Internacional

A campanha de Trump pela descriminalização da homossexualidade no mundo

Richard Grenell e o presidente Donald Trump (Crédito: Twitter @richardgrenell)

Preocupação com os ‘outros distantes’, ou combate ao ‘bicho-papão’ do Irã?

Por Emerson Maione*

Quando anunciada pela primeira vez, em fevereiro de 2019, pelo embaixador norte-americano na Alemanha, Richard Grenell, no artigo “The Hanging of a Gay Man in Iran Should be a Wakeup Call” publicado no jornal Bild, tal campanha pegou muitos de surpresa. Teria surpreendido, inclusive, o presidente Donald Trump, que, ao ser perguntado por jornalistas sobre seu conteúdo e proposta, não soube responder do que se tratava. “Não sei sobre qual relatório você está falando. Nós temos muitos relatórios”, desconversou Trump. A reportagem destaca que nenhum repórter pediu para ele esclarecer se havia conversado com Grenell.

A surpresa também decorreu do fato de o governo Trump ser marcado por uma série de ações administrativas que retiram verbas e apoio – e se contam às dezenas – e prejudicam a população LGBT em diversas áreas como educação, saúde, trabalho, censo populacional anual, militar, entre outras.

A campanha parece ter sido uma iniciativa do próprio Grenell, embaixador na Alemanha desde maio de 2018. Ele é o funcionário de mais alto escalão da administração atual abertamente gay e o único embaixador também abertamente gay nomeado por Trump. A imprensa americana o descreve como um “gay conservador”. Um porta-voz da embaixada disse que a Casa Branca e o Departamento de Estado têm conhecimento e apoiam esta iniciativa, que teria “como objetivo a descriminalização do status e da atividade LGBTI nos 71 países onde é ilegal”.

Grenell teria convidado personalidades e ativistas LGBTI de diferentes países da Europa (entre eles Turquia, Lituânia, Ucrânia, Estônia e França) e dos EUA (como a Milk Foundation) para um “jantar estratégico” em 19 de fevereiro. O objetivo era planejarem a campanha pela descriminalização da homossexualidade, principalmente na África, no Oriente Médio e no Caribe.

Um dos porta-vozes do Departamento de Estado teria confirmado este encontro, mas minimizado sua importância: “Esta não é não nenhuma grande mudança política. Isto vem de tempos e é bipartidário”. O mesmo assessor também teria comentado sobre como os EUA tratariam a questão: “Eu diria que esta é uma boa oportunidade para escutar e discutir ideias sobre como os EUA podem avançar na descriminalização da homossexualidade ao redor do mundo, e esta tem sido a nossa política”. De fato, a administração Obama fez dos direitos LGBTI uma prioridade em política externa.

Irã como alvo

Foram meses de indefinições e especulações sobre esta política, até que fosse anunciada oficialmente, nas contas de Trump e do Departamento de Estado no Twitter, no fim de maio e no fim de julho, respectivamente. Considerando-se todas as aparentes contradições entre sua política interna para a população LGBTI e esta proposta de política externa, muitos analistas destacaram que o alvo principal, não declarado, da campanha seria o Irã, dada toda hostilidade dos EUA em relação a este país, com sua retirada unilateral do acordo nuclear e retórica agressiva.

Se olharmos o artigo de Grenell, certamente o Irã se encontra no cerne da campanha. O texto começa destacando que a execução de um homem gay no Irã, em janeiro de 2019 – primeiramente reportado pelo The Jerusalem Post, replicando notícia da agência de notícias estatal iraniana –, “deveria ser um despertar (wake up call) para qualquer um que apoie os direitos humanos básicos”. Ele afirma ainda que “políticos, ONU, governos democráticos, diplomatas, e as pessoas boas em todos os lugares devem falar, e alto”.

Grenell relata que, no Irã, “adolescentes gays são publicamente enforcados de modo a aterrorizar e intimidar outros/as a não saírem do armário” e compara as “ações horríveis do Irã” com a “brutalidade e selvageria regularmente demonstradas pelo ISIS”, uma referência ao grupo Estado Islâmico. O autor ressalta que ser gay é uma sentença de morte em oito países e é criminalizado em mais de 70. Segundo ele, países como Índia, Trinidad e Tobago, Angola e Belize descriminalizaram recentemente a conduta consensual do mesmo sexo, mas que ainda há muito trabalho a ser feito. E finaliza, defendendo que “membros de governos devem trabalhar mais duro para exigir que membros da ONU descriminalizem a homossexualidade”.

