América Latina

Janela de oportunidade para quem? Observações sobre a aproximação bilateral Brasil-EUA

Por Filipe Mendonça*

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou em sua conta no Twitter, neste 2 de dezembro, que irá sobretaxar as importações de aço e o alumínio do Brasil e da Argentina. Segundo Trump, Brasil e Argentina têm praticado “desvalorizações maciças de suas moedas”, o que estaria prejudicando os agricultores estadunidenses.

O anúncio é certamente um duro golpe no núcleo duro da diplomacia brasileira que vem defendendo, desde a eleição de Bolsonaro, um alinhamento automático atípico (e acrítico) aos Estados Unidos. Algum malabarismo retórico do tipo “não é bem assim” deve aparecer nos próximos dias por parte do governo brasileiro. O revés é contundente, porém, já que o Brasil vem trabalhado em um acordo comercial com os Estados Unidos, fomentado pelo que se considera uma “janela de oportunidades”. Um exemplo disso foi a fala do secretário de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia, Marcos Troyjo, quando disse, em julho deste ano, não pensar em um “alinhamento tão favorável quanto como o que se tem hoje”.

Este alinhamento, entretanto, nada tem de favorável.

É espantosa a total ausência de reciprocidade na relação bilateral entre os dois países. Enquanto o lado de cá enfatiza a “janela de oportunidades”, o lado de lá reconhece a total subserviência da política externa brasileira e usa isso para avançar sua lista de interesses as vésperas de ano eleitoral.

Não estamos falando de uma mesa de negociações desigual. A relação comercial entre Brasil e Estados Unidos é marcada pela total ausência de qualquer negociação, onde apenas um lado tem o que dizer.

Um breve histórico

Em 2018, mais precisamente no dia 8 de março, Donald Trump anunciou tarifas de 25% sobre o aço e 10% sobre o alumínio importados, medida que afetou diretamente o Brasil. O alívio para o aço e o alumínio brasileiros só chegou em agosto daquele ano, depois de cinco meses de tarifação. Este foi o contexto mais geral da relação bilateral entre os dois países quando Bolsonaro assume a presidência do Brasil.

A primeira sinalização de um possível acordo bilateral veio em março deste ano, quando Jair Bolsonaro foi até a Casa Branca. O comunicado conjunto de Trump e Bolsonaro, publicado em 19 de março de 2019, mostrou-nos o resultado prático da visita: os Estados Unidos apoiaram a entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em contrapartida, exigiu-se um preço alto: a retirada do Brasil da lista de nação mais favorecida da Organização Mundial do Comércio (OMC). Além disso, Bolsonaro anunciou, sem contrapartida razoável, uma cota tarifária que permitiu a importação anual de 750 mil toneladas de trigo americano à taxa zero.

Um mês depois, Trump afirmou que buscaria um acordo comercial com o vizinho do Sul. “O Brasil é um grande parceiro comercial. Eles cobram muitas tarifas, mas, além disso, amamos o relacionamento”, disse Trump a repórteres em 30 de julho de 2019.

Naquela mesma semana, o secretário de Comércio dos Estados Unidos, Wilbur Ross, esteve em São Paulo. Segundo a embaixada dos EUA no Brasil, Ross se encontrou com empresários ligados à Câmara de Comércio Americana (Amcham) e à Fiesp, assim como com João Dória, Paulo Guedes e com o próprio Jair Bolsonaro.

Conforme o jornal Folha de S. Paulo, Ross alertou para “o perigo de comprar tecnologias sensíveis como produtos para a rede 5G de certos países”. Para o secretário americano, as empresas de tecnologia chinesas representariam sérios riscos à segurança nacional, cooperando inclusive com serviços militares e de Inteligência. Ross seguiu pautando a agenda comercial brasileira, ao se mostrar preocupado com o avanço das negociações entre Mercosul e União Europeia.  “É importante que nada naquele acordo seja contraditório a um acordo de livre-comércio com os EUA”, chegou a afirmar.

Um dos principais entusiastas deste acordo é a Amcham. Em um documento recente, a tradicional câmara de comércio fala em dez propostas para acelerar o acordo comercial entre Brasil e Estados Unidos (Veja aqui as dez propostas em português, ou em inglês, na íntegra). As propostas incluem “a conclusão de um acordo de livre-comércio, a assinatura de um acordo de investimentos e continuidade do apoio dos americanos ao ingresso do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)”.

Em setembro, Ernesto Araújo se encontrou com Robert Lighthizer, atual USTR e responsável por boa parte da condução da política comercial dos Estados Unidos. Após a reunião, Ernesto Araújo disse que o governo Donald Trump ainda tinha dúvidas sobre o formato do acordo comercial que pretende firmar com o Brasil. Nas palavras do chanceler, o Brasil teria convicção de que “queremos ter uma negociação”, mesmo sem saber o formato. Sobre isso, “o próprio EUA têm às vezes dúvidas sobre se é melhor negociar como união aduaneira, ou como países individuais. Isso não está fechado”.

