Política Doméstica

Partido Democrata e seus descontentes

Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez, em out. 2019, no Queens, Nova York (Crédito: Peter Foley/Shutterstock)

Por Camila Feix Vidal*

Uma das lideranças atuais no movimento de redirecionamento ideológico do Partido Democrata (PD), Alexandria Ocasio-Cortez argumenta, em entrevista à rede CNN, que em nenhum outro país Joe Biden e ela estariam no mesmo partido. De fato, o PD em 2020 parece ser um grande guarda-chuva ideológico onde diferentes grupos disputam espaço.

Historicamente, houve importantes facções democratas que atuaram para repaginar o partido e redirecioná-lo no espectro ideológico. Entre 1940 e 1960, por exemplo, a Coalizão New Deal, que teve início com a Presidência de Franklin Delano Roosevelt, foi responsável por uma nova orientação eleitoral e ideológica da sigla. Logo depois, há a ascensão da Aliança Liberal-Labor entre 1960-1980, com o papel do movimento trabalhista e de sindicatos; e, posteriormente, da Coalizão New Democrats, que foi saliente no partido entre 1990-2007 e que empurra o PD para o centro-direita do espectro político.

Em 2020, entretanto, o partido parece estar-se redefinindo e buscando se aproximar das suas origens rooseveltianas, a partir de grupos e coalizões que operam tanto no âmbito interno do partido (a partir dos insiders, ou representantes eleitos), quanto do âmbito externo (outsiders, ou intense policy demanders, tais como grupos de interesse, movimentos populares, think tanks, entre outros). Assim, uma radiografia hoje do PD constataria ao menos cinco grandes grupos que atuam na legenda:

 

a) Uma coalizão New Democrats que foi dominante na década de 1990 e início dos anos 2000 caracterizada por uma agenda econômica conservadora;

Moderate Democrats Back a Privacy Bill, Minus the Privacy - The American  Prospect

Membros da New Democrat Coalition, reunidos do lado de fora do Capitólio, Washington, D.C., em 18 set. 2019 (Crédito: Michael Brochstein/SIPA USA via AP Images)

b) A Blue Dog Coalition, com posições consideradas conservadoras em outras arenas que não apenas a econômica;

c) O Democratic Freedom Caucus, com uma agenda libertária;

d) O Blue Collar Caucus, caracterizado por uma pauta trabalhista e por uma agenda keynesiana;

e) E, por fim, um grupo relativamente recente considerado “progressista”, no qual atuam o caucus Democratic Socialists of America (uma organização liderada por Bernie Sanders no PD e que teve recorde de afiliados em 2018) e o grupo de congressistas “The Squad” e Brand New Congress. Ambos defendem um congresso mais representativo em termos de raça, classe e gênero.

Esse grupo progressista é considerado o grande responsável pela suposta guinada “à esquerda” do Partido Democrata desde 2016, elegendo congressistas cujas pautas estão menos relacionadas com o establishment político estadunidense e mais à esquerda do espectro político ideológico. Esse grupo progressista vem conduzindo o PD para dar conta de pautas que representem os anseios de grande parte da população dos EUA – sejam pautas trabalhistas, ambientais, questões relacionadas à raça, ou mesmo à saúde e educação pública.

De modo mais específico, esse grupo tem como fio condutor a reação contra o trumpismo, por parte do Partido Republicano, e contra o establishment, por parte do Partido Democrata. Assim, pretende-se fazer oposição ao trumpismo por meio de um PD mais progressista e menos representativo do establishment.

 

Vários grupos atuaram dentro e fora do Partido Democrata na eleição de 2020 para eleger congressistas progressistas e para frear a reeleição de Donald Trump. Dentre eles destacam-se:

1. Sunrise Movement: Um grupo e movimento ambiental que ascende em 2017 e que defende a adoção do Green New Deal na política (objetivo de energia limpa, geração de empregos e fim de doações da indústria de combustível fóssil para campanhas políticas). Na eleição de 2020, eles atuaram em mais de 400 diferentes localidades nos EUA, alcançando mais de 8 milhões de eleitores (maioria jovens). Contaram com a ajuda de 3.200 voluntários que deram mais de 1 milhão de telefonemas. Além disso, apoiaram publicamente políticos que inserem o Green New Deal em suas agendas, como Ed Markey, Ilhan Omar e Alexandria Ocasio-Cortez, e participaram da redação da plataforma democrata no plano de 100% de energia limpa até 2035, com a qual Biden se comprometeu;

How a climate bill becomes a reality - Vox

Manifestantes do Sunrise Movement protestam no gabinete da presidente da Câmara de Representes, Nancy Pelosi (D-CA), para conseguir apoio da sigla ao Green New Deal (Crédito: Michael Brochstein/SOPA Images/LightRocket via Getty Images)

2. Black Lives Matter: Fundado em 2013, mas que em 2020 criou um movimento chamado WhatMatters2020, realizando registro de eleitores, vídeos didáticos sobre a votação, divulgação de candidatos apoiados pelo movimento (como Jamal Bowman, Cori Bush, Shaula Adams-Stafford e Jose Garza) e eventos específicos (convenções e primárias). Esse grupo também atuou na plataforma democrata, pressionando o partido a inserir a agenda do movimento. A plataforma incluiu o fim da pena de morte e da guerra às drogas, o estabelecimento de padrões nacionais para a polícia, a desmilitarização da política e um maior financiamento para escolas e serviços de saúde nas comunidades mais pobres;

