China e Rússia

Think tanks estadunidenses e debate sobre China: a homogeneidade nas críticas ao Estado chinês

U.S.-China Think Tank Summit, organizada pelo Brookings-Tsinghua Center, em Pequim, em 21 abr. 2015 (Crédito: Jiang Yosan/IPTC Photo Metadata)

Por Rúbia Marcussi Pontes*

Os thinks tanks (TTs), ou simplesmente incubadores de ideias, exercem um papel importante no processo de formulação das mais diversas políticas, principalmente nos Estados Unidos (EUA). Nesse sentido, destaca-se, como proposto por James McGann, no artigo “Think Tanks and the Transnationalization of Foreign Policy” (2003), a atuação dessas instâncias na formulação de políticas públicas, com consultorias para governos e agências governamentais e com a provisão de funcionários especializados para o setor público.

Um ponto importante ressaltado por Colin Gray, em seu artigo “Think Tanks’ and Public Policy” (1978, p. 182) é que os TTs não são incubadores de ideias gerais voltadas para um possível “bem comum”, mas estão integrados, em grande medida, ao setor de pesquisa e desenvolvimento da indústria de defesa estadunidense. Assim, suas pesquisas e proposições estão diretamente voltadas para temas de segurança nacional e de política externa, principalmente. Além disso, Van Apeldoorn e De Graaff (2015) afirmam que tais instituições funcionam como uma “porta giratória” (revolving door) para políticos que deixaram seus cargos e que passam a fazer parte dos mais diversos TTs, bem como um cartão de visitas para especialistas serem convidados a participar de governos.

Embora se saiba que a compreensão das relações entre TTs e o Executivo e o Legislativo dos EUA seja importante para um melhor entendimento da política estadunidense, em geral, é possível observar, nos estudos brasileiros sobre os EUA, um baixo número de pesquisas sobre essas instituições e, mais especificamente, sobre suas percepções das relações sino-americanas.

Os TTs são apenas um entre os diversos fatores de influência nessa política, e seu papel não deve ser exagerado, como observa Zheng Yuan (2018). Deve-se, no entanto, levá-los em consideração para entender o papel e o pano de fundo de diversos tomadores de decisão e membros de quadros administrativos que atuaram nessa política em específico, bem como a influência de relatórios, conferências e cursos promovidos por essas organizações e de sua ação nos bastidores da política estadunidense em geral.

Tao (2018) aponta que a categorização rígida de TTs em favoráveis, ou contrários, à China (pro-China ou anti-China) é insuficiente para a compreensão da realidade. Muitos podem trabalhar no sentido de incentivarem as relações sino-americanas em alguns tópicos, enquanto sustentam posições distintas em outros. Ao mesmo tempo, é inegável o crescimento do interesse de TTs consolidados, nos Estados Unidos, em relação à China, nos últimos 20 anos, dada a importância estratégica do gigante asiático para os EUA. Nesse sentido, o Council on Foreign Relations (CFR) e o The Asia Society são dois TTs de reputação estabelecida que criaram grupos, ou centros para estudos, sobre China, cujos membros influenciaram o debate sobre este país.

De 2017 a 2019, identificam-se dois movimentos, com base no debate observado. Críticas são feitas a algumas das medidas tomadas pelo presidente Donald Trump em relação à China. Ao mesmo tempo, elas são feitas em um contexto de percepção negativa em relação àquele Estado, apontado como crescentemente autoritário e como um competidor desleal na busca pela dominação das chamadas tecnologias do futuro, com destaque para o 5G.

Lembra-se que Trump assumiu o governo, em janeiro de 2017, com um discurso de preservação da proeminência estadunidense e de implementação de uma política mais dura no que diz respeito a Pequim, acusada, entre outros pontos, de manipulação cambial, de roubo de propriedade intelectual e de comércio desleal com os EUA.

As críticas ao Estado chinês e a disputa pelas tecnologias do futuro

Uma das críticas mais recorrentes, entre os membros do CFR e da Asia Society, é em relação ao Estado chinês e ao modelo de desenvolvimento adotado pelo Partido Comunista Chinês (PCCh). A publicação conjunta, em 2018, de Kurt Campbell, ex-diplomata e Assistant Secretary of State for East Asian and Pacific Affairs, entre 2009 e 2013, e Ely Ratner, colaborador sênior do CFR e também ex-membro da administração Barack Obama, na Foreign Affairs, foi nesse sentido, o que deu início a uma série de respostas de outros membros de TTs.

