Demissão de Bolton mostra a face diplomática de Trump

por Solange Reis

 

“O mundo ficou mais perto da paz mundial” foi uma frase hiperbólica encontrada nas redes sociais no dia em que John Bolton deixou a Casa Branca. A data da saída ainda está em disputa. Bolton diz que pediu demissão no dia 10. Donald Trump jura que demitiu seu conselheiro de segurança nacional na véspera.

Saber quem tomou a iniciativa talvez já não seja tão relevante. Afinal, Bolton é o terceiro a ser demitido no cargo. O que importa é que, com o neoconservador fora do jogo, aumentam as chances de soluções diplomáticas para duas situações críticas. A primeira é o encerramento da Guerra do Afeganistão. A segunda é evitar que os Estados Unidos iniciem outra, desta vez com o Irã.

Bolton, um dos principais promotores da invasão do Iraque em 2003, é uma das personalidades mais belicistas no cenário americano. Entrou no atual governo em março de 2018, mas divergências com o presidente o deixaram na “geladeira” nas últimas semanas. O ex-conselheiro já não participava das reuniões de segurança nacional e perdia influência para o secretário de Estado, Mike Pompeo. Depois da demissão, o presidente se referiu ao ex-conselheiro como “Sr. Valentão”.

Analistas consideram que a queda de Bolton, as tentativas de conversa com o Irã e o acordo de paz alinhavado com o Talibã indicam que Trump começa a definir a sua doutrina. Em outras palavras, modificar a política de segurança dos Estados Unidos para um padrão menos intervencionista. Eleito com um discurso quase isolacionista e executor de uma política externa errática até o momento, o republicano poderá entrar para a história como o presidente americano mais realista das duas últimas décadas.

Guerra sem fim

Em outubro de 2001, os Estados Unidos começaram uma guerra no Afeganistão em busca de Osama bin Laden. Líder da Al-Qaeda e mentor dos ataques de 11 de setembro, o terrorista foi morto no Paquistão dez anos depois por forças especiais americanas. O Afeganistão, infelizmente, continua um palco de guerra até hoje.

 Confirmando suas pretensões desde a campanha, Trump decidiu encerrar o conflito que já dura 18 anos. Após meses de negociações entre o enviado americano e o Talibã, os dois lados pