Internacional

Retorno norte-americano à OMS traz otimismo e algumas dúvidas

Crédito: Lucas Jackson/Reuters

Por Henrique Zeferino de Menezes*

Em um dos seus primeiros atos como presidente dos Estados Unidos, Joe Biden assinou uma Ordem Executiva revertendo a decisão de Donald Trump de retirar o país da Organização Mundial da Saúde (OMS) de forma definitiva. Em julho de 2020, em um período dramático da pandemia de covid-19, Trump informou ao Congresso norte-americano e à Organização das Nações Unidas (ONU) que o país se desligaria formalmente da organização. A decisão veio após uma série de ameaças de rompimento e da suspensão do repasse de recursos à OMS.

Mesmo já esperada, a ordem de Biden tem sido vista com otimismo e como uma oportunidade de acelerar as respostas globais à atual pandemia e fortalecer os mecanismos de governança da segurança da saúde global. Não se deve, no entanto, esperar uma mudança radical na estratégia unilateral norte-americana de acesso a vacinas contra o coronavírus, mesmo com o reconhecimento por parte do país da importância de ações colaborativas nessa área.

Cooperação internacional em tempos de pandemia: qual papel dos EUA?

Entre janeiro e março de 2020, a OMS definiu o surto de covid-19 como uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional e acentuou sua gravidade quando a definiu como uma pandemia. Crises dessa natureza exigem respostas coordenadas, e a OMS é essencial na condução de ações para responder a emergências sanitárias em razão de sua capacidade política e técnica de tomar decisões baseadas em evidências científicas. O corpo técnico da organização e o Regulamento Sanitário Internacional estabelecem um conjunto de regras, protocolos e recomendações que permitem a melhor comunicação, a coordenação de práticas e uma atuação estratégica para orientar e subsidiar iniciativas globais de enfrentamento a pandemias e demais emergências sanitárias.

Desde o surto inicial da pandemia de covid-19, diversas ações específicas vêm sendo adotadas pela OMS e por outros atores internacionais, para fomentar respostas efetivas. Além da aprovação de importantes resoluções (UNGA 74/274, UNGA 74/270 e WHA 73.1), que definem compromissos políticos e ajudam a nortear os rumos da ação coletiva internacional, algumas iniciativas específicas para a contenção da disseminação da doença, busca por formas de tratamento seguras e eficazes e desenvolvimento e distribuição de vacinas, foram conduzidas pela OMS em colaboração com diversos outros atores.

A Iniciativa COVAX, parte do Access to COVID-19 Tools (Act) Accelerator da OMS, é certamente a mais relevante delas. Por intermédio de mecanismos de estímulo à inovação, mediante a aquisição antecipada de doses, a COVAX também pretende estimular a distribuição mais equânime das vacinas aprovadas. A iniciativa prevê a compra conjunta de diferentes opções de vacinas – aprovadas, ou em fases avançadas de testes clínicos –, além da distribuição de doses para países de menor desenvolvimento relativo. Para garantir que países sem capacidade de compra possam ter acesso a uma quantidade de doses capaz de imunizar pelo menos 20% da população de cada um deles, a OMS iniciou campanhas de arrecadação de recursos. Ao todo, 92 países de África, Ásia e América Latina e Caribe estão aptos a receber vacinas em forma de doação, aportando valores significativamente menores.

Os Estados Unidos, ator político essencial para a coordenação de iniciativas dessa magnitude, optaram por usar a OMS como “bode expiatório”, com o objetivo de minimizar a responsabilidade de sua gestão sobre a tragédia que se abateu no país. Desde a eclosão da presente crise sanitária, Trump lançou ataques à OMS, questionando a capacidade técnica da organização, suas intenções e motivações políticas no trato da pandemia. Além disso, o governo norte-americano decidiu boicotar algumas das agendas e importantes iniciativas da OMS, dentre elas o próprio mecanismo COVAX. Os EUA se negaram desde o início a participar da iniciativa, dando todos os sinais de uma postura não colaborativa para o enfrentamento da covid-19 em sua dimensão mais latente: a construção de uma estratégia global de imunização.

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COVAX: Diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, alerta sobre ameaça ao mecanismo (Crédito: Fabrice Coffrini/AFP via Getty Images)

Como já bem relatado em diversos estudos e notícias, a Iniciativa COVAX passa por sérias dificuldades, a ponto de ter sua função essencial seriamente ameaçada, como explica o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus. A proliferação de Acordos de Compra Antecipada entre empresas privadas e países desenvolvidos tem direcionado e concentrado um grande número de doses em um pequeno grupo de países. A má distribuição das doses poderá limitar significativamente a própria capacidade da COVAX de acessar e distribuir doses de imunizantes para os países mais pobres.

Em síntese, ao longo da gestão Trump, os EUA optaram pelo negacionismo científico e da pandemia, assim como pelo confronto com atores e agentes cruciais neste momento. À medida que a pandemia ia assolando o país, Trump subia o tom das ameaças à OMS, tuitava ofensas, concretizava algumas ações contra a organização, até chegar à decisão de formalizar a saída oficial da instituição em julho de 2020.