Campbell e Ratner começam sua peça resgatando as históricas políticas dos EUA de reaproximação com a China e de integração desse Estado à ordem internacional. Segundo os autores, essas diretrizes estavam baseadas na percepção de que os EUA seriam capazes de moldar a China e fazer essa aproximação gerar uma liberalização gradual da economia chinesa até a liberalização política. Tal linha de argumentação partia da premissa de que a história tem uma direção e que as democracias liberais estariam “do lado correto da história”.

O curso da história foi, entretanto, diferente do esperado. Não se observou a concretização desse ciclo virtuoso. Pelo contrário. De acordo com os mesmos autores, o PCCh optou pelo controle da economia e por não abrir as portas do país para a entrada de firmas estrangeiras, em solo chinês, sem maiores restrições. Impede, portanto, a competição, em um contexto de permanência e de aprimoramento das chamadas “state-owned enterprises”. Além disso, Campbell e Ratner ressaltam como o Estado chinês cria fortes políticas industriais, destacando o Made in China 2025, e os elevados níveis de investimento e de subsídios para as empresas chinesas. Apontam ainda o “autoritarismo do século XXI da China”, marcado, segundo ambos, por um forte controle estatal.

Tal artigo encontrou ressonância nos periódicos, resultando em observações feitas em artigo conjunto, também publicado pela revista Foreign Affairs, ainda em 2018. A diretora de Estudos Asiáticos no CFR e autora de obras sobre a questão ambiental na China, Elizabeth Economy, foi uma das principais vozes nesse sentido, ecoando as palavras de Campbell e de Ratner sobre o país, que não seria, de fato, um parceiro confiável para os EUA. Em suas palavras: “pelo contrário, é um país crescentemente autoritário, poderoso econômica e militarmente, inclinado a expulsar os Estados Unidos da Ásia e a moldar as normas internacionais para que elas se adaptem aos seus propósitos”. Para Elizabeth, os EUA deveriam lutar contra o protecionismo chinês com um protecionismo próprio, com características estadunidenses.

Lindsey Ford, do Asia Society Policy Institute, parte do The Asia Society, segue essa mesma linha, no artigo conjunto, ao afirmar que os EUA se distraíram, por muito tempo, com o Oriente Médio e com a falta de uma verdadeira estratégia de política econômica para engajamento na Ásia. A recomendação é que isso seja corrigido, com base em uma perspectiva que leve em consideração o maior objetivo dos EUA: uma Ásia próspera e estável – e não necessariamente uma relação sino-americana estável.

A crítica ao Estado chinês também aparece em um relatório elaborado por um grupo de trabalho que investiga as relações e a política entre os EUA e a China, o Task Force on U.S.-China Policy, reunido pelo Asia Society’s Center on U.S.-China Relations, parte do The Asia Society, e pelo 21st Century China Center, da Universidade da Califórnia.

Intitulado “Course Correction: Toward an Effective and Sustainable China Policy” e publicado em fevereiro de 2019, o relatório conta com a participação de representantes de diversas instituições e TTs estadunidenses, como Kurt Campbell, Elizabeth Economy, Winston Lord, Evan Medeiros e David Shambaugh. O material foi organizado por Orville Schell, atual diretor do centro de estudos na The Asia Society, e por Susan Shirk, que já atuou como Deputy Assistant Secretary of State entre 1997 e 2000, na área de política para a China, e é membro do 21st Century China Center.

Recomendações para endurecer com Pequim

Logo em seu início, o relatório aponta como a administração Trump tem desvalorizado e até mesmo minado duas das maiores vantagens dos EUA: sua rede de aliados e parceiros e as instituições multilaterais globais, historicamente tão caras aos EUA. Mais especificamente, aponta que a saída da Parceria Transpacífica (TPP), por parte do governo Trump, foi um grande erro. No documento, alega-se que este acordo regional de comércio poderia ter reunido ao menos uma dúzia de países de mentalidades afins (like-minded states), criando uma forte rede que, em tese, pressionaria a China a se adequar aos princípios do tratamento recíproco em suas relações comerciais.

Os autores do relatório reafirmam a tendência autoritária chinesa, que teria crescido entre 2017 e 2019 e, assim, demandam por uma política estadunidense mais robusta, para lidar com a China no contexto atual. Sua principal proposição, nesse sentido, é uma estratégia denominada “competição inteligente” (smart competition), baseada na combinação de competição e de cooperação entre as duas nações, e que envolveria a formação de coalizões internacionais. O intuito é pressionar a China a cumprir as normas internacionais mais adequadamente, bem como a buscar resoluções negociadas, sempre que possível, assim como preservar as instituições internacionais.

