeros encontros bilaterais este ano, nas cúpulas do Diálogo de Segurança Quadrilateral (Quad), do G7 e dos Líderes sobre o Clima.

A visita de Blinken à Nova Délhi apenas reforça o peso da Índia no cálculo político americano e na estratégia de política externa de Washington. Na pauta de discussão de Blinken na Índia, foram abordados, em especial, os seguintes temas:

(1) Fornecimento de vacinas contra covid-19

A covid-19 foi um tema de tratamento prioritário entre os dois governos. O agravamento da pandemia na Índia resultou na disseminação da variante Delta, predominante entre os atuais casos de contaminação ao redor do mundo. Com o recente histórico de aprofundamento das relações bilaterais e intenso fluxo internacional de pessoas entre os países, o aumento da variante Delta poderia deixar os EUA, que já contabiliza mais de 660 mil mortes pela covid-19, mais suscetíveis a uma nova onda do coronavírus. O avanço da vacinação nos EUA possibilitou ao governo americano anunciar a doação de milhões de doses de vacina para a Índia, mas este processo enfrenta restrições legais aos laboratórios, em função da necessidade de autorização, por parte do órgão sanitário responsável, para aplicação das vacinas no país. Enquanto isso, empresas farmacêuticas americanas e indianas têm-se coordenado para fazer avançar os acordos de transferência de tecnologia, visando a aumentar a capacidade de fabricação global da Índia e tornar seus imunizantes acessíveis e de baixo custo. O governo americano também enviou suprimentos de oxigênio e abriu a cadeia de abastecimento de matérias-primas para a produção de vacinas.

Asia Today: India starts shipping COVID-19 vaccine to cities

Profissionais de saúde desembarcam caixas de vacina anticovid-19, em Hyderabad, na Índia, em 12 jan. 2021 (Crédito: Mahesh Kumar A/AP)

Os países do Sul da Ásia, região em que a Índia busca firmar sua liderança política e promover articulação institucional no combate à pandemia, receberam uma doação dos EUA via COVAX, em julho. Os EUA também contribuíram com mais de US$ 200 milhões em ajuda à Índia, um gesto apoiado por grande parte do setor privado americano. Blinken anunciou que os EUA enviarão US$ 25 milhões adicionais para apoiar os esforços de vacinação do parceiro asiático, fortalecer a logística da cadeia de abastecimento e treinar profissionais de saúde. O ministro Jaishankar aproveitou para abordar a facilitação da mobilidade de estudantes, profissionais, reuniões familiares e casos humanitários, em razão das restrições impostas pelos EUA em voos procedentes da Índia, no intuito de combater a disseminação da covid-19.

(2) Mudanças Climáticas

Blinken reforçou o compromisso americano com a Agenda 2030, lançada em abril pelo primeiro-ministro Modi e pelo presidente Biden, durante a Cúpula de Líderes sobre o Clima. Trata-se de uma cooperação de alto nível no campo climático, centralizada na geração de energia limpa, no desenvolvimento de novas tecnologias e na mobilização de recursos financeiros, no intuito de cumprir as metas do Acordo de Paris. A busca por medidas de redução de gases do efeito estufa e por energia limpa procura demonstrar que as ações climáticas podem se alinhar a um desenvolvimento econômico inclusivo e às prioridades de desenvolvimento sustentável.

(3) Direitos Humanos na Índia

A Índia precisa superar profundos problemas sociais relacionados com seu sistema de castas, relatos de abusos aos direitos humanos, violações dos direitos das mulheres e crianças, bem como das minorias religiosas. O governo Modi foi criticado por discriminação aos mulçumanos por não os incluir na Lei de Cidadania (Emenda), que reduziu de 11 para 6 anos o período em que migrantes ilegais de certos grupos religiosos podem obter a cidadania indiana. Os Estados Unidos também acompanham os problemas de fronteira enfrentados pela Índia no Sul da Ásia.

O Paquistão acusou a Índia de tomar ações ilegais, em violação às resoluções do Conselho de Segurança da ONU e às leis internacionais, devido à Ordem de Reorganização de Jammu e Caxemira 2020, uma resolução que visa a mudar a forma de administração da região disputada. O Paquistão chama a atenção para a exploração “oportunista” da pandemia da covid-19 por parte da Índia para intensificar sua repressão militar na região. Enquanto o ministro Jaishankar se defendeu, apontando que este quadro faz parte de problemas históricos do país, e não do governo, especificamente. O secretário Blinken recorreu, por sua vez, ao argumento de que a liberdade de imprensa e um Judiciário independente são mecanismos de correção desses erros. Nas entrelinhas, estava a mensagem implícita de que um recuo democrático do governo indiano poderia colocar em desarmonia a sinergia bilateral Washington-Nova Délhi.

