Bolsonaro cede a Trump sem reciprocidade e com contrapartida mínima

Por Tatiana Teixeira

Depois de sua primeira viagem internacional, quando participou do Fórum Econômico Mundial, em Davos, em janeiro, o presidente Jair Bolsonaro embarcou rumo aos Estados Unidos para sua primeira visita bilateral desde que tomou posse. De grande simbolismo, esse primeiro destino em geral aponta e reafirma a direção que será tomada pelo novo governo na condução de seus assuntos externos, incluindo as gestões diplomáticas, o comércio e as políticas setoriais. Bastante desejada pelo presidente Jair Bolsonaro e por seu entorno político mais próximo, o ápice desta viagem de três dias foi a reunião com o colega Donald Trump, em 19 de março, quando o brasileiro anunciou concessões unilaterais a Washington, com ganhos desproporcionais para um dos lados – o que se diferencia sensivelmente de uma (re)aproximação, renovação de diálogo, ou parceria.

No Salão Oval (foto), na Casa Branca, a ausência do chanceler Ernesto Araújo e a presença de Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), esta última somada aos elogios que lhe foram feitos por Trump, acentuaram a percepção da crescente disputa pelo protagonismo na condução da política externa. Uma PEB que opta cada vez mais pelo alinhamento automático e ideológico com o grande vizinho do Norte, que abre mão de sua margem de manobra no plano internacional e que vai deixando de lado aspectos tradicionais da prática do Itamaraty, como a defesa do multilateralismo, a busca de diversificação de parceiros, o pragmatismo e a autonomia.

A falácia do antiamericanismo

Na entrevista coletiva conjunta no Rose Garden da Casa Branca, Trump fez vários elogios ao colega Bolsonaro, chamado pela imprensa americana de Trump dos trópicos. “Vamos ter uma fantástica relação de trabalho, com muitas visões que são parecidas”, afirmou o empresário nova-iorquino, destacando “os princípios de justiça e reciprocidade” como a base da relação bilateral. No discurso, Trump mencionou o compromisso de ambos com a redução de barreiras comerciais e com o apoio à inovação em diversos setores (ele cita particularmente energia, infraestrutura, agricultura e tecnologia) e destacou a abertura da economia brasileira promovida por Bolsonaro. “Nossas grandes empresas estão prontas para ir”, garantiu Trump, acrescentando que o Fórum de CEO Brasil-EUA (criado em 2007) será retomado (o último encontro foi em 2015) junto com o novo Fórum de Energia Brasil-EUA.

“As relações Brasil-Estados Unidos são melhores do que jamais foram”, celebrou o republicano. Na sua vez, Bolsonaro retribuiu: “é justo afirmar que, hoje, o Brasil tem um presidente que não é antiamericano, o que é realmente sem precedentes nas últimas décadas”.

Não, não é sem precedentes. Ambas as frases partem de premissas distorcidas que, mesmo sem um exaustivo esforço de pesquisa, podem ser revistas ao se examinar, em retrospectiva, a linha do tempo do relacionamento entre os dois países. A mesma análise mostrará também que, contrariando a narrativa atualmente em construção sobre a política externa brasileira recente, discursos presidenciais e de chanceleres, acordos e memorandos firmados, visitas e diálogos estratégicos, ou ainda números da balança comercial, não fornecem evidências, nem registro, de uma política “antiamericana” per se.

Além do filho deputado, agora presidente da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, a comitiva incluiu o ministro da Economia, Paulo Guedes; o da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro; o da Defesa, Fernando Azevedo e Silva; o das Relações Exteriores, Ernesto Araújo; a da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina; o da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes; o do Meio Ambiente, Ricardo Salles; o das Minas e Energia , Bento Albuquerque; e o do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno.

‘Novo capítulo de coooperação’

De acordo com nota divulgada pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE), Trump e Bolsonaro “assumiram o compromisso de construir uma nova parceria entre seus dois países com foco no aumento da prosperidade, na melhoria da segurança, na promoção da democracia, da liberdade e da soberania nacional”. Para Bolsonaro, abre-se um “novo capítulo de cooperação” entre dois países com uma “grande dose de valores compartilhados”. Na prática, porém, o que se viu até agora foi menos do que uma parceria.

