Ilicitudes à procura de excludente na morte de Suleimani

Por Solange Reis*

 

As consequências do atentado americano contra o general iraniano, Qasem Suleimani, são difíceis de se prever. Seja quanto ao comportamento do Irã ou de seus aliados, aos efeitos geopolíticos no Oriente Médio ou às eleições americanas. Há, porém, um efeito perceptível. Ao agir sem nenhum amparo legal, o presidente Donald Trump comprometeu a credibilidade dos Estados Unidos.

Desde a ordem para o assassinato à ameaça de bombardear patrimônios culturais no Irã, quase tudo feito ou dito por Trump em relação ao acontecimento infringiu uma lei. Foram feridos o direito internacional, o estatuto da ONU, a Constituição, a soberania do Iraque, as convenções de guerra e mais.

É preciso reconhecer que o republicano não agiu sozinho. Não se trata de um lunático que sequestrou a prudência de seus assessores, obrigando-os a vê-lo colocar o país à beira de mais uma guerra com potencial para mundialização. A responsabilidade pelos últimos acontecimentos cai também sobre um aparato cujo interesse é azeitar a máquina incessante de guerra.

Ataque preemptivo ou terrorista?

Suleimani morreu em decorrência de mísseis disparados na saída do aeroporto de Bagdá, capital do Iraque, pouco após a meia-noite do dia 3 de janeiro. Mais do que extrajudicial, significou um ato de terrorismo.

Antes de tudo, o alvo era o oficial de mais alta patente de um governo estrangeiro contra o qual os Estados Unidos não estão em guerra. Suleimani comandava o Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica (IRGC, na sigla em inglês), principal ala militar do Irã. Sob sua direção também estava a Força Quds, braço operacional do IRGC no exterior.

Em segundo lugar, Suleimani foi assassinado no território de um terceiro país, onde coordenava ações terrestres contra o Estado Islâmico e treinava paramilitares xiitas. Apesar de suas táticas controversas e violentas, o militar atuava sob os auspícios do governo iraquiano. No dia de sua morte, ele se encontraria com o primeiro-ministro, Adel Abdul Mahdi. Portanto, ao matá-lo em território iraquiano sem autorização dos donos da casa, os Estados Unidos também violaram a soberania do Iraque.

Atropelando a Constituição

Matar Suleimani foi proposto a Trump por seus assessores militares como a última opção possível de reações à tentativa de invasão da embaixada americana por milícias iraquianas pró-Irã. Trump, no entanto, preferiu seguir o conselho do secretário de Estado, Mike Pompeo, que já havia defendido a eliminação do general em outras ocasiões.

Assassinar o general de outro Estado em tempos de paz significa uma declaração de guerra, ou assim poderá ser interpretado pela parte atacada. Façamos o exercício de imaginar o inverso, o Irã matar a mais alta autoridade militar americana em solo canadense. Como reagiriam os Estados Unidos e seus aliados?

Pela Constituição dos Estados Unidos, o presidente atua como comandante-em-chefe, mas a decisão de declarar guerra cabe ao Congresso. Ao contrário de Israel, um aliado nada imparcial na questão, o Legislativo em Washington não foi sequer previamente consultado sobre o assassinato.

A lei conhecida como Poderes de Guerra (War Powers Act) de 1973 determina que o presidente informe ao Congresso, em até 48 horas, sobre qualquer resposta militar a uma ameaça iminente. A ação militar em questão não pode durar mais do que 60 dias, prorrogáveis por mais 30.

De fato, a Casa Branca enviou uma carta ao Congresso menos de dois dias após o atentado, explicando as supostas ameaças que o general planejava. O documento contém informações sigilosas que foram vetadas ao público, o que tampouco é usual nesses casos. Para a líder da maioria democrata na Câmara, Nancy Pelosi, a carta levanta mais dúvidas do que explicações sobre os motivos, a forma e o momento do lançamento dos mísseis.

Faltam motivos

Por meio do Twitter do presidente e de documentos oficiais, o governo justificou o ataque como um ato preemptivo, ou seja, para prevenir possíveis hostilidades futuras. Tudo contraditório e vago, sem especificar que tipo de ameaça Suleimani representava na atualidade, mesmo depois de vinte anos no comando do IRGC, e de interação hostil e cooperativa ao mesmo tempo com o governo americano. Enquanto os Estados Unidos combatiam o Estado Islâmico por via aérea, Suleimani era o cabeça das operações em solo contra aquele grupo terrorista.

Posteriormente, Trump afirmou que o risco oriundo de Suleimani era iminente. Passados outros dias, afirmou que o general planejava explodir a embaixada americana em Bagdá. Maior do que o Vaticano, a embaixada é um complexo com 21 edifícios e capacidade para milhares de pessoas entre diplomatas, militares, iraquianos e terceirizados de segurança. Seria necessária uma megaoperação militar do Irã para alcançar tamanho objetivo, sem que o país fosse logo contra-atacado pelos Estados Unidos e arrastado para uma guerra da qual dificilmente sairia vitorioso.