(4) Deterioração da situação de segurança no Afeganistão

Após quase 20 anos de guerra, enviados e representantes especiais de países da Europa, das Nações Unidas e dos EUA acompanharam a declaração conjunta por ocasião do Acordo EUA-Talibã, assinado em 2020. Com o anúncio do fim da missão dos EUA no Afeganistão em 31 de agosto de 2021 e o início da retirada das tropas americanas do país, os talibãs vêm expandindo seu controle sobre o território afegão e se tornando motivo de preocupação para a estabilidade regional e a segurança global.

O acordo incluía condições de negociação para cessar-fogo, retirada gradual das tropas americanas, libertação de prisioneiros e compromisso com o processo político, de paz e estabilidade do Afeganistão. EUA e Afeganistão realizaram uma declaração conjunta em que previam, dentre diversos pontos, a garantia para prevenir o uso territorial do país por quaisquer grupos terroristas, ou indivíduos, contra a segurança americana e seus aliados, um cronograma de retirada das forças americanas e dos aliados da coalizão e um acordo político conduzido internamente pelo Afeganistão em negociações com os talibãs.

Os Estados Unidos ainda apresentam intensa articulação política na Ásia e forte intervenção na região do grande Oriente Médio e Norte da África, no intuito de proteger seus interesses. Porém, na medida em que os EUA diminuem sua presença militar no Afeganistão, a União Europeia, vista, principalmente, como um parceiro comercial e não como um ator político ou de segurança, torna-se uma importante aliada dos países do Quad, ao utilizar seu poder normativo e ajuda ao desenvolvimento na região Sul-Asiática. A Índia também forneceu treinamento operacional às forças de segurança afegãs e equipamento militar, embora não tenha tropas no local, além de US$ 2 bilhões em ajuda ao desenvolvimento do país.

No encontro entre Blinken e Jaishankar, manifestou-se preocupação com a deterioração das negociações de paz entre Afeganistão e Talibã, ressaltando que não há solução militar para o conflito interno. O secretário americano ainda chamou atenção para os cuidados que o governo afegão deve ter para não se isolar da comunidade internacional, mediante abuso de forças e desrespeito aos direitos de sua população. O ministro indiano expressou discreta preocupação quanto às influências externas no Afeganistão, referindo-se, entre linhas, à aproximação do Paquistão com os talibãs.

Índia e Paquistão têm um histórico conflituoso e, frequentemente, estão em lados estratégicos opostos, cada um procurando anular o jogo político do outro, presos a uma disputa regional de poder. O Paquistão aproveita a inserção chinesa no Sul da Ásia para aprofundar suas relações bilaterais com o Dragão asiático e confrontar a assertividade indiana. Nova Délhi busca, por sua vez, atuar em coordenação com os Estados Unidos para reequilibrar a ordem regional proporcionada pela forte inserção chinesa. O governo indiano acredita haver apoio de Islamabad aos avanços dos talibãs no Afeganistão e alerta para o risco que isso pode trazer para a segurança regional e para seus projetos de parceria estratégica com os EUA. Ainda sobre o mesmo tema, Blinken defendeu um processo de paz liderado pelo povo afegão. Essa interlocução de Washington, do ponto de vista indiano, reforça a crítica de Nova Délhi em relação a possíveis influências regionais externas no Afeganistão.

O que se sabe sobre a crise entre Índia e Paquistão

Índia e Paquistão têm um histórico de conflitos (Crédito: AFP)

A aprovação da Asia Reassurance Initiative Act durante o governo de Donald Trump deixou claro o apoio do Congresso americano ao fortalecimento da cooperação com a Índia, visando a articulações de segurança no Indo-Pacífico, por meio do Quad. O Diálogo de Segurança Quadrilateral (Quad) é uma coalizão informal e flexível, formada por Japão, Estados Unidos, Austrália e Índia. Proposto pelo Japão em 2007, o Quad é um mecanismo de diálogo estabelecido com base em um quadro de segurança entre democracias, com o objetivo de tratar problemas globais complexos, e em uma visão compartilhada sobre a região do Indo-Pacífico. Embora a Índia seja um aliado em termos de vendas de hardware militar e de transferência de tecnologia, existe certa decepção de Nova Délhi em relação à aplicação de sanções seletivas que se adequam a Washington e ferem determinados interesses da Índia – especialmente no caso de Irã e Mianmar.