Apresentado como um dos maiores triunfos obtidos pelo presidente Bolsonaro, anunciou-se a assinatura do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas entre Brasil e Estados Unidos, por meio do qual os EUA poderão fazer uso comercial da Base de Lançamentos Aeroespaciais de Alcântara (MA). Com isso, essa instalação de localização estratégica estará disponível aos americanos para se lançar satélites, foguetes e mísseis, sem transferência de tecnologia. O acordo ainda precisa ser aprovado por ambos os Congressos. No mesmo campo, foi firmado um acordo entre a Nasa e a Agência Espacial Brasileira para o lançamento de satélite a ser supostamente desenvolvido em conjunto.

Ignorando o princípio de reciprocidade como uma das tradições da prática diplomática brasileira, Bolsonaro anunciou a isenção de vistos para americanos, canadenses, australianos e japoneses. O decreto entra em vigor em junho deste ano. Não há qualquer perspectiva, pelo menos no caso americano, de uma resposta na mesma direção. Ambos concordaram em avançar nas condições para que o Brasil possa fazer parte do Programa de Viajantes Confiáveis dos EUA, conhecido como Global Entry, do Departamento de Segurança Interna. Assinado em 2015 por Dilma Rousseff e Barack Obama, a promessa anterior era de que este acordo entraria em vigor até o ano seguinte. Sem divulgar detalhes, o MRE informa ainda que Trump e Bolsonaro acertaram uma “Parceria para Prosperidade” para gerar empregos e reduzir barreiras ao comércio e aos investimentos.

Também se anunciou o aprofundamento da parceria no combate ao terrorismo, ao tráfico de armas e de drogas, aos crimes cibernéticos e à lavagem de dinheiro, por meio do Fórum Permanente de Segurança Brasil-EUA, assim como a assinatura de dois instrumentos para melhorar a segurança de fronteira. Em entrevista à rede conservadora FOX News, aliás, o presidente Bolsonaro elogiou a construção do muro fronteiriço com o México defendido por Trump e criticou os brasileiros imigrantes que vivem nos Estados Unidos, porque a maioria “não tem boas intenções”. Migração não é exatamente um tema caro ao atual governo. Logo no início de janeiro deste ano – lembra-se –, foi anunciada a saída do Brasil do Pacto Global para a Migração da ONU para, entre outras frágeis justificativas, proteger a soberania nacional.

Em relação à situação na Venezuela, Trump e Bolsonaro reforçaram seu apoio ao “presidente encarregado Juan Guaidó” e à “Assembleia Nacional democraticamente eleita”. Ainda que todas as opções continuem sobre a mesa para os EUA, Bolsonaro manteve (pelo menos nas declarações públicas, mas sem abandonar a ambiguidade) a posição adotada pelo Grupo de Lima, a qual se distancia da via militar. Incansáveis, os EUA seguem sua pressão, em diferentes fóruns e níveis, para terceirizar, ao menor custo possível, a solução para a crise no país detentor das maiores reservas de petróleo do mundo. Para além da questão regional, outro ponto é que um desfecho desfavorável a Nicolás Maduro pode agradar ao voto conservador latino nos EUA. E 2020 é ano de eleição presidencial.

Concessões em troca de ‘apoios’

Na mesma entrevista, o presidente Trump prometeu seu apoio à entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Se não é nova na agenda de alguns grupos econômicos e políticos, a ambição se coloca com mais força e prioridade na atual gestão, que a vê como uma maneira de garantir ao país a imagem de parceiro confiável para investidores estrangeiros e as principais potências mundiais. Em troca disso, referindo-se a um “status de líder global” do país, o Brasil de Bolsonaro acolheu a proposta de Washington e aceitou abrir mão de seu tratamento especial na Organização Mundial do Comércio (OMC), por meio do qual obtém vantagens por ser classificado como “país em desenvolvimento”. Desde que chegou ao poder, Trump tenta esvaziar a OMC, instituição na qual os EUA já sofreram algumas derrotas, inclusive para o Brasil.

Ainda na área comercial, entre outras medidas, Bolsonaro anunciou que o Brasil implementará uma cota tarifária, que prevê a importação anual de 750 mil toneladas de trigo procedente dos EUA com tarifa zero, de modo permanente. A medida pode ter impacto na produção nacional e nas relações com nosso parceiro sul-americano mais próximo, a Argentina. Hoje os EUA são o segundo principal parceiro comercial do Brasil, atrás somente da China. Se a União Europeia for considerada como um todo, então os EUA ficam em terceiro lugar.