O secretário de Defesa, Mark Sper, desmentiu o presidente. Não houve nenhuma informação dos serviços de inteligência a respeito de um ataque contra a embaixada pelo Irã. “O que o presidente disse foi que provavelmente poderia haver ataques adicionais contra as embaixadas”, emendou. 

Licença para matar

Alguns membros do governo e apoiadores de Trump dizem que o presidente tinha autorização para qualquer coisa em solo iraquiano. Esta percepção baseia-se na Autorização para Uso de Força Militar (AUMF) de 2002, que criou a base legal para a invasão do Iraque e subsequentes operações dos Estados Unidos no país. 

O problema com esse argumento é que a AUMF autoriza o uso da força contra o Iraque, não contra o Irã. Se o governo quiser atacar o Irã nos limites da lei, o Congresso deve aprovar uma AUMF específica. A esperança de encaixar o Irã na AUFM de 2001, contra o terrorismo, ou na de 2002, contra o Iraque, talvez explique a inclusão recente do IRGC na lista de organizações terroristas. A medida foi tomada pela Casa Branca, em agosto deste ano, num gesto sem precedente histórico contra as Forças Armadas de um país soberano.

Fora da lei internacional

Trump não abusou de sua autoridade apenas no âmbito doméstico. Segundo o estatuto da ONU, um país deve agir militarmente somente quando atacado. Este é o princípio inovador para a paz após 1945, quando a organização foi criada.

Eram outros tempos, quando ainda não se falava em exepcionalismo americano, guerras preemptivas, direito de proteger e outros conceitos que ganharam força no pós-Guerra Fria. A realidade da política internacional mudou a tal ponto, que as convenções internacionais já parecem ser anacrônicas.

Crimes de guerra

A respeito do patrimônio cultural, Trump tuitou que os alvos seriam atingidos “muito rápido e muito duro”, caso o Irã vingasse o assassinato de Suleimani e de outros naquela noite. Após o ministro das Relações Exteriores iraniano, Mohammad Javad Zarif, retrucar que a ofensiva americana havia sido um ato de guerra, autoridades do governo americano desmentiram seu próprio presidente. Mike Pompeo e Mark Sper confirmaram que agiriam somente dentro da lei de conflitos armados. Referiam-se à Convenção de Haia de 1954, que proíbe qualquer ato de hostilidade contra a propriedade cultural. Em contraste com o desprezo pela cultura e as normas internacionais por parte de Trump, o Manual da Lei de Guerra do Departamento de Defesa menciona 627 vezes a expressão propriedade cultural, tamanho o receio de acusações de crimes de guerra.

Nada disso, porém, interrompeu a metralhadora oratória do republicano. “Eles estão autorizados a matar o nosso povo. Eles podem torturar e mutilar o nosso povo. (…) E não podemos tocar nos seus locais culturais? Não funciona dessa maneira”, insistiu.

Outras violações

Houve também denúncias de que 200 pessoas, incluindo 60 cidadãos americanos e canadenses de origem iraniana, teriam sido detidos na fronteira com o Canadá para verificação reforçada. Alguns ficaram detidos por mais de dez horas, e todos tiveram que responder a perguntas sobre opinião política.

O órgão de Proteção de Fronteiras e Alfândega dos Estados Unidos (US Customs and Border Protection, CBP) nega o ocorrido e diz que não houve nenhuma diretriz do tipo. A demora no atendimento teria sido em função do número reduzido de funcionários e do alto volume de turistas nas festas de fim de ano. Cidadãos americanos não podem ser impedidos de entrar no país pelo CBP e não precisam responder sobre política, raça, política, religião e outros temas de cunho pessoal.

Adeus às normas

Trump mandou matar o general de um país contra o qual os Estados Unidos não estão em guerra, sem que houvesse qualquer motivo de segurança nacional. Nada disso tinha acontecido antes na história americana. O assassinato não foi cometido pela CIA, a agência de operações clandestinas cujas ações não passam pelo escrutínio do Legislativo. Foi direta e assumidamente executado pelo Pentágono, a instituição militar formal que é admirada pela opinião pública.

É difícil saber o que acontecerá daqui por diante quanto às relações EUA-Irã e à tensão no Oriente Médio. Tampouco como o episódio afetará negativamente a imagem e, portanto, a reeleição de Trump. Mas o precedente aberto pelo assassinato de Suleimani põe em dúvida a credibilidade dos Estados Unidos como ator de um sistema internacional baseado em normas e instituições.

 

*Doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). 

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