(5) Questões de fundo regional: Nova Délhi no centro estratégico do Indo-Pacífico

O comportamento político da Índia se afastou da visão nehruísta do século XX e começou a buscar uma política externa mais realista e pragmática, traduzida, na prática, pela adoção de políticas como: 1) Neighborhood First, que visa a priorizar ações no Sul da Ásia, seja pela via bilateral, seja por meio de organizações regionais, como a Associação Sul-Asiática para a Cooperação Regional (SAARC), a Iniciativa da Baía de Bengala para a Cooperação Econômica e Técnica Multissetorial (BIMSTEC), ou a Associação da Orla do Oceano Índico (IORA); 2) Make in India, um programa nacional do governo para facilitar investimentos, impulsionar a inovação e construir uma melhor infraestrutura de manufatura, visto que o país é um grande centro de produção de softwares, produtos têxteis e um dos maiores centros de produção de vacina no mundo; 3) Act East Policy, uma ressignificação da política Look East, implementada após as reformas econômicas de 1991; 4) compromisso com a reforma das instituições multilaterais e maior engajamento político na ONU, Organização Mundial do Comércio (OMC), Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial, G-20 e o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), criado pelo grupo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (Brics).

A Índia tem-se destacado pelo avanço político de sua inserção internacional ao transitar de uma política de não alinhamento para um alinhamento múltiplo, baseado no conceito de autonomia estratégica, sob as administrações de Manmohan Singh e Narendra Modi. Embora se argumente que essa estratégica poderia criar um déficit de confiança em suas relações, o país está renovando uma série de parcerias estratégicas, a exemplo dos atuais avanços com Washington e da recente revisão da cooperação com a União Europeia durante a 15ª Cúpula UE-Índia, em 2020, na qual endossaram a “Parceria Estratégica UE-Índia: Um Roteiro para 2025“. Além disso, está na condução da presidência anual do Brics, em 2021, e estabeleceu diálogos para avançar a parceria com a Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), em abril deste ano.

Encontro dos ministros das Relações Exteriores dos países-membros do Brics, em 1º jun. 2021 (Fonte: Brics India 2021)

Colônia do Reino Unido até conquistar sua independência, em 1947, a Índia tem a segunda maior população do mundo e é a sexta maior economia mundial, segundo dados do Banco Mundial. Com uma população formada em sua maioria por jovens, conforme o relatório The World in 2050, da PwC (2017), o país apresenta projeções para se tornar a segunda maior do mundo e economia mundial e o país mais populoso do planeta em meados do século XXI. Ao contrário de muitos países que “ocidentalizaram” sua cultura, o soft power indiano é sustentado por sua herança civilizacional milenar, grande riqueza cultural e coerência nos valores políticos. Situa-se entre duas regiões problemáticas e de grande interesse para os EUA: Norte da África e Oriente Médio. Segundo a Doutrina Marítima Indiana (2015), a Índia exerce controle sobre grande parte das Linhas de Comunicação Marítima no Oceano Índico, uma importante linha histórica do comércio global e tráfego de petróleo, responsável pelo movimento de 90% do comércio indiano.

Devido a essa importância marítima, a Índia vem aumentando sua capacidade de controle na região, aprofundando a cooperação em infraestrutura e investimentos nos países vizinhos, como na construção de portos comerciais. Da perspectiva americana, isso significa que a Índia é um parceiro com capacidade crescente na gestão e na vigilância das águas do Oceano Índico. O conceito de Indo-Pacífico substitui a referência de Ásia-Pacífico, extrapola a noção geográfica e atribui centralidade ao papel político da Índia na região. É a nova referência geopolítica de Washington na Ásia e vem-se consolidando como parte da estratégia geopolítica de Índia, Austrália, Japão e EUA, membros do Quad.

O uso do termo Indo-Pacífico foi articulado pela primeira vez no governo Trump e assumiu um tom mais normativo, ao ser utilizado em documentos oficiais, como a Estratégia de Segurança Nacional (NSS, na sigla em inglês) de 2017. Tornou-se também parte integrante da estratégia da Administração Biden de uma região “livre” e “aberta”. A renovação do Diálogo de Segurança Quadrilateral (Quad) está associada à convergência desses países aos princípios de Estado de Direito, liberdade de navegação e de sobrevoo, resolução pacífica de disputas, valores democráticos e integridade territorial.

Desde 2020, os Estados Unidos autorizaram mais de US$ 20 bilhões em vendas de defesa para a Índia, quarta maior força militar do mundo, cujos recursos vêm-se modernizando, graças à cooperação bilateral e a seu avanço tecnológico. Isso dá a Washington condições para alavancar sua política no Indo-Pacífico, elaborada à luz de uma China em ascensão e vista como “revisionista” por parte dos EUA. Em tal cenário, o governo Biden sinaliza linhas de continuidade na política externa americana, ao confirmar a posição de seu antecessor republicano de rejeitar as reinvindicações marítimas de Pequim no Mar do Sul da China. A saída dos EUA do Afeganistão e o avanço da postura econômica e militar da China entre os oceanos Pacífico e Índico levaram Blinken e Jaishankar a estabelecer as bases para a realização de uma nova cúpula do Quad até o final de 2021.

