Estudos e Análises

Estudos sobre os EUA no Brasil: desafios de um campo em formação

Crédito da montagem: Equipe OPEU

Estudos e Análises de Conjuntura, n. 16, Dezembro 2019

* O texto a seguir foi apresentado pelo professor e cientista político Sebastião Velasco e Cruz (Unicamp/INCT-INEU) na cerimônia de encerramento da Conferência Nacional de Estudos Políticos sobre os Estados Unidos, promovida pelo INCT-INEU e que aconteceu entre 25 e 28 de novembro de 2019, na PUC-SP.

 

Para Reginaldo Moraes. In Memorian

Intrigante paradoxo

Permitam-me começar esta conferência de forma não convencional. Não sei se inovo, mas, salvo engano de minha parte, não é comum iniciar um discurso pedindo a atenção dos ouvintes ao enunciado de um texto escrito anos atrás. Mas é o que vou fazer agora.

 

“Há qualquer coisa de paradoxal nas relações culturais entre o Brasil e os Estados Unidos. De um lado, é intensa a exposição do público nacional às manifestações da cultura norte-americana, em suas mais variadas formas: música, cinema, literatura, esporte… Vinda até nós por canais de todo tipo – livros, jornais, revistas, rádio e televisão, Internet –, a massa de informações que temos sobre a economia e a política dos Estados Unidos, seus modos de vida, os ritos de seu sistema judiciário é alimentada também pela interação direta que muitos brasileiros mantêm, regular ou esporadicamente, com aquele país no exercício de atividades econômicas, acadêmicas, ou como turistas… E não devemos esquecer o contingente, bastante expressivo, de brasileiros que residem ou residiram naquele país como emigrantes.

Por outro lado, é notável entre nós a carência de estudos sérios sobre os Estados Unidos. Alguns jornais mantêm correspondentes em Nova York ou Washington, mas o espaço que abrem para suas matérias é reduzido. Poucos artigos de fundo, poucos livros, escasso debate. Sabemos muitas coisas sobre o grande país do Norte, mas os elementos de informação de que dispomos não se organizam em conjuntos estruturados e significativos. No lugar deles o que encontramos no mais das vezes são estereótipos, positivos ou negativos. Embora nos pareça familiar, conhecemos muito pouco os Estados Unidos”.

 

A escolha desse texto para a abertura da reflexão que farei aqui se justifica não apenas pelo diagnóstico da situação, mas pelo adjetivo usado para qualificá-la.

Com efeito, parece de todo paradoxal que, historicamente, não tenhamos realizado um esforço maior para decifrar uma sociedade e um sistema político de tamanha importância para o Brasil e para a vida de cada um de nós. Os paradoxos, porém, não residem na realidade das coisas, mas na relação que mantemos, como sujeitos cognoscentes, com elas. Quando os olhamos de perto eles se elucidam, e nesse momento mesmo deixam de ser paradoxos.

Começamos a fazer isso no próprio projeto que deu origem ao INCT-INEU, de onde extraí o texto citado. Com efeito, em suas primeiras páginas encontramos essa hipótese interpretativa.

 

“Paradoxo? Não exatamente. A irreflexão se explica, em grande medida pelo sentimento de proximidade que a sobrecarga de informações nos provoca. Consumidor obrigado, e quase sempre insaciável, de sons e imagens vindas de lá, o cidadão comum corre o risco de reter mais facilmente na memória episódios da história norte-americana do que fatos marcantes do nosso passado. A sensação de familiaridade é tão forte que o espanto não se produz, a dúvida, que é a mãe do conhecimento, não chega a brotar.

Em outro plano, esse (des)conhecimento particular tem a ver com a acentuada assimetria que existe entre as duas sociedades. Contamos com muitas informações sobre os Estados Unidos, mas não as que escolhemos, pois em geral nos limitamos ao papel de receptores mais ou menos passivos. Idêntica postura molda nossa percepção do lugar ocupado por esse país no cenário internacional. Observadores distantes dos sucessos (muitos) e insucessos (alguns) que marcam historicamente a trajetória dos Estados Unidos no grande palco da política mundial, a imagem que fazemos de seu papel nesse campo é alimentada no mais das vezes por informações e argumentos produzidos nos vastos e densos circuitos de comunicação (jornalística e acadêmica) que constituem um dos trunfos desse país no relacionamento com seus pares.

E não é só isso: em um movimento especular, com muita frequência usamos os Estados Unidos como modelo, espelho no qual nos miramos – para identificar nossas características próprias, medir nossas insuficiências, e definir a figura do ser coletivo em que gostaríamos de nos transformar”.

 

O projeto do INCT-INEU é de 2008 e, nesta parte, ele incorporou fragmentos de um texto escrito alguns anos antes. Não importa, de 2008 a 2019 são decorridos mais de dez anos. O trabalho realizado nesse já longo período não desmente a caracterização feita naquela época, nem a hipótese aventada para explicá-la. Mas nos dá elementos para qualificá-las.

É o que começarei a fazer nesta conferência.

 

  1. Os Estados Unidos como espelho e objeto de conhecimento.

A primeira qualificação a fazer diz respeito à maneira como as relações culturais Brasil-EUA são descritas nos trechos citados. É verdade que somos cotidianamente bombardeados por um fluxo de informações originadas naquele país, cujo volume ultrapassa de muito nossa capacidade de assimilação consciente e ponderada. Agora, nem sempre foi assim, e nunca foi inteiramente passiva a relação entre os destinatários e os emissores das referidas mensagens.

Evidência prematura disso encontramos na experiência vivida por Hipólito José da Costa, primeiro de uma longa lista de viajantes brasileiros, mais ou menos ilustres, que deixaram para a posteridade suas impressões sobre a República do Norte. Aliás, devemos a um deles – Alceu de Amoroso Lima, sobre quem ainda direi uma palavra – a publicação, em 1954, do Diário da Minha Viagem Para a Filadélfia, manuscrito até então perdido na biblioteca Eborense, em Lisboa. Formado em direito e filosofia em Coimbra, como tantos filhos da elite colonial, Hipólito da Costa recebeu do governo português, em 1798, a incumbência de viajar aos Estados Unidos para observar métodos de cultivo e colher amostras de plantas. Contudo, observador atilado e metódico, o viajante, então com 24 anos, registrou suas impressões em um texto seco, mas pitoresco, rico em informações sobre a paisagem física e social da jovem República. As mudas que Hipólito da Costa coletou não resistiram à travessia do Atlântico, e seus comentários permaneceram no olvido por mais de um século e meio. No entanto, a experiência americana marcou a visão política do fundador do Correio Braziliense, jornal editado em Londres entre 1808 e 1822, que exerceu enorme influência no alvorecer do Brasil como país independente.