3. Justice Democrats: Resultado de um comitê de ação política fundado em 2017 por antigos líderes de campanha de Bernie Sanders que usa recurso de doações para recrutar e apoiar democratas progressistas. Com agenda baseada no Green New Deal, na saúde pública universal e em reformas institucionais (ex.: financiamento de campanhas), em 2020, o Justice Democrats apoiou candidatos que se comprometeram com essa mesma agenda, tais como Cori Bush, Jamal Bowman, Ilhan Omar e Ocasio-Cortez;

4. E, por fim, Occupy Democrats: Criado em 2012, em alusão ao Occupy Wall Street, com uma agenda trabalhista que defende saúde e educação superior pública e universal, além do aumento do salário mínimo. A estratégia empregada em 2020 se baseou no trabalho de plataformas digitais. Em maio de 2020, metade dos vídeos que circulavam na Internet mencionando Trump havia sido feita por esse grupo.

Ainda que formalmente considerados outsiders do partido, é inegável que esses grupos (e outros) exerceram impacto no PD na eleição de 2020, seja no apoio a representantes eleitos, seja na agenda democrata, com a pressão para a inserção de determinados temas na Plataforma Democrata. Assim, há um movimento progressista em ascendência dentro do PD que tem nesses grupos um elo entre o partido e movimentos populares. Nesta eleição de 2020, este movimento exerceu um importante papel na construção da agenda do partido e no apoio a seus candidatos, assim como do eleitorado democrata que, pela primeira vez na história, identifica-se mais como liberal do que como moderado, ou conservador.

Gráfico – Maioria dos democratas se identifica como “liberal” pela primeira vez

Fonte: Saad (2019).

Desse modo, é importante mencionar a importância de se analisar o PD como uma organização que possui camadas (ou coalizões) que dão forma a ele em um determinado momento histórico. Partimos do pressuposto de que os “partidos” são organizações que não se definem unicamente por estruturas formais, fixas, ou hierárquicas. Ao contrário, definem-se por sua característica descentralizada, não-hierárquica, fluida, cujos limites são bastante porosos.

É uma organização composta por diferentes coalizões em diferentes níveis – o chamado partido network. Essas coalizões, assim, não se restringem a lideranças formais, dando lugar a qualquer indivíduo, ou grupo, que mantenha uma relação direta com o partido em questão e que se aproveita dele para ganhar espaço na arena política e tentar impor uma determinada agenda baseada em seus interesses e objetivos.

Essa leitura resgata e redefine o significado de partido, ao postulá-lo de maneira mais abrangente e holística, ou seja, uma aglomeração de diferentes grupos, composta tanto por insiders (líderes partidários e políticos profissionais), como por outsiders, ou intense policy demanders (grupos de interesse, ativistas e think tanks, entre outros). Ao contrário da corrente candidate centered, postula uma abordagem que visa a ser party centered, em que o objetivo é estudar “o partido”, e não os “líderes partidários”. Esses intense policy demanders (IPD), ou grupos populares de resistência, não atuam “do lado de fora” do partido, mas são os responsáveis por dar forma a ele. Fazem parte do processo de nomeação, possuem candidatos próprios, participam da construção de plataformas, financiam e divulgam o partido.

Assim, o atual embate no PD em torno dos progressistas e do establishment pode ser entendido como disputas intrapartidárias por facções, ou “parties within parties”, que penetram nos partidos sendo mecanismos para mudança. Para Daniel DiSalvo, no livro Engines of Change: Party Faction in American Politics (1868-2010), publicado em 2021 pela Oxford University Press, essas facções podem ser genericamente divididas entre dois tipos: aquelas que buscam preservação e aquelas que buscam mudança. As facções de mudança geralmente operam do lado de fora do partido, com base em uma determinada agenda e ideologia, e procuram modos de adentrar no partido para levar essa mesma agenda.

Desse modo, o que vemos no PD atualmente são essas lutas intrapartidárias entre aqueles que buscam a preservação (a ala establishment do partido) e aqueles que buscam mudança (representados pelos progressistas). A eleição de Trump em 2016 funcionou como um catalisador para a ascensão desses movimentos progressistas que vão reverberar no partido a partir de então, unidos pela reação ao trumpismo, por um lado, e pela preponderância do establishment no PD, por outro.

Por fim, o PD atual se caracteriza pela disputa entre grupos tradicionais e esse movimento progressista em uma espécie de guarda-chuva ideológico que lembra o próprio Partido Republicano e o movimento conservador nas décadas de 1950 e 1960. À época, grupos considerados outsiders (tradicionalistas, neoconservadores e libertários, em um verdadeiro “guarda-chuva ideológico”) começaram o processo de adentrar no partido a ponto de, hoje, o PR e o movimento conservador serem considerados homônimos. Resta saber se, com a eleição de Biden e com a neutralização de Trump, esses grupos progressistas vão continuar mobilizados e ascendentes no Partido Democrata.

 

* Camila Feix Vidal é professora no Departamento de Economia e Relações Internacionais (UFSC) e pesquisadora do INCT/INEU e do GEPPIC. Publicou recentemente “The Power of Ideas: The Fórum da Liberdade, 1988-2018”, na revista Contexto Internacional, v. 42, n. 1, jan-abril 2020. Contato: camilafeixvidal@gmail.com.

** Este texto é um resumo modificado da apresentação feita pela autora no Seminário do INCT-INEU “O governo Trump, as eleições de 2020 e a crise na política norte-americana”, realizado em 7 e 8 de dezembro de 2020, pelo canal do INCT-INEU no YouTube. Recebido em 14 jan. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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