O relatório oferece algumas orientações que poderiam ajudar os dirigentes estadunidenses a colocar em prática a competição inteligente para lidar com a China. A primeira dessas recomendações é que os EUA devem, de fato, denunciar publicamente práticas chinesas que ameacem os interesses estadunidenses, mesmo que haja retaliações. Os autores também ressaltam que os EUA devem continuar a exercer pressão com seus parceiros, caso a China não realize as mudanças necessárias em seus regimes de comércio e de investimento – um ponto nevrálgico nas relações entre os dois países, assim como as alegadas práticas de roubo de propriedade intelectual e de transferência forçada de tecnologia.

É interessante notar, nesse momento, como o relatório ressalta a estratégia chinesa de busca pela dominação das chamadas tecnologias do futuro, seja por meio de desenvolvimento próprio, seja por meio da apropriação indevida de tecnologia provinda de outros países. Assim como Campbell e Ratner em seu artigo, Schell e Shirk também apontam como, em sua visão, o governo chinês limita a competição no território nacional, principalmente com a exigência da transferência de tecnologia de empresas estrangeiras para empresas chinesas, de forma que a condução dos negócios seja possível, no que chamam de tratamento discriminatório.

É inevitável que, nesse trecho do relatório, os autores discutam os investimentos chineses no exterior, especialmente por intermédio da Belt and Road Initiative (BRI), estratégia do Estado chinês que consiste em alcançar elevados índices de investimento em infraestrutura, em outras nações. Tal empreitada de longo prazo já estaria aumentando tanto a influência chinesa quanto sua habilidade de moldar as regras internacionais. Ainda conforme o relatório, tal movimento cria riscos diretos para a segurança dos EUA, principalmente com a construção de portos e de bases militares chinesas, em países como Paquistão e Djibuti, aumentando a capacidade naval nessas áreas. Consequentemente, eleva os desafios de acesso dos EUA, avaliação que coincide com o discurso oficial de Washington.

Em entrevista ao The Diplomat, Schell e Shirk discutem o relatório de sua força-tarefa e acrescentam alguns pontos ao debate sobre as relações sino-americanas, com destaque para a questão do domínio da tecnologia de ponta e, mais especificamente, sobre o domínio do 5G. Mesmo com a declaração sobre a necessidade de evitar a adoção de políticas excludentes, Schell considera que um distanciamento entre Washington e Pequim, na área do 5G, seria uma estratégia importante para os EUA, justamente por essa ser a tecnologia que servirá de base para todas as demais tecnologias do futuro.

Shirk segue essa mesma linha argumentativa, ao afirmar que é necessário que os dirigentes estadunidenses tenham consciência dos riscos que uma integração tecnológica pode trazer para a segurança nacional do país. Nesse sentido, a China já estaria mais avançada, preocupando-se com os impactos que o domínio de tal tecnologia traz. E tal movimento estaria afetando empresas estadunidenses: pesquisas conduzidas por diversas câmaras de comércio e por associações industriais dos EUA mostraram que seus membros dizem enfrentar crescentes barreiras para entrar no mercado chinês, especialmente aquelas empresas que desejam atuar no ramo de tecnologias de ponta.

A homogeneidade no debate sobre a China nos TTs e no governo Trump

Essas colocações e o relatório ganharam destaque no debate sobre as relações sino-americanas, para além da esfera de influência dos TTs. Nesse sentido, uma questão pontuada foi a ideia de que o equilíbrio entre competir e cooperar com a China não levaria em consideração a necessidade de respeitar a China, e uma crítica é feita, especificamente, aos argumentos de Schell e Shirk: eles estariam somente propagando o discurso de Washington, concentrando-se na defesa de uma ordem internacional liderada e focada nos interesses dos EUA, em que, aparentemente, nenhum país do chamado Sul Global deveria receber a permissão para desenvolver tecnologia de ponta.