Mas o aparecimento dos Estados Unidos no cenário internacional teve efeitos mais antigos entre nós. É consabida a atração exercida pela Revolução Americana sobre a conjuração mineira, de 1789. Menos conhecidas são as fontes em que se abeberavam os inconfidentes para formar a imagem idealizada do país que os inspirava. Uma delas era o livro Recueil des Loix Constitutives des États-Unis de l’Amérique, publicado em Paris, em 1778, disponível em tradução para o português em obra coordenada por Kenneth Maxwell, que reúne ainda vários estudos sobre o contexto político e intelectual do movimento. Mas não era a única. Para ficar em um exemplo extraída do ensaio desse historiador, nas bibliotecas dos conspiradores foram apreendidos, entre outros textos subversivos, a Histoire de l’Amérique, de Robertson, e as Observations sur le gouvernement des États-Unis de l’Amérique, de Mably[1].

Por si só, a difusão, em francês, de obras como essas diz algo sobre o impacto global da Revolução Americana. Desnecessário insistir no assunto. Mas não parece demais assinalar que, no segundo decênio do século XVIII, quando a crise do sistema atlântico se traduz nas lutas de independência na América Ibérica, o modelo da República americana disputava com a monarquia constitucional – de corte inglês, ou francês – a preferência das elites dos países novos.

O Brasil não ficou alheio a esse embate. A despeito da preponderância da fórmula monárquica, em nome da qual o Estado impôs seu controle sobre o imenso território do antigo Império português na América, o exemplo dos Estados Unidos se fazia presente no debate sobre questões relativas ao grau de autonomia de suas províncias[2].

Como se sabe, a controvérsia arrefece depois de promulgada, em 1840, a Lei de Interpretação do Ato Adicional, que consagra a vitória do Partido Conservador sobre seus adversários liberais, e estabelece as bases da forte centralização característica do II Império.

Arrefece – convém frisar –, mas não morre. Ela reapareceria 20 anos depois na crítica de Tavares Bastos ao Visconde de Uruguai, um dos principais líderes intelectuais dos Saquaremas, e logo a seguir na propaganda republicana.

Os estudos sobre essa polêmica salientam o papel desempenhado pela referência aos Estados Unidos na retórica dos adversários. As virtudes da sociedade americana não são questionadas – pelo contrário. O reconhecimento destas constitui o terreno comum em que os contendores se encontram para travar o combate. Mas enquanto Tavares Bastos, o liberal, propõe a aplicação das soluções americanas aos problemas brasileiros, denunciando a centralização imperial e advogando a autonomia das províncias, Uruguai insiste burkianamente nas condições que presidiram o lento desenvolvimento das instituições representativas na Inglaterra – por extensão, nos Estados Unidos – e nas consequências deletérias das tentativas cegas de mimetizá-las, em uma realidade tão diferente quanto a do Brasil da época[3].

Distintos pero iguales. Na elaboração da imagem comum que esposavam dos Estados Unidos – um construto social, na definição certeira de Natalia Bas – tanto Tavares Bastos quanto Uruguai se valiam de obras francesas: de Alexis de Tocqueville, em primeiro lugar, mas também, de Laboullaye e de Michel Chevalier, autores hoje tidos como menores, porém de enorme prestígio em seu tempo[4].

Compulsadas com atenção as notas de rodapé de seus livros, porém, é possível constatar que não apenas elas. Na formulação dos respectivos argumentos, ambos mobilizavam materiais primários – textos legais, atos e relatórios administrativos – e obras de referências americanas, devidamente citadas no original. Entre elas, com grande destaque, os Commentaries on the Constitution of the United States, tratado em três volumes publicado em 1833 por Joseph Story, juiz da Suprema Corte e precursor dos estudos jurídicos na Universidade de Harvard[5].

Não por acaso, essa obra foi adquirida, junto com um exemplar de A Democracia na América, de Tocqueville, pelo jovem Rui Barbosa, quando cursava o segundo ano da Faculdade de Direito, em Recife[6]. Eram talvez os primeiros de uma imensa biblioteca “americana” que o publicista formou – e devorou – ao longo de sua carreira[7].

Uruguai, Tavares Bastos, Rui Barbosa – três homens públicos de vulto, três representantes insignes da cultura jurídico-política brasileira de seu tempo. Sua formação – como a de seus pares — não se fez em sala de aula – conhecida a precariedade do ensino jurídico ministrado nas Faculdades de Direito de São Paulo e do Recife, criadas e estritamente regulamentadas pelo Estado, as únicas existentes no país até a reforma de Benjamin Constant, no início da República. Como os trabalhos pioneiros de Venancio Filho e Sergio Adorno mostram sobejamente, a educação dos bacharéis mais promissores, futuros dirigentes do país, não se dava entre os muros das escolas, mas lá fora, na rede de clubes de debates, jornais e sociedades estudantis, onde exercitavam seus dotes oratórios, testavam seus talentos poéticos e se reconheciam mutuamente[8].

Para o argumento esboçado aqui, o importante é frisar que, por canais mais ou menos institucionalizados – não importa – a camada ilustrada da elite política brasileira contava, na segunda metade do século XIX, com meios para se informar sobre a sociedade americana, e que muitos de seus membros faziam bom uso desses recursos.

O observador desavisado se dá conta disso ao folhear o livro Cartas da Inglaterra, de Rui, ou o Federalismo e a República Brasileira, de Amaro Cavalcanti. E acaba de se convencer do fato ao descobrir que o tratado de Story foi publicado no Brasil em 1894, traduzido e adaptado por Theophilo Ribeiro, Lente da Faculdade Livre de Direito de Minas Gerais[9].