Em resumo: o Brasil quer um acordo, qualquer acordo, enquanto os EUA determinarão em quais termos!

Um dos principais pontos deste chamado acordo seria a facilitação de entrada de mercadorias de empresas pré-aprovadas por ambos os países (No Brasil, são os Operadores Econômicos Autorizados. Nos EUA, o programa tem o nome de Trusted Traders). Embora não exista previsão de eliminação total de tarifas nas relações comerciais entre Brasil e EUA, o Brasil se comprometeu a implementar, até o fim do ano, uma cota para a importação de trigo, demanda antiga dos estadunidenses. Além disso, o Brasil também se comprometeu a abrir mão do status de nações em desenvolvimento no âmbito da OMC sem qualquer contrapartida razoável.

Neste contexto, ainda em setembro deste ano, o Ministério da Economia brasileiro prorrogou por mais um ano a importação de etanol sem a tarifa de 20% para produtos fora do Mercosul e aumentou a cota de 600 milhões para 750 milhões de litros. Segundo o jornal O Globo, a medida “atende a um pedido feito pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em março deste ano, durante visita do presidente Jair Bolsonaro àquele país”. A contrapartida brasileira deveria vir pela abertura do mercado estadunidense de açúcar, o que nunca aconteceu.

Não é bem assim

O primeiro golpe veio em outubro deste ano, quando os Estados Unidos priorizaram o apoio à Argentina e à Romênia para a OCDE. A turma do “não é bem assim” logo entrou em cena, dizendo que isso era o esperado e que Trump estaria apenas seguindo os trâmites normais da organização, como se Trump fosse alguém que respeitasse ritos, ainda mais de organizações internacionais.  Não colou! E não colou em grande medida por conta do governo brasileiro: a entrada da OCDE foi a única contrapartida anunciada por Bolsonaro após inúmeras concessões feitas pelo Brasil na visita a Washington em março.

Como se não bastasse, esta aproximação destrambelhada com os Estados Unidos coloca em xeque outros projetos de grande importância para o Brasil. Um dos grandes “entraves” nesta tentativa brasileira de firmar um acordo bilateral com os Estados Unidos é o Mercosul. Isso ocorre pois, caso o acordo envolva tarifas, o Brasil precisa carregar todo bloco sul-americano.

Daí surgem duas possibilidades: a primeira é mesmo o esvaziamento do acordo regional. Um importante sinal disso veio na semana passada, quando o ministro da educação, Abraham Weintraub, anunciou unilateralmente que a pasta deixaria a área educacional do Mercosul. Segundo o UOL, a decisão causou algum desconforto no Itamaraty e no próprio MEC, o que alimenta a hipótese de uma decisão isolada da pasta em um governo sem qualquer coordenação razoável.

É importante lembrar que o próprio Paulo Guedes já disse algumas vezes que o Mercosul não é (e talvez nunca seja) prioridade do governo. Na mais recente de suas declarações, Guedes afirmou que, se a oposição vencesse as eleições presidenciais na Argentina, o que acabou acontecendo, e apresentar resistência à abertura econômica do Mercosul, o Brasil deixará o bloco.

A segunda possibilidade é a elaboração de um acordo bilateral com os Estados Unidos apenas com temas amplos, como facilitação de comércio e convergências regulatórias. Neste caso, o Brasil estaria disposto a assinar o acordo sem qualquer contrapartida razoável dos Estados Unidos e sem o Mercosul, um caso inédito na história da diplomacia brasileira.

É neste contexto que chega o anúncio de Donald Trump hoje. Certamente isso trará problemas para os olavistas que hoje conduzem boa parte da política externa brasileira. Estaria a tal “janela de oportunidades” se fechando?  Com a mudança do cenário político na Argentina, torna-se praticamente impossível um acordo com os Estados Unidos que envolva o Mercosul. Seria este imbróglio a razão do descontentamento recente de Eduardo Bolsonaro com a condução da política externa brasileira, conforme informou o jornalista Lauro Jardim?

De todo modo, fica cada vez mais evidente que a maneira como o Brasil se relaciona com os Estados Unidos não é razoável, ignora os interesses nacionais, parte de uma leitura atrasada das relações econômicas internacionais, além de ferir princípios mais tradicionais da nossa diplomacia econômica.

 

* Filipe Mendonça é professor de Relações Internacionais da UFU, pesquisador do INCT-INEU e membro da equipe do Chutando a Escada Podcast.

*atualizado às 12:15

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