No contexto político norte-americano pós-11/9, com o Irã devidamente alocado no que George W. Bush chamou de “eixo do mal”, questões que envolvem a execução de gays no Irã dividem a opinião pública – e principalmente os políticos e os ativistas pelos direitos LGBT – de maneira radical. Conforme Rahul Rao, em Third World Protest: Between Home and the World, de 2010, tal divisão se daria entre dois lados.

Em um deles, estariam aqueles que adotam um discurso “salvacionista”, onde o Ocidente (supostamente moderno, democrático, tolerante e inclusivo) teria o dever moral de resgatar e salvar os homossexuais da opressão de seu próprio povo, por todos os meios disponíveis, inclusive militares. Para estes, em última instância, apenas uma mudança de regime poderia resolver a situação. Esta posição seria defendida, por exemplo, pela ala gay e lésbica do Partido Republicano, o Log Cabin Republicans, e (talvez não a defesa de uma ocupação militar) por ativistas como o britânico Peter Tatchell e sua ONG Out Rage!.

No outro lado, estariam aqueles que, sem negar a realidade de que a homossexualidade pode ser punida com sentença de morte, buscam maneiras mais negociadas e jurídicas. Esta posição foi defendida pela Human Rights Watch e por grupos de exilados mais moderados em um caso semelhante em 2005-2006.

Homonacionalismo e contradições da política doméstica

Aqui é importante destacar o conceito de homonacionalismo.

Em Terrorist Assemblages: Homonationalism in Queer Times, de 2007, Jasbir Puar analisa que há espaço para a inclusão e para o gerenciamento da homossexualidade quando esta é vantajosa para os interesses nacionais dos EUA. E, de forma importante para nosso argumento aqui, ela destaca que a “produção histórica contemporânea de uma emergente normatividade, a homonormatividade, liga o reconhecimento de sujeitos homossexuais, tanto em termos legais quanto de representação, às agendas políticas nacionais e transnacionais do imperialismo dos EUA”.

Rao destaca que, da perspectiva do Estado norte-americano, tal absorção pode permitir a cooptação dos direitos LGBTI como legitimação adicional para a “Guerra ao Terror” e o projeto de remodelar o Oriente Médio. Para ele, o uso da “perseguição islâmica aos direitos LGBTI”, desta forma, é análogo ao da retórica de que os talibãs perseguem as mulheres afegãs como justificativa para a guerra contra o Afeganistão lançada em 2001.

Neste mesmo trabalho, Rao argumenta que se pode questionar como uma administração republicana homofóbica, como a que estava no poder em 2005 (e, podemos acrescentar, como a que também está no poder em 2019), poderia ter algum interesse em usar a alegada perseguição aos LGBTs no Oriente Médio desta maneira, já que talvez pudesse desagradar importantes bases do partido. Ele oferece duas respostas.

Em primeiro lugar, a existência de um grupo como o Log Cabin Republicans, que viu, por exemplo, os enforcamentos ocorridos no Irã em 2005 como a reafirmação de seu compromisso com a chamada “Guerra ao Terror”. Isto representaria a então emergente narrativa salvacionista dentro do partido. Em segundo, o fato de o status global dos direitos LGBTI ter-se tornado institucionalizado como uma questão bipartidária dentro dos Estados Unidos. Esta foi, inclusive, conforme visto acima, uma das justificativas usadas por um dos porta-vozes do Departamento de Estado para dizer que a campanha pela descriminalização da homossexualidade no mundo não é nenhuma grande mudança política. Este é um tema incluído, desde 1991, nos Country Human Rights Reports do Departamento de Estado.

Rao conclui que, “na medida em que o governo dos EUA usa os direitos humanos instrumentalmente para atingirem seus objetivos estratégicos, os direitos LGBT são parte do jogo”.

Ele destaca, porém, que as motivações mais significativas para a narrativa gay salvacionista podem estar não nos interesses internacionais do Estado norte-americano, mas no campo da política doméstica do EUA. E argumenta que a assimilação em casa (na nação/no partido) e a não solidariedade com os outros distantes explicaria a motivação predominante por trás da produção das narrativas salvacionistas gay. Conforme Rao, na página 183 de seu livro:

 

Vale a pena lembrar que a narrativa é produzida não por funcionários do Estado, mas, principalmente, por ativistas gays de direita de ONGs. Pode-se argumentar que é justamente a incompletude de sua inclusão dentro da nação norte-americana e do Partido Republicano, mais especificamente, que fornece um poderoso incentivo para a mistura entre homossexualidade e nacionalismo. Ao oferecer uma razão “gay” para apoiar projetos nacionalistas como a “guerra ao terror”, a narrativa salvacionista gay se torna um modo de expressar um sentimento patriótico com o propósito de aumentar a assimilação na nação e no partido. O patriotismo funciona como algo que Puar chama de gesto “defensivo e normalizador”, sinalizando proximidade à nação e ao partido do qual alguém (ainda) não é um membro pleno, ao enfatizar uma distância com os outros irreconciliáveis. Por meio da narrativa gay salvacionista, a mensagem que os ativistas gays de direita parecem querer enviar para o Partido Republicano, no qual eles buscam aceitação, é: “vocês são contra terroristas; os terroristas são contra os gays; logo vocês devem estar ao lado dos gays”.