O autodidatismo de seus membros mais cultivados não era, porém, o único canal de acesso a informações e análises sobre os Estados Unidos disponível para a elite política brasileira na época. Tão ou mais importante quanto esse era a atividade regular de profissionais que abasteciam regularmente os governantes, por dever de ofício, com ambas. Refiro-me, evidentemente, aos diplomatas.

Tome-se, a título de exemplo, o caso de Miguel Maria Lisboa. Tendo ingressado na carreira, aos 18 anos, como adido da legação brasileira em Londres, Lisboa era um diplomata provado quando assumiu a chefia da Legação Brasileira em Washington, em dezembro de 1859. A essa altura, os Estados Unidos já estavam mergulhados na crise política que culminaria na Guerra de Secessão. Nos três anos em que desempenhou aquela função, Lisboa municiou o governo brasileiro com informações precisas sobre a evolução dos acontecimentos e análises premonitórias sobre suas implicações mais amplas. Essa correspondência já foi apontada como fonte de inspiração da virada na política imperial relativa à escravidão, cujo primeiro sinal é a Lei do Ventre Livre, de 1872[10]. Aqui, entretanto, o ponto a salientar é o domínio que o referido diplomata tinha dos fatos da política americana e a acuidade excepcional de sua análise. A citação que se segue, de um longo ofício datado de 13 de dezembro de 1860, ilustra com força essa afirmativa:

 

“… se o Sul se sair bem da presente luta, desejará sem dúvida fortificar-se para o futuro, e um dos meios de fortificar-se é adquirir … novos territórios em que possa estabelecer a escravidão …Isso é um mal contra o qual devemos precaver-nos… mas esse mal é distante e infinitamente menor que uma propaganda de emancipação protegida simultaneamente pela Europa e pelo norte dos Estados Unidos, ou do que uma guerra civil que abruptamente assegurava a liberdade a perto de quatro milhões de escravos norte-americanos, deixando-nos sem mais aliado[s] na luta entre o abolicionismo e a instituição de que atualmente depende e por algum tempo ainda dependerá nossa riqueza” (p. 420/1)

 “Uma guerra civil seccional nos Estados Unidos será … um passo de gigante para a total extinção da escravidão africana nos países onde ela existe” (423)[11]

 

O compromisso explícito de Miguel Maria Lisboa com a defesa da instituição nefanda choca a sensibilidade do leitor contemporâneo. Mas não há como sufocar a surpresa diante da perspicácia de sua análise.

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O tempo de uma conferência é escasso para a extensão da matéria, mas não poderia encerrar esse tópico sem dizer uma palavra rápida sobre duas outras categorias de agentes com papel importante na produção de imagens dos Estados Unidos no Brasil: jornalistas e viajantes – em particular, escritores consagrados, com estada mais ou menos longas no país.

Antes, porém, uma advertência. É preciso não reificar os referidos papéis. Nas condições do Brasil na dobra do século XX, eles muitas vezes se confundiam. Como no caso de Oliveira Lima, de quem já se disse ter sido o primeiro americanista brasileiro. Tendo permanecido nos Estados Unidos entre 1896 e 1899, como 1º Secretário da Legação Brasileira em Washington, Oliveira Lima atuou como correspondente nesse país da Revista Brazileira e do Jornal do Commercio, publicações para as quais escreveu os artigos que serviriam de base para seu livro Nos Estados Unidos: Impressões Políticas e Sociais, obra abrangente, que expressa o conhecimento profundo adquirido pelo autor e sua não menor simpatia pelo país em que vivia[12].

Caso mais puro – e mais curioso – é o de José Carlos Ribeiro, proprietário do Jornal do Commercio, de quem Oliveira Lima recebera o convite para escrever sobre os Estados Unidos. Com início de carreira brilhante – foi autor aos 19 anos de obra de Direito Constitucional muito bem acolhida pelo público e pela crítica (teve dez edições até 1889) – José Carlos Ribeiro se mudou para Nova Iorque em circunstâncias obscuras em 1867, depois de ter servido como funcionário do Ministério da Fazenda, em dois gabinetes do Império. Cedo contratado como correspondente pelo Jornal do Commercio, Ribeiro inscreveu seu nome na história do jornalismo brasileiro como criador do periódico mensal ilustrado Novo Mundo, editado em Nova York, que chegou a vender oito mil exemplares no Brasil, para onde era enviado de navio[13]. O Novo Mundo contava com colaboradores brasileiros ilustres, mas sua proposta era outra. Ela era apresentada assim a potenciais anunciantes:

 

“Esta publicação fornece aos países e colônias onde o  e o espanhol são falados  um resumo mais completo do curso dos eventos, particularmente o progresso político e industrial dos Estados Unidos, …. tendo em vista o objetivo de estreitar os vínculos existentes de caráter político, comercial e amigável entre os vários países do hemisfério ocidental”[14].

 

Muitos anos depois, proclamada a República, José Carlos Ribeiro confirmou seu lugar de destaque na história do jornalismo pátrio ao adquirir o Jornal do Commercio e fazer dele um dos arautos da política de aliança com os Estados Unidos empreendida por seu amigo Rio Branco, que escrevia regularmente em suas páginas, sob pseudônimo. Política cujos excessos foram duramente atacados por Oliveira Lima, nos artigos reunidos em seu livro Pan-Americanismo[15].

Mas, apesar do esforço de tantos, o Brasil continuou por um bom tempo ainda na esfera de influência cultural europeia[16]. Foi depois da Primeira Guerra Mundial, sobretudo nas décadas de 1920 e 1930, que os Estados Unidos invadiram o imaginário do brasileiro urbano, com a generalização do automóvel e o apelo irresistível da cultura de massa. Data dessa época também a transformação estrutural da imprensa brasileira, dominada agora por grandes empresas dotadas de modernos equipamentos e abastecidas  por agências internacionais de notícias, entre as quais as duas grandes americanas, a United Press e a Associated Press, rapidamente passaram a dominar o mercado[17].

É nessa época também que o mercado editorial se amplia e se consolida no Brasil, permitindo a emergência de uma categoria nova e charmosa de agentes sociais: os escritores profissionais, os mais bem-sucedidos entre os quais capazes de se manter confortavelmente dos direitos sobre a venda de seus livros.

