Política Doméstica

O legado do senador republicano Mitch McConnell

Senador Mitch McConnell (Crédito: Max Löffler/New Republic)

Mestre na arte do filibuster de ocasião, senador se tornou bastião da agenda conservadora

Por Tatiana Teixeira*

O homem que quebrou a América. O homem que vendeu a América. O cínico. Republicano mais poderoso em Washington. Obstrucionista em chefe. Realista. Pragmático eficiente. Centralizador. Impopular. Coveiro da democracia americana. Republicano niilista. Polarizador. Estrategista impressionante. Predador político. Camaleão adepto do win-at-all-costs. Pseudoinstitucionalista. Competente veterano do fisiologismo político, que mudou de posição em temas cruciais, como aborto, questões trabalhistas e direitos civis, quantas vezes foram necessárias ao longo de sua carreira, sempre de acordo com interesses pontuais, como relata a biografia The Cynic: Political Education of Mitch McConnell, de Alec MacGillis.

São muitas as formas usadas na imprensa e entre aliados e adversários para descrever o senador Mitch McConnell (R-KY), de 78 anos, e sua trajetória no Congresso. Mais recentemente, o que passou a amarrar todas elas foi a percepção consensual de sua atuação determinante na defesa e na ampliação das pautas e dos interesses conservadores, assim como na garantia da sobrevivência política do presidente Donald Trump.

No primeiro caso, o exemplo mais evidente é a guinada no perfil dos membros da Suprema Corte e em outras instâncias do Judiciário americano; no segundo, o encerramento do processo de impeachment contra o empresário nova-iorquino e ex-apresentador de reality show. Trata-se de duas incontestáveis vitórias políticas, as quais se acumulam com muitas outras, conquistadas em meio a convicções de ocasião, malabarismo retórico, paciência, excelente capacidade de análise do cenário e uma visão adaptativa do direito e do marco constitucional. As brechas da lei são usadas no limite por McConnell.

Flexibilidade retórica e estiramento legal

Em 2016, Mitch bloqueou o caminho para processar a indicação do juiz Merrick Garland à Suprema Corte, feita pelo então presidente Barack Obama. “The most consequential thing I’ve ever done”, ele diz, em uma reflexão autocongratulatória. À época, a justificativa usada foi que o tempo até as eleições era curto: menos de dez meses. O mais justo com o povo americano – defendeu o líder da maioria republicana no Senado – seria esperar a escolha do novo ocupante da Casa Branca, porque chancelada pelas urnas. Assim, a vaga do conservador Antonin Scalia, falecido em fevereiro de 2016, foi preenchida com o nome indicado por Trump.

Essa alegação caducou em menos de quatro anos. Em seu lugar, após o anúncio do falecimento da juíza progressista Ruth Bader Ginsburg, em 18 de setembro passado, surgiu o frouxo e incompreensível argumento de que, desta vez, o cenário era completamente diferente: afinal, o partido da situação (GOP) também controla o Senado. Qual a relação entre uma coisa e outra? Nenhuma.

“Os americanos reelegeram nossa maioria em 2016 e a expandiram em 2018, porque nós nos comprometemos a trabalhar com o presidente Trump e apoiar sua agenda, em especial suas excepcionais indicações ao Judiciário federal. Mais uma vez, vamos manter nossa promessa. A indicada do presidente Trump [a juíza conservadora Amy Coney Barrett] terá uma votação no plenário do Senado dos EUA”, anunciou McConnell, ignorando críticas e queixas da oposição democrata sobre incoerência, hipocrisia, falta de ética, manobra e conveniência política.

Barrett acabou sendo aprovada no dia 27, a pouco mais de um mês das eleições, por 52 votos (todos republicanos, salvo a solitária dissidência de Susan Collins, do disputado Maine) contra 48. Pela primeira vez, em mais de 150 anos, um novo membro da mais alta corte americana é confirmado sem um único voto da oposição – neste caso, democrata. Uma pesquisa divulgada pelo YouGov logo após a morte de RBG já havia sinalizado o quanto essa questão se tornou divisiva também para o eleitorado. Para 51% dos entrevistados (84% democratas, 49% independentes e 10% republicanos), a indicação de Trump para a Suprema Corte deveria ficar para 2021, contra 42% que preferiam este ano.

Cérbero republicano

A marca da dobradinha Trump-McConnell é impressionante.