Nesse sentido, observa-se a homogeneidade dos argumentos apresentados por alguns dos membros dos TTs analisados – o Council on Foreign Relations e o The Asia Society – e o efeito disso na qualidade do debate sobre a China nos EUA. Conforme apontado por Benjamin Creutzfeldt, com a mudança de postura de Washington, jornalistas, membros de TTs e pesquisadores passaram a denunciar todos os comportamentos chineses como uma ameaça aos EUA e passaram a sugerir que sempre souberam que a China era uma competidora desonesta, em um panorama em que a crítica à China se tornou a nova regra. Vale notar que essa não era a tendência geral na administração Obama,  quando a relação entre os EUA e a China foi caracterizada pelo conceito de “strategic reassurance”, cunhado pelo então subsecretário de Estado James Steinberg, e pelo desejo de uma “relação construtiva”. Em outros termos: haveria competição, mas não a tendência inevitável de conflito, conforme expresso na Estratégia de Segurança Nacional de 2015 – elementos evidentemente transformados na administração Trump.

Aqui, é interessante ressaltar a atuação, nesse mesmo sentido, de parte significativa de instâncias governamentais, como a U.S.-China Economic and Security Review Commission (USCC). O relatório submetido ao Congresso dos EUA em 2018 exemplifica tal processo, ao apontar que o crescimento global chinês colocou os interesses econômicos e a segurança nacional estadunidense em risco e que uma nova abordagem precisa ser implementada. Além disso, no relatório da USCC, indica-se que as ações do presidente chinês são revisionistas e que ele estaria, portanto, tentando reverter a histórica política de ascensão pacífica, ao priorizar uma política que busca alterar a ordem global, para avançar interesses e ambições chinesas.

No relatório, discute-se o 5G, mais especificamente, ressaltando como é essencial para a iniciativa Made in China 2025 e como o Estado chinês vem investindo em tecnologias de ponta. Os autores fazem fortes recomendações para que os dirigentes estadunidenses examinem com mais atenção as ameaças securitárias que a tecnologia e os serviços chineses trazem para os EUA nessa área, considerando como tal tecnologia pode ser dominada por empresas chinesas e como isso afetaria toda uma rede de comunicações para os EUA.

Debate bipartidário sobre a China fica mais conservador

O conteúdo do relatório da comissão oferece uma visão beligerante (hawkish) sobre a China, uma visão que vem tendo repercussão, em grande medida, no debate sobre China nos EUA e no próprio governo dos EUA, com crescente apoio bipartidário. Nesse sentido, os membros da comissão que já foram percebidos como “atípicos e extremamente beligerantes” já não o seriam mais, conforme apontado pela vice-presidente da USCC, Carolyn Bartholomew. Isso não significa que eles tenham mudado de visão sobre a China. O que mudou foi o debate. Nesse novo cenário, suas perspectivas já não são consideradas mais como extremistas, mas sim necessárias.

Tal movimento também é visível no Congresso estadunidense no período analisado. O ano de 2018 foi o que teve, desde o episódio da Praça Celestial, trabalhos legislativos mais assertivos em relação à China. O Congresso realizou diversas audiências sobre os riscos que a China trazia aos EUA, nos mais diversos âmbitos. Por meio de cartas de seus líderes bipartidários ao Executivo, passou a exigir respostas mais duras em relação ao país asiático, em uma tendência de apoio bipartidário às medidas tomadas pelo presidente Trump, entre 2017 e 2019.

Rick Larsen, um dos representantes democratas responsáveis pela criação do U.S.-China Working Group (USCWG), em 2005, confirmou tal tendência de apoio bipartidário à política de Trump. Segundo ele, já existiam “falcões”, no que diz respeito à China, em temas de comércio, segurança nacional e direitos humanos. Foi somente nos últimos anos, porém, que esses grupos se encontraram, perceberam suas afinidades e criaram um novo consenso no Congresso. Desse modo, uniram-se na busca por “novos caminhos” na política dos EUA para a China, os quais continuam a ser trilhados, em meio à guerra comercial bilateral.

Os TTs desempenharam um papel importante no debate feito em relação à China, nos EUA, nos últimos anos, embora, em termos gerais, tenham concentrado seus esforços em apontar o denominado autoritarismo do governo chinês e a atuação desleal da China – tanto no comércio internacional quanto na busca pela dominação das tecnologias do futuro. Assim, é preciso acompanhar de perto o papel que tais instituições e seus membros desempenharão nos anos vindouros, seja na construção do arcabouço intelectual que molda os “novos caminhos” das relações sino-americanas, seja com a provisão direta de pesquisadores para o setor público para, por exemplo, a formulação de políticas setoriais.

 

* Rúbia Marcussi Pontes é doutoranda e mestra em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP-IFCH), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pesquisadora do INCT-INEU e bolsista CAPES. E-mail: rubiamarcussi@gmail.com.

** Recebido em 30 de maio de 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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