Três deles viveram algum tempo nos Estados Unidos e perpetuaram em textos primorosos suas impressões sobre esse país: Monteiro Lobato, Érico Veríssimo e Alceu de Amoroso Lima.

O papel de Lobato na popularização de elementos da sociedade e cultura americanas é conhecido. Basta agregar que seu livro América, é apenas um dos meios de que se valeu para esse fim.

Gato Preto em Campo de Neve, de Veríssimo, é um relato delicioso, em que o autor exibe a cada página a acuidade de sua observação e a fina ironia de seu espírito.

A Realidade Americana, de Alceu de Amoroso Lima, é um artefato de outra natureza. Escrito, em 1954, “sem notas” e “sem cifras”, quando de seu regresso ao Brasil, depois de residir dois anos em Washington na condição de Diretor Cultural da União Pan-Americana, órgão da OEA, na beleza de sua prosa o livro oferece uma interpretação abrangente dos Estados Unidos – em suas múltiplas dimensões: “A Paisagem”, “O Homem”, “A Educação”, “A Economia”, “A Política”, “A Cultura”, “A Religião” – sob o prisma do humanismo cristão característico da obra madura do grande pensador católico.

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O apanhado que acabo de apresentar é muito ligeiro – não pude sequer mencionar nomes célebres como o de Joaquim Nabuco, de Salvador de Mendonça, de Eduardo Prado, ou de Vianna Moog, nem muito menos a figura cinematográfica e a meu ver injustiçada de Olympio Guilherme, autor de uma obra surpreendente, em quatro volumes, publicada em 1934, sobre a história, a economia, a política e a sociedade dos Estados Unidos[18]. Não obstante, ele deixa claro que o nosso problema é um pouco mais complexo do que poderíamos imaginar.

Com efeito, houve no passado um esforço considerável de apropriação, e se formou no Brasil um estoque não desprezível de conhecimentos sobre os Estados Unidos. Nesse sentido, a generalização que nos serviu de ponto de partida precisa ser corrigida.

Mas não abandonada. Quando combinamos a fotografia que ela fornece com a rápida reconstituição histórica feita aqui surge a questão: dados esses antecedentes, como entender que, ao se constituírem como disciplinas acadêmicas, a História e as Ciências Sociais no Brasil tenham se mantido por tanto tempo a distância deste objeto?

Essa pergunta me leva ao segundo eixo desta conferência.

 

  1. A institucionalização dos Estudos Americanos nos Estados Unidos e sua internacionalização no Pós-Guerra.

Com efeito, a impressão de nos defrontarmos com uma situação paradoxal fica reforçada quando desviamos o nosso olhar de nós mesmos e procuramos ver o que se passa à nossa volta, i. e, no terreno dos estudos sobre os Estados Unidos em outros países.

Nesse ponto, é preciso fazer uma observação preliminar. Nosso Instituto escolheu designar seu objeto e sua razão de ser mediante um termo, cujo referente é uma unidade política bem definida no sistema internacional: os Estados Unidos. Quando buscamos nos situar comparativamente, porém, percebemos que estamos inseridos em um universo que se autoidentifica pela rubrica Estudos Americanos.

A diferença não é inocente.

A América é um conceito que não remete nem a uma unidade política, com seu território claramente demarcado, nem a um espaço geográfico definido. Desde os tempos coloniais, a América designa uma ideia, um lugar simbólico que se define em contraposição ao Velho Continente – onde vige a desigualdade, a tirania, a guerra e a opressão – como terra de liberdade e da prosperidade, “asilo para a humanidade” no dizer de Thomas Paine, um dos primeiros e mais eloquentes propagadores do mito.

Não por coincidência, no único artigo que consegui encontrar pesquisando no Google a rubrica “American Studies in Brasil” – uma nota de pesquisa de cinco páginas, não mais –, fazia-se referência expressa às objeções levantadas contra o termo por um colega brasileiro, o historiador Marcos Pamplona, em seminário internacional realizado há cerca de 40 anos[19].

Podemos imaginar a razão de seu desconforto e a direção de seus argumentos. Inútil, o termo consagrado no mundo é este: “Estudos Americanos”.

A conformação desse campo é tema instigante de pesquisa, praticamente inexplorado entre nós. Mas um rápido exame da vasta literatura a seu respeito autoriza algumas observações pontuais.

  1. Ele emerge nos Estados Unidos na década de 1930, impulsionado por historiadores, como Vernon Louis Parrington – autor de livro consagrado quando de sua publicação e depois condenado ao esquecimento, Main Currents in American Thought, obra em três volumes que reconstitui a evolução da literatura americana como aspecto do processo mais amplo da história econômica e social dos Estados Unidos. Tendo vivido toda sua vida como professor de literatura em universidades de segunda linha, Parrington era um liberal de esquerda, um progressive – para evitar a conotação difusa que o termo progressista tem em nossa linguagem corrente – e seu livro, cujo primeiro volume apareceu em 1927, teve grande impacto e exerceu forte influência no meio cultural americano na década de 1930. No decênio seguinte, seu prestígio se esvai sob peso do ataque impiedoso dos “novos críticos”, que o acusavam de reducionismo sociológico e insensibilidade para os aspectos formais, propriamente estéticos, das obras analisadas[20]. Mas não apenas por isso, vitimado também pela mudança radical do quadro econômico e político no período – entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial e sua entronização como potência líder do Mundo Livre na Guerra Fria que se seguiu.
  2. Seja como for, o programa esboçado na obra de Parrignton partilhava com a orientação predominante na segunda fase dos Estudos Americanos algumas características básicas. A saber:
  3. A ideia da América como uma realidade homogêna;
  4. Uma visão holística da Sociedade e da cultura americanas;
  5. A definição do programa intelectual como uma autorreflexão, um trabalho dessa sociedade sobre si mesma, para manter, preservar, corrigir, realizar plenamente a promessa que ela continha.