Trump também manifestou sua intenção de tornar o Brasil um aliado “extra-Otan (‘Major Non-NATO Ally’), ou talvez aliado” da Organização do Tratado do Atlântico Norte. É questionável o quanto essa condição atende às necessidades do Brasil em um sentido mais amplo. Indo além de uma possível maior cooperação militar com os EUA, cabe perguntar os potenciais impactos na agenda econômica e diplomática do país, ou mesmo em relação ao ônus do envolvimento e participação em conflitos e/ou guerras que não são do interesse do Brasil. Também não é necessariamente um ganho funcionarmos, para os EUA, como um mercado para venda de equipamentos obsoletos (se for este o caso).

Agenda presidencial

Junto com acordos e objetivos práticos, visitas presidenciais costumam ser usadas como cartões de visita de chefes de Estado ávidos por mostrar a agenda que será prioridade em sua gestão – quando no início do mandato –, ou as conquistas e os avanços obtidos até então, de modo a atrair investimentos para o país. Em cada evento, entrevista, ou nas interações nas redes sociais, em boa parte do tempo, o presidente Bolsonaro manteve ainda uma postura de campanha com falas dirigidas, sobretudo, para suas bases. Assim, a viagem aos EUA foi também uma prestação de contas para seus eleitores, com declarações permeadas por temas como família, fé, tradição, valores, ou luta contra o comunismo e o socialismo.

Na noite de sua chegada aos EUA (17), um jantar na embaixada do Brasil em Washington reuniu os Bolsonaros, o “guru político” do presidente, Olavo de Carvalho, e alguns representantes da direita e da extrema direita americana, como o ex-assessor estratégico da Casa Branca Steve Bannon. No evento, Bolsonaro lembrou que “democracia e liberdade são fatores essenciais que unem os dois países”, ressaltando a importância do “fortalecimento de uma diplomacia em favor da democracia no Ocidente”.

No dia seguinte, o presidente Jair Bolsonaro participou do painel “O Futuro da Economia Brasileira”, na Câmara Americana do Comércio, e se reuniu com o ex-secretário do Tesouro americano Henry Paulson. Um programa inédito articulado por Eduardo e sobre o qual pouco se comentou, foi a visita do presidente Bolsonaro à sede da CIA. Em nota, o Palácio do Planalto informou apenas que a visita esteve relacionada com o “combate ao crime organizado e ao narcotráfico” e com “a necessidade de fortalecer ações da área de Inteligência que abrangem o Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Gabinete de Segurança Institucional, entre outros órgãos”. À noite, o presidente participou de jantar no Conselho Empresarial Brasil-EUA.

No dia 19, antes do encontro com Trump, Bolsonaro se reuniu com o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), Luis Almagro. Após a passagem pela Casa Branca, visitou o Cemitério Nacional de Arlington para a tradicional oferta de flores ao soldado desconhecido.

Brasil menor

Em meio a momentos de maior ou de menor aproximação política, estratégica, ou econômica, com mais alinhamento ou com mais autonomia por parte do Brasil, as relações com os Estados Unidos sempre foram marcadas pela assimetria de recursos e de interesses. Salvo em períodos muito específicos, tratou-se de uma grande potência exercendo o poder em sua autoarvorada esfera direta de influência, de formas que alternaram, ou mesclaram a um só tempo, coerção, atração e cooptação. A depender do governo, também foram relações bilaterais marcadas por frustrações e desencontro de expectativas, mas sem rupturas.

Desta vez, contudo, o governo americano sequer precisou se esforçar para impor uma agenda, ou reivindicar demandas. Qualquer oferta de sua conveniência já estava dada de saída, embalada pelo deslumbramento e sem tentativas de barganha de Brasília. A adesão imediata e irrestrita ao trumpismo também sugere que a cúpula do atual governo ignora a complexidade do sistema político americano, os inúmeros atores que orbitam Washington, assim como as dinâmicas entre e intra Poderes. Nesse sentido também, em um eventual governo democrata a partir de 2021, pode sair caro o apoio anunciado por Bolsonaro à reeleição de Trump.

Por enquanto, o Brasil sai dessa viagem menor do que quando chegou.

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