Além de três cadeiras na Suprema Corte – Barrett, a 220ª juíza federal aprovada no governo atual, Neil Gorsuch e o polêmico Brett Kavanaugh (na vaga do agora aposentado Anthony Kennedy) –, os republicanos acumulam 53 juízes de cortes de apelação federal, 162 de cortes distritais federais e dois do Tribunal do Comércio Internacional. Segundo o jornal The Washington Post, em torno de 30% das cadeiras ocupadas hoje nas circunscrições estaduais foram indicadas no governo Trump, um número superado apenas pelo presidente (democrata) Jimmy Carter.

A dedicação ao preenchimento dessas vagas não é à toa. É nesses espaços que os (ultra)conservadores vêm travando sua batalha para estabelecer (ou desfazer) jurisprudências e ganhar terreno em áreas como saúde, meio ambiente, migração, (des)regulamentação em diferentes setores, assim como em temáticas sociais, entre as quais o direito ao aborto, posse de armas e questões relativas a gênero, sexualidade e educação.

A ofensiva se deu, em parte, pela revisão de regras de procedimento, filibuster e de outras práticas tradicionais do Senado. As mudanças mais significativas aconteceram no processo de votação de Gorsuch para a Suprema Corte, em 2017. Na primeira indicação de Trump à mais alta instância jurídica dos EUA, McConnell conseguiu prescindir do mínimo necessário de 60 senadores para fazer avançar os trâmites para a votação final de confirmação em plenário. Agora, basta uma maioria simples de 51 votos. (Em 2013, os democratas adotaram essa mesma manobra para aprovar nomes indicados para vagas no Executivo e no Judiciário na gestão Obama). E, em 2019, os senadores republicanos encurtaram o tempo de discussão na Casa para a aprovação dos juízes distritais. Ou seja, até então defendido como essencial instrumento democrático por parte dos republicanos, o filibuster passou a ser demonizado por McConnell.

Eleito para o Senado pela primeira vez em 1984, Mitch McConnell é o político que há mais tempo representa o Kentucky, um estado que tem votado consistentemente nos republicanos desde a eleição presidencial de 2000. Mitch também é o mais longevo líder da legenda nesta Casa, desde 2006, superando Bob Dole. Em 2014, ano em que o GOP recuperou o controle do Senado, tornou-se líder da maioria. Desde então, tem sido sucessivamente reeleito por seus correligionários, com uma agenda claramente definida, cujo impacto será visto e sentido ainda por muitos anos na sociedade americana.

Meticuloso e dotado daquilo que os americanos chamam com admiração de convening power, ele consegue cerrar fileiras e manter a fidelização partidária (incluindo o apoio do agora não tão barulhento Tea Party) nos momentos mais cruciais. Um talento digno de nota em um sistema político que privilegia a atenção às demandas das bases locais (os grassroots movements), em detrimento das orientações da sigla. Usa seu profundo conhecimento das normas diligentemente a favor das pautas do GOP e, no governo Trump, encarna com perfeição o papel de interlocutor e obreiro de um Executivo liderado por alguém pouco afeito a ouvir as demandas e a perder tempo com as demoradas e nem sempre produtivas negociações com o Congresso.

Além da transformação do perfil do Poder Judiciário e de seu uso como chamariz eleitoral para 2016 e 2020, esse roteiro de ação inclui a revogação do Affordable Care Act (ou Obamacare) – repeal & replace, clamam os republicanos, sem terem algo para oferecer em troca à população – e a obstaculização da reforma do financiamento de campanha e do aumento dos impostos para os mais ricos.

Com McConnell, desde o governo Obama, o GOP se tornou o “Partido do Não”. Da reforma da saúde à da educação, passando pelo clima e pelo debate orçamentário, a estratégia foi minar qualquer tipo de cooperação bipartidária em qualquer área, rejeitando toda e qualquer política e medida propostas pelos democratas. O resultado buscado e esperado por Mitch era que os eleitores culpassem seus adversários pelos impasses e pela paralisia em Washington. A vitória de Donald Trump em 2016 é, segundo ele, uma evidência de que está no caminho certo. Quanto a 2020, saberemos em breve.

 

* Tatiana Teixeira é editora do OPEU, pesquisadora do INCT-INEU e do NEAI (Ippri/Unesp) e assistente editorial da revista Sul Global, do IRID (UFRJ). Contato: tatianat19@hotmail.com.

** Recebido em 30 out. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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