Nesse sentido, diga-se de passagem, ele tem algo a ver com o gênero cultivado por clássicos do nosso pensamento social e político – penso em Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, ou Caio Prado Júnior, mas poderíamos incluir muitos outros autores na longa série dos assim chamados “intérpretes do Brasil”. Com uma diferença significativa: com uma ou outra exceção, em nosso caso o teor da autorreflexão tende a ser muito mais crítica.

 

Reside aí uma das diferenças palpáveis entre a primeira geração de praticantes dos Estudos Americanos e seus sucessores. Com efeito, tendo se conformado em um período em que os Estados Unidos viviam uma profunda crise econômica e tempos de ampla reforma social, havia margem nessa fase para uma dose crítica que vai desaparecer quase inteiramente mais tarde. Guerra contra o nazi-fascismo; combate ao comunismo. No período subsequente, o que predomina no campo dos Estudos Americanos é o viés celebratório do empreendimento. A América, terra de muitos problemas, mas de enormes possibilidades, cede lugar à América exemplo para o mundo, terra de prosperidade, democracia e liberdade.

Um breve registro basta para ilustrar essa afirmativa: no início dos anos 1960, quando o governo americano lança o Programa Voluntários da Paz, antes de serem enviados em missão para os países-alvo, os jovens que atendiam ao chamado eram obrigados, como parte de seu treinamento, a fazer cursos de Estudos Americanos, independentemente de sua especialidade.

Entende-se, assim, a anedota contada por um dos mais destacados representantes da segunda geração de especialistas em Estudos Americanos, o qual já sem elementos para explicar ao famoso professor inglês em que consistia o seu campo de estudos acaba por exclamar “I believe in America”[21].

 

  1. Nos Estados Unidos, os Estudos Americanos preservaram por longo tempo a tradição inaugurada por Parrington, orientando-se basicamente para o estudo de Literatura, sociedade e cultura, em detrimento de temas de economia e política, domínio de outras disciplinas estabelecidas e muito mais consolidadas.
  2. Com esta vocação, os Estudos Americanos se institucionalizam na década de 1940 e 1950 como disciplina acadêmica, com presença reconhecida no sistema universitário. Nesse movimento, foram impulsionados inicialmente por Fundações Privadas, depois também por agências governamentais.
  3. Apesar da permanência do rótulo, não cabe falar dos Estudos Americanos como uma realidade estática. Pelo contrário, é comum se encontrar na literatura o emprego da noção de “movimento” em conexão com ele. Realidade móvel, dinâmica, pois. Nesse sentido, nessa caracterização sumaria é importante salientar o impacto sobre o campo pelos movimentos sociais que agitaram a cena política e cultural americana nos anos 1960 e 1970 do século passado, todos eles dotados de expressão institucional no mundo acadêmico, sob a forma de áreas emergentes de pesquisa e ensino: Black Studies; Women Studies; Native American Studies; LGBT Studies e outras denominações menos vistosas. Não podemos nos deter nesses desenvolvimentos, cada um deles com suas especificidades. Importa é indicar como eles abalam as convicções constitutivas do campo, tornando implausível a ideia de desvelar a alma, o genuíno espírito americano e produzindo um mal-estar definido por muitos analistas como uma crise de identidade.
  4. É provável que esse efeito seja sentido mais agudamente nos Estados Unidos. Esse fato deve ser ressaltado porque, embora tenha sido originalmente um fenômeno doméstico, no pós-guerra, os Estudos Americanos se difundiram internacionalmente.

Com a índole que seria de esperar, eles tiveram forte impulso na União Soviética, onde, na década de 1980, contavam-se aos milhares os especialistas em Estados Unidos. Nenhuma surpresa nisso. A competição geopolítica exigia a formação de pessoal capaz de ler e interpretar as informações vindas da potência rival, por razões instrumentais e para melhor conduzir as atividades de propaganda e contra-propaganda inerentes ao relacionamento híbrido que se estabelecia entre elas.

 

Algo similar pode ser dito em relação à China, país onde a área de Estudos Americanos começa a ganhar forma na década de 1960, em resposta à demanda emanada do Partido-Estado. Ela se expande na China a partir da década seguinte, sob o efeito da aproximação entre os dois países promovida pelo governo Nixon. Hoje, em condições muito diferentes, que evocam os tempos da Guerra Fria, a China conta com ampla rede de Centros e Institutos, dotada de associação específica e de publicação periódica próprias[22].

Nos dois casos, trata-se de desenvolvimentos autóctones. No restante do mundo, a difusão dos Estudos Americanos, como atividade acadêmica deveu muito ao empenho dos próprios Estados Unidos.

Aqui também as Fundações privadas desempenharam um papel de relevo. Mas, ao contrário do que ocorreu no processo de institucionalização dos Estudos Americanos em seu país de origem, o protagonismo foi exercido pelas instituições governamentais. A partir do Fulbright Act, de 1946 – sancionado pelo presidente Truman em 1948 –, o Estado americano passa a fomentar a implantação de programas de Estudos Americanos, mobilizando para tal uma agência especial criada na mesma época: a USIA. Até onde pude enxergar, esse esforço se concentrou na Europa – com ênfase na Alemanha e na Holanda – e na Ásia – aqui o destaque vai para a Índia.

A experiência indiana chama a atenção pela precocidade do empenho. O primeiro convênio firmado com o governo para esse fim data de 1950 – e o envolvimento no Programa, desde a primeira fase, de figuras eminentes da academia americana, como o do historiador Merli Courti, que se deslocam para a Índia e lá permanecem por períodos relativamente extensos, desenvolvendo atividades letivas e de difusão cultural, testemunham da seriedade com que essa missão era encarada.

Com diferentes nuances, esses programas seguem o padrão estabelecido nos Estados Unidos: concentração no estudo do Inglês, literatura, cultura e sociedade americanas. No caso indiano, ênfase no tema das relações interétnicas, mais especificamente, a diáspora indiana nos Estados Unidos[23].