 

Direitos LGBTI como instrumento de pressão externa

A ênfase da campanha no Irã ganhou destaque pela maior parte da mídia, em geral, bem como os questionamentos sobre se os EUA iriam pressionar aliados, entre eles a Arábia Saudita, que também tem pena de morte prevista neste caso. Em uma entrevista coletiva sobre o lançamento do Relatório Anual de Direitos Humanos do Departamento de Estado, por exemplo, um jornalista perguntou sobre o fato de a redação do Relatório sobre o Irã estar diferente dos outros países – o embaixador responsável pelo Relatório havia enfatizado anteriormente que todos os países são tratados de modo equânime, sem juízo de valor, com as informações sendo verificadas com diferentes fontes – e conter a frase de que, “no Irã, o desempenho em direitos humanos permanece extremamente pobre” e que essa redação não é encontrada em nenhum outro país. E argumenta que isso parece ir além do que é feito com os demais países, onde estão colocadas apenas as violações em si. Dessa forma, o jornalista pergunta: “Por que o uso deste tipo de linguagem editorial?”.

O embaixador justifica, alegando que, no caso do Irã, isto pode ter sido o resquício de uma linguagem usada no passado. “Antigamente, redigíamos ‘permanece extremamente pobre’, e acho que tentamos nos livrar disso. Francamente, não sei por que deixamos passar nesse caso”. De maneira direta, o repórter complementa: “então isto não tem nada a ver com o fato de o Irã parecer ser o bicho-papão (boogeyman) desta administração?”. O embaixador responde: “Bem, essa é uma afirmação verdadeira (…) Em geral, tentaremos não colocar mais esta caracterização”.

Ainda sem muitos detalhes, a campanha é genérica e não especifica quais ações seriam tomadas, nem contra quais países. Conforme destacado por alguns analistas, o lançamento da campanha parece ser uma tentativa de aproximar posições com relação ao Irã entre os EUA e a Europa, no que diz respeito ao fim do acordo nuclear e às sanções, uma vez que europeus tendem a discordar nestes pontos fundamentais para a política externa norte-americana. Uma iniciativa sobre direitos humanos é provável de ter o apoio europeu, pode ser um ponto em comum em meio a tantas discordâncias e pode ser uma forma de aumentar as críticas destes às violações de direitos humanos do Irã.

Conforme analisado por Puar em Postscript: Homonationalism in Trump Times, o presidente americano continuará a não fazer menos do que já se espera dele: ameaçar tirar certas proteções para a população LGBTI nos EUA em um momento (ou retirar algumas delas, como efetivamente já o fez) e, no outro, exaltar estas mesmas proteções de modo a atacar outros países, religiões e raças. A exaltação da superioridade civilizacional do Ocidente, desta vez revestida também de um excepcionalismo sexual LGBTI, colocam campanhas como esta sempre sob suspeita. Afinal, como destacou Rahul Rao, no texto “On ‘Gay Conditionality’: Imperial Power and Queer Liberation”, de 2012, em relação aos planos da administração Obama (que também pode servir para a atual campanha de Trump) de fazer “os direitos gays, direitos humanos”:

 

Qual conforto os queers iranianos supostamente podem ter diante da defesa apaixonada dos seus direitos sexuais feita por [Hillary] Clinton, quando o próprio sucesso de sua defesa é baseada em uma relação de poder que permite ao país que ela representa sistematicamente debilitar o país ao qual eles pertencem? Pode ser que as atitudes de alguém perante os recentes pronunciamentos da administração Obama sobre os direitos dos gays sejam moldadas menos por se esse alguém está do lado certo da história [como destacou Clinton em seu discurso] do que por se este/a se encontra do lado errado do império.

 

* Emerson Maione é professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID-UFRJ).

** Este Informe é uma versão reduzida do paper preparado pelo autor para a Conferência Brasileira de Estudos Políticos sobre os Estados Unidos, promovida pelo INCT-INEU e realizada de 25 a 28 de novembro de 2019, em São Paulo. Recebido em 18 dez. 2019.

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