Blinken fez questão de destacar que o Quad não é uma aliança militar, algo reforçado por Jaishankar, que se referiu ao grupo como um mecanismo de diálogo. O Quad não apresenta compromissos de segurança entre si, tampouco conta com uma sede, ou uma organização formal, como no caso da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Essa convergência retórica não deve levar a supor, porém, que Washington e Nova Délhi concordarão com uma visão e um curso de ação únicos para o Indo-Pacífico.

Apesar da sinergia bilateral e da confluência de interesses apresentadas durante a visita de Blinken, existe um conjunto de desafios no âmbito da segurança marítima, medidas contraterrorismo, conectividade em infraestrutura, preocupações na área cibernética e digital, resposta à covid-19, mudanças climáticas e formação de cadeias de suprimentos.

(6) Questões de fundo multilateral: a cooperação na ONU

O secretário Blinken e o ministro Jaishankar procuraram alinhar os interesses americanos de segurança internacional aos interesses de segurança regional da Índia. Os interesses indianos contra o radicalismo e o terrorismo convergem com a agenda dos Estados Unidos, bem como com sua atual posição no plano internacional a respeito de ações contra as mudanças climáticas.

Jaishankar também abordou a reforma do multilateralismo. Em 2010, em discurso no Parlamento indiano, o então presidente Barack Obama chegou a defender, publicamente, um assento permanente para a Índia no Conselho de Segurança da ONU, mediante a possibilidade de uma futura reforma deste órgão, uma vez que não reflete mais a atual realidade das relações internacionais. No mês em que celebra o 75º aniversário de seu Dia da Independência, a Índia assumiu, em agosto de 2021, a presidência rotativa do CSNU. A agenda proposta pela Índia sobre segurança marítima, manutenção da paz e medidas contraterrorismo em seu mandato é, possivelmente, resultado da sinergia bilateral, transformada em oportunidade política e em interesses compartilhados entre os países. Além disso, há o comprometimento indiano com uma ordem internacional baseada em instituições multilaterais e em normas internacionais, a qual reflete o domínio dos poderes estabelecidos do Ocidente.

Embaixador da Índia na ONU, TS Tirumurti, dirige-se ao Conselho de Segurança da organização (Crédito: PTI)

A parceria estratégica EUA-Índia enfraquece a narrativa de contestação do domínio da ordem liberal internacional questionada por Nova Délhi junto aos demais países emergentes nos últimos anos e favorece sua busca por um papel maior nas instituições multilaterais e um acesso preferencial ao conhecimento tecnológico, cooperação aeroespacial, em defesa, crescimento do comércio de bens e serviços, que alcançou US$ 149 bilhões em 2019, e captação de investimento estrangeiro direto.

Um país em busca da autonomia estratégica

A acomodação dos interesses americanos e indianos na articulação estratégica do Indo-Pacífico também pode trazer riscos às suas políticas externas, uma que vez o Sul da Ásia e o Oriente Médio são marcados por conflitos históricos e por grande instabilidade regional. Em ambas, vários Estados se encontram em diferentes estágios de consolidação democrática, e se enfrenta uma série de desafios de desenvolvimento e de segurança. A parceria estratégica EUA-Índia deve articular a participação de outros países e regiões nessa matriz geopolítica, a exemplo da presença de UE, Japão e Austrália.

A política externa indiana não se concentra apenas em conter a ascensão da China, nem se voltou completamente para uma parceria com os EUA. Sua inserção internacional reflete uma busca por autonomia estratégica que vem sendo desenhada nos últimos anos e apresenta convergência com os interesses de Washington. O aprofundamento destas relações bilaterais está calcado na crescente projeção e autonomia internacional da Índia, e não por mero alinhamento ideológico, ou contenção da ascensão comunista na região. Do lado americano, tendo herdado um cenário de guerra comercial e de competição geopolítica, o governo Biden apresenta linhas de continuidade em relação às administrações anteriores – republicana e democrata –, por trás de uma forte retórica em defesa dos valores democráticos. Uma retração dos interesses globais da Índia também poderia dificultar a manutenção dos interesses americanos. Em meio a um complexo jogo regional e a uma ordem internacional em transformação, mais vale lembrarmos que “as nações não têm amigos, as nações têm interesses”.

 

* Andre Sanches Siqueira Campos é doutorando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisador visitante no Leuven Centre for Global Governance Studies, da Universiteit Katholieke Leuven (KU Leuven), Jean Monnet Centre of Excellence, Bélgica (2020-2021).

** Recebido em 6 ago. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

 

Edição e revisão final: Tatiana Teixeira.

Assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti. Contato: tcarlotti@gmail.com.

 

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