Não por acaso, a China foge a esse padrão. Aqui também vamos encontrar uma vasta trama de instituições, com programas, associações, revistas especializadas em Estudos Americanos. Agora, como se poderia imaginar, são outras as prioridades: economia, política doméstica e política exterior dos Estados Unidos. Essas áreas concentravam o essencial da atividade de pesquisa na primeira etapa dos Estudos Americanos na China. A partir de 1979, com a abertura econômica, o estreitamento de laços com os Estados Unidos, a oferta mais ampla de recursos financeiros para a área e a intensificação do intercâmbio cultural entre os dois países se opera uma clara diversificação temática. Mas, na China, o campo de Estudos Americanos abrange dois segmentos marcadamente diferenciados: com centros de ensino e pesquisa voltados para a análise política e econômica, de um lado, e centros dedicados ao estudo da língua inglesa, da cultura e da civilização americanas. Para completar essa caracterização sumária dos Estudos Americanos na China é preciso registrar ainda a existência de enorme contingente de “observadores” (“watchers”), que trabalham fora do universo acadêmico na produção de pesquisa policy-oriented, atendendo à demanda dos setores econômicos, políticos e militares[24].

O tempo disponível não me permite avançar na descrição. Mas para o argumento que estou desenhando aqui isso seria desnecessário. O que primacialmente interessa nesse rápido apanhado não são as particularidades de cada caso nacional, mas o contraste que se revela quando os comparamos com a experiência brasileira de estudos acadêmicos sobre os Estados Unidos.

 

  1. Ausência dos Estudos Americanos no Brasil, com uma hipótese.

O contraste em causa diz respeito à política externa dos Estados Unidos. Todos sabemos da importância que ela conferiu à cooperação cultural com o Brasil. Esse tem sido objeto de inúmeros trabalhos importantes, entre os quais a primeira tese de doutorado defendida no Programa San Tiago Dantas de Relações Internacionais. Mas o foco da USIA, como a pesquisa detalhada de Fernando Santoumauro revela, foi colocada no ensino de inglês e em programas de intercâmbio visando a familiarizar jovens brasileiros promissores com os atrativos da vida social e política americana. Isso, naturalmente, para não falar da ação direta – por meio de filmes, espetáculos artísticos, artigos em jornais de grande circulação – voltada para o grande público. Não se verifica, porém, nenhum investimento digno de nota na implantação de programas de ensino e pesquisa na área de Estudos Americanos na agenda desse organismo[25].

O mesmo pode se dizer em relação Programa Fulbright, objeto de tese importante de Daniela Costano, defendida na UnB, em 2017[26]. Estabelecida em 1957, a Comissão Fulbright no Brasil desenvolveu forte programa de intercâmbio, privilegiando as áreas de Ciências Sociais, Humanidades e Artes –, mas não inclui o fomento aos Estudos Americanos em seus planos. Corrijo-me, fez tardiamente alguns movimentos tímidos nessa direção, ao apoiar o Programa de Estudos Norte-Americano e Políticas Públicas Eleanor Roosevelt, criado na USP, em 2000, e o Núcleo de Estudos Americanos, na Universidade Federal do Ceará, na mesma época. Mas nenhuma das duas iniciativas parece ter frutificado. No presente, a criação do Centro de Estudos Norte-Americanos na UFMG pode indicar uma reorientação de prioridades da instituição. A ver.

E o que dizer da Fundação Ford, tão importante na implantação dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Ciência Política, Sociologia e Antropologia) no Brasil? Convido os colegas a folhearem os livros que Sergio Miceli e equipe prepararam sobre o tema. Vocês verão que o padrão é nítido: todos eles se voltam para pesquisa sobre o Brasil. Os pesquisadores-docentes vão aos Estados Unidos, com apoio da Fundação Ford, em grande número. Mas para se munir das ferramentas analíticas necessárias à boa condução de suas pesquisas empíricas, cujo objeto era o Brasil.

É certo, o Brasil não esteve de todo ausente do processo de formação da rede internacional de Estudos Americanos. Colegas nossos estiveram presentes na fundação da IASA (International American Studies Association), em 2000, e já tinham criado antes uma associação própria, a ABEA – Associação Brasileira de Estudos Americanos. Mas essa entidade não vingou, e hoje quase não encontramos vestígios dela.

Como entender esse atraso? Encontramos uma pista no trabalho que o nosso convidado Inderjeet Parmar escreveu sobre os Seminários Kissinger e Salzburgo, alguns anos atrás.

Permito-me citá-lo:

 

“… os líderes da filantropia americana enxergavam inúmeras ameaças às suas aspirações globalistas: inveja europeia e ressentimento do poder e da riqueza americanos, além de ignorância ou incompreensão da sociedade, cultura e política da nova superpotência. A oposição à política externa dos EUA, portanto, era vista como baseada em emoção, ignorância e nostalgia. A solução para os americanos liberais internacionalistas era a diplomacia cultural ou pública especificamente direcionada às elites européias para convencê-las de que os EUA eram uma força para o bem no mundo, defendendo a liberdade e combatendo a tirania; que sua cultura era profunda e não superficial, que a riqueza material não era a obsessão exclusiva de sua cultura, que tinha um interesse permanente e sério por problemas e ideias abstratas – em arte, música e filosofia”[27].

 

A extroversão dos Estudos Americanos se dá em um contexto novo, no qual os Estados Unidos sentem a necessidade de vencer as reticências das elites europeias e asiáticas, convencendo-as de que estavam preparados para assumir a liderança político-intelectual do bloco capitalista e defender os interesses de todos contra a ameaça soviética.

Ora, o Brasil se situava gostosamente na área de influência dos Estados Unidos e suas elites mantinham relações carnais com a classe dirigente americana há muitas décadas.

Imperialismo sedutor, sem dúvida. Mas a sedução, nos dois casos, tem alvos diferentes, e se exerce com artes que não são iguais.

Não importa. Por uma mescla de razões geoculturais, geopolíticas e outras a serem investigadas, os Estudos dos Estados Unidos – ou Americanos, conforme o uso internacionalmente consagrado – não receberam, historicamente, estímulos externos e internos para se consolidar entre nós.

 

  1. E no entanto… Situação presente e desafios do campo de estudos dos Estados Unidos no Brasil.

E no entanto… é preciso cantar, rezava a linda canção de Vinícius e Carlos Lyra. Pois bem, no nosso caso já estamos cantando há tempos, como a realização desta Conferência Brasileira de Estudos sobre os Estados Unidos demonstra sobejamente.