O retorno

Além de notificar ao secretário-geral da ONU, António Guterres, que os EUA retomariam seu local na OMS e seu papel nos esforços globais de cooperação, Biden vem tomando outras medidas, na contramão da conduta de seu antecessor, para refrear o surto de covid-19 nos EUA e minimizar os efeitos globais da pandemia. Além do retorno à OMS, Biden também assinou ordens estabelecendo um novo escritório federal para coordenar a resposta do país ao vírus, além de restaurar a diretoria do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca para a segurança e defesa da saúde global. De forma geral, as decisões de Biden têm sido muito bem recebidas por diversos especialistas no campo da saúde global, seja pelos efeitos práticos da escolha de retomar e fortalecer a OMS, seja por razões políticas de mais longo prazo.

Os recursos norte-americanos são essenciais para o orçamento da OMS e, assim, para a capacidade de implementação de suas ações e iniciativas em saúde. A efetiva retirada dos EUA e o corte definitivo dos recursos destinados à organização trariam impactos negativos para estrutura da governança da segurança da saúde global e para a capacidade de resposta efetiva para conter novos surtos pandêmicos. Como explica Thomas Bollyky, até mesmo os interesses norte-americanos estarão muito mais bem atendidos com o país dentro do que fora da OMS.

Em uma dimensão política mais ampla e de longo prazo, o fortalecimento de uma instituição essencial para a gestão de uma multiplicidade de aspectos e camadas da saúde global exige o comprometimento político e liderança. Mesmo antes do surto da covid-19, a gestão Trump já atuava de forma a desacreditar e a enfraquecer instituições internacionais e nacionais. Apenas para ilustrar, como demonstram o texto de Sophie Harman e Sara Davies e um importante editorial publicado por Gonsalves Yamey Gavin, em maio de 2018, por decisão da gestão Trump, foi extinto o White House Global Health Security Office, criado por Barack Obama após a epidemia de ebola entre 2015-2016. Em 2019, foi encerrado o PREDICT, um programa de alerta e identificação de vírus com potencial pandêmico. Ainda, as propostas de orçamento diminuíram de forma significativa os recursos para os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), para o National Institutes of Health (NIH) e para a própria ONU.

Além da decisão de paralisar a saída dos EUA da OMS, Biden anunciou que os EUA participarão da Iniciativa COVAX, com a promessa de aporte de recursos na ordem de US$ 4 bilhões. Como se vê, a necessidade de recursos para sustentar a iniciativa é fundamental, apesar de não haver clareza sobre a disponibilidade de doses para compra e distribuição. Além disso, o governo norte-americano informou que os EUA irão doar doses de vacinas que o país adquirir em excesso. O anúncio foi realizado na reunião do G7, com o intuito de encorajar outros países desenvolvidos a fortalecerem os laços com a iniciativa e as ações para o controle da pandemia.

How COVID Guidelines Will Change With Biden

PLANO: O recém-empossado presidente Joe Biden anuncia sua estratégia de combate à covid-19, na Casa Branca, em 21 jan. 2021. Em segundo plano, à esq., a vice Kamala Harris (Crédito: Mandel Ngan/AFP via Getty Images)

Fica claro o sinal dado por Biden de uma tentativa de recolocar os EUA no centro da gestão da saúde global e voltar a assumir a liderança no campo – espaço este que vinha sendo ocupado de forma contundente pela União Europeia e pela China. A pergunta que fica é se os EUA conseguirão retomar sua credibilidade internacional, tão fortemente abalada pelos quatro anos da gestão de Donald Trump.

Por fim

Apesar das diversas advertências por parte da OMS, a gestão Trump não se preparou para a pandemia e optou por sua politização e conflito. Os resultados são catastróficos, com efeitos sobre o mundo. A incapacidade de responder adequadamente e no tempo certo fez medidas excepcionais serem tomadas, como a utilização exagerada de Acordos de Compra Antecipada e outros instrumentos de poder para direcionar doses de vacinas para o país. O chamando vaccine nationalism tem potencial de produzir efeitos perversos sobre países mais pobres e aprofundar desigualdades internacionais.

O que esperar da gestão Biden nesse ponto específico das disputas globais por recursos? É certo que mudanças domésticas nos EUA, especialmente a transição entre republicanos e democratas, impacta as dinâmicas da saúde global, como as decisões já tomadas pelo democrata deixam muito claro. Entretanto, não é de se esperar uma ruptura nesse aspecto essencial da estratégia norte-americana para suprir o país com as doses necessárias para a imunização de sua população, mesmo que às expensas dos compromissos multilaterais e do bem-estar alheio.

 

* Henrique Zeferino de Menezes é pesquisador do INCT-INEU e professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Acaba de publicar o artigo ‘The TRIPS Waiver Proposal: An Urgent Measure to Expand Access to the COVID-19 Vaccines’,  no South Centre. Organizou o livro A Economia Política do Governo Obama, com o professor Reginaldo Moraes, publicado em 2017 pela Editora UFPB. Está no prelo o volume A Economia Política do Governo Trump, organizado por ele em colaboração com a pesquisadora do INCT-INEU Neusa Maria Bojikian. Contatos: hzmenezes@ccsa.ufpb.br e neusa.bojikian@gmail.com.

** Recebido em 28 fev. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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