Agora, quem canta? O que canta? Qual o tamanho e a estrutura do nosso coral? Será que formamos um coral? Ou somos um punhado de pequenos conjuntos, cantando coisas diferentes em lugares diferentes, sem maior comunicação uns com os outros? Em termos mais rigorosos, em que medida cabe falar na existência de um campo de estudos dos Estados Unidos no Brasil?

Tempos atrás, fizemos no INCT-INEU uma pesquisa exploratória na tentativa de começarmos a responder a tais questões. Foi um exercício artesanal conduzido por duas pessoas de nossa equipe – Neusa Bojikian e eu mesmo – mas que deu enorme trabalho e vários resultados interessantes. Não tenho tempo para expô-los aqui, mas devo dizer uma palavra sobre o conceito que nos informava, e a conclusão geral sugerida pelos dados gerados na pesquisa.

Com origem na Física, o conceito de campo tem amplo curso na literatura sociológica, onde deu lugar a definições diferentes. Para os propósitos bem limitados da investigação que fizemos, mais interessante do que examinar as diferenças entre essas conceituações abstratas nos pareceu usar a definição operacional encontrada em uma obra sobre a Economia Política Internacional.

Passo a palavra ao autor da mesma, nosso conhecido Benjamin Cohen.

 

“Um campo acadêmico existe quando um corpo coerente de conhecimento é desenvolvido para definir um objeto de pesquisa; padrões reconhecidos passam a ser usados para treinar e certificar especialistas; oportunidades de emprego em período integral ficam disponíveis no ensino e pesquisa da universidade; sociedades acadêmicas são estabelecidas para promover o estudo e o diálogo; meios de divulgação estão disponíveis para ajudar a difundir novas ideias e análises; surge uma rede institucionalizada de acadêmicos – uma comunidade distinta de pesquisadores, com suas próprias fronteiras, recompensas e carreiras”[28].

 

Tendo essa definição como baliza, procedemos a um grande levantamento na Plataforma Lattes, em busca de acadêmicos (doutores) com publicações regulares sobre os Estados Unidos. Operando vários filtros – o último dos quais a análise individualizada de dados curriculares –, identificamos um número expressivo deles na área de Ciências Sociais (Antropologia, Sociologia, Ciência Política e Relações Internacionais), e um número um pouco menor, mas também significativo, na área da História. Devemos chamar a atenção para o caráter meramente indicativo desses dados, que estão longe de retratar a realidade com exatidão. Mas, com todas as suas reconhecidas insuficiências, eles nos dão um elemento crucial para a solução do problema que levantamos. Existem no Brasil, atualmente, pelo menos 89 pesquisadores em Ciências Sociais, e 79 historiadores, com interesse sustentado em estudos sobre os Estados Unidos.

Embora menor do que em muitos dos países referidos nesta conferência, essa quantidade seria mais do que suficiente para dar forma a um campo vibrante. No entanto, os dados resultantes do nosso levantamento e a experiência vivida mostram que estamos longe de chegar a esse resultado.

Indicações eloquentes. 1) A existência de duas redes de pesquisa sobre os Estados Unidos – aquela centrada no INCT-INEU e a Rede de Estudos dos Estados Unidos, criada há mais de dez anos, reunindo historiadores brasileiros de vários estados. 2) a inexistência de um periódico científico especializado e a enorme dispersão de veículos empregados para escoar a produção desses estudiosos sobre o tema – 34, no caso das Ciências Sociais; 152, no caso da História.

Por isso, devemos falar dos Estudos Políticos sobre os Estados Unidos no Brasil como um campo em formação, e não como algo dado. Para avançarmos no processo de constituição do mesmo teremos de responder a um conjunto de desafios.

O primeiro e mais óbvio deles é de caráter organizacional. Como proceder para integrar o conjunto de especialistas que vêm trabalhando até o momento enclausurados em suas respectivas comunidades acadêmicas, nessa área que é, por definição, interdisciplinar? Devemos envidar esforços na criação de um periódico acadêmico próprio? Dentro de que horizonte temporal? Faz sentido pensarmos em uma associação científica? Se a resposta for positiva, quando dar esse passo? Em outro plano, como nos relacionar com a extensa rede internacional de Estudos Americanos? Se acharmos por bem integrá-la, como fazer isso sem nos dotarmos de uma identidade coletiva formalmente estabelecida e legitimada?

O segundo, não menos óbvio, é muito mais dramático. Como avançar na consolidação dessa área de estudo, quando assistimos no Brasil a uma ofensiva devastadora sobre a Ciência e a Universidade? Pior ainda, como fazer isso quando sabemos que o nosso objeto de estudo adquire um significado transcendente na construção identitária a que se dedicam os poderosos da hora – os quais, por isso mesmo, cercam-no de tabus e reagem com violência a todos que ousem violá-los. Em termos práticos, como angariar os fundos necessários à continuidade de nossas pesquisas sem abrir mão da autonomia indispensável para que elas valham a pena, e evitar, ao mesmo tempo, que nosso trabalho se converta em alvo fácil para o obscurantismo que ora impera nas esferas oficiais?

Poderia refletir sobre cada um deles, mas isso me levaria longe demais. Prefiro finalizar com esses enunciados breves, passando a palavra ao público, que tem – e terá – o privilégio de dar respostas práticas às questões dramáticas que nos desafiam.

Notas

[1] MAXWELL, Kenneth. Uma história atlântica. In: ___ (coord.) O Livro de Tiradentes. Transmissão atlântica de ideias políticas no século XVIII. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras, 2015; p. 9-66 (34-5).

[2] WRIGHT, Fernanda Pacca de Almeida. Testando o Leviathan. A Presença dos Estados Unidos nos Debates Parlamentares de 1828 a 1837. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.

[3] Cf. FERREIRA, Gabriela Nunes. Centralização e Descentralização no Império. O debate entre Tavares Bastos e visconde de Uruguai. São Paulo: Editora 34, 1999.

[4] BAS, Natalia, Brazilian Images of the United States, 1861-1898: A Working Version of Modernity? PhD. Thesis, University College London, 2011.

[5] ROOSEVELT III, Kermit. Introduction. In: STORY, Joseph. Commentaries on the Constitution of the United States. New Orleans: Quid Pro Books, 2013.

[6] Cf. PEREIRA, Batista. Rui Estudante. São Paulo: Centro Acadêmico XI de Agosto, 1924, Apud VENANCIO FILHO, Alberto. Das Arcadas ao Bacharelismo (150 anos de Ensino jurídico no Brasil). São Paulo: Editora Perspectiva, 1977. p. 134.

[7] É o que mostra Carleton Sprague Smith em sua conferência Os Livros Norte-Americanos no Pensamento de Rui Barbosa. Separata das Publicações da Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1945.

[8] VENANCIO FILHO, Alberto, op. cit,; ADORNO, Sergio. Os Aprendizes do Poder. O bacharelismo liberal na política brasileira. São Paulo: EDUSP, 1988.

[9] STORY, Joseph, LL.D. Commentarios à Constituição dos Estados Unidos. Última Edição (1891). Traduzida e Adaptada à Constituição Federal Brazileira pelo Dr. Teophilo Ribeiro. Ouro Preto. Typographia Particular do Traductor, 1894.

[10] YOUSSEF, Alain El. Miguel Maria Lisboa: escravidão, geopolítica global e economia imperial durante a Guerra Civil norte-americana. Cadernos do CHDD, v. 15, n. 29, 2016. p. 29-50.

[11] LISBOA, Miguel Maria. Ofício 19 de Dez. 1860, ahi 233/03/09. In: Cardernos do CHDD, v. 14, n. 27, 2015. p. 420-21-23.

[12] LIMA, Oliveira. Nos Estados Unidos. Impressões Políticas e Sociais. Leipzig: F. A. Brockhaus, 1899. Sobre a elaboração dessa obra e a recepção que encontrou, Cf. HENRICH, Nathalia. Ser ou Não Ser Antiamericano? Os Estados Unidos na Obra de Oliveira Lima. Tese, da Universidade Federal de Santa Catarina, 2016.

[13] SANDRONI, Cícero. “Rodrigues, José Carlos”, CEPEDOC.

[14] Novo Mundo I, 1, 24/10/1870, p. 2. Apud BOEHRER, George C. A. José Carlos Rodrigues and o Novo Mundo, 1870-1879. Journal of Inter-American Studies, v. 9, n. 1, 1967, p. 127-44 (132).

[15] LIMA, Oliveira. Pan-Americanismo (Monroe, Bolivar, Roosevelt (1907). Brasília/Rio de Janeiro: SenadoFederal/Fundação Rui Barbosa, 1980.

[16] Como indicado pelo relato de José Veríssimo sobre uma sessão na Academia de Letras, na qual nenhum dos presentes soube nomear dois escritores norte-americanos. Cf. VERÍSSIMO, José, Homens e Coisas Estrangeiras, 1899-1908. Rio de Janeiro: Tobpbooks, 2003. p. 143-51 (3ª.edição ampliada, 1910).

[17] BANDEIRA, Moniz. Presença dos Estados Unidos no Brasil (Dois Séculos de História). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973. p. 208.

[18] Cf. GULLERME, Olympio, À Margem da História e da Política Norte-Americana, Vol I; A Revolução Capitalista Norte-Americana, Vol. II; A Realidade Americana, Vol. III; e Homens e Coisas Norte-Americanos, Vol. IV. Rio de Janeiro: Calvino Filho, Editor, 1934.

[19] Cf. BRAY, Robert; BROWN, Tom. American Studies in Brazil. A Note. American Studies International, v. 24, n. 2 (Oct. 1986). p. 81-85.

[20] Para uma interpretação abrangente da curiosa sorte reservada à obra de Parrington, Cf. HOFSTADTER, Richard, The Progressive Historians. Turner, Beard, Parrington. London: Jonathan Café LTD, 1969. A trajetória de Parrington é minuciosamente reconstituída em HALL, H. Lark, V. L. Parrington. Through the Avenue of Art. Kent, Ohio/London: Kent University Press, 1994.

[21] Os interlocutores eram o sociólogo inglês Richard Hoggart e o então jovem bolsista da Fulbright, Leo Marx, que relata o diálogo em longo ensaio para um dossiê sobre os Estudos Americanos publicado na American Studies. MARX, Leo. On Recovering the ‘Ur’ Theory of American Studies. American Literary History. 17:1 (Spring 2005). p. 118-34. Apud. TALLY Jr., Robert T. Believing in America: The Politics of American Studies in a Postnational Era. The Americanist: Warsaw Journal of the Study of the United States, 23(1). pp. 69-81.

[22] Cf. MEI, Renyi; LI, Jinzhao. Thirty Years of American Studies in China: An Overview and a Case Study. American Studies, 35:2 (2012). p. 30-45; YONGTAO, Zhu. American Studies in China. American Studies International, v. 25, n. 2, 1987. p. 3-19.

[23] SHRIVASTAVA, B. K. American Studies in India. American Studies International, v. 25, n. 2, 1987. p. 41-55; JAIDKA, Manju. American Studies in India: a retrospect. Comparative American Studies: An International Journal, 2:4, 2013. p. 461-69.

[24] Ambassador Julia Chang Bloch (ed.). All-China American Studies Directory. An Overview of American Studies in China. US-China Education Trust/FY Chang Foundation: Washington, DC, 2008. p. 2-5.

[25] Cf. SANTOUMAURO, Fernando. A atuação política da Agência de Informação dos Estados Unidos no Brasil (1953-1964). São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2015.

[26] COSTANO, Daniela Maria Barandier. Diplomacia Pública, soft power e influência dos Estados Unidos no Brasil: o Programa Fulbright e a cooperação educacional (1957-2010). Tese, PPG-RI, Universidade de Brasília, 2017.

[27] PARMAR, Inderjeet. Challenging Elite Anti-Americanism in the Cold War. American Foundations, Kissinger’s Harvard Seminar and the Salzburg Seminar in American studies. In: ______; COX, Michael. Soft Power and US Foreign Policy. Theoretical, Historical, and Contemporary Perspectives. London/New York: Routledge, 2010. p. 108-20 (109).

[28] COHEN, Benjamin. International Political Economy. An Intellectual History. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2008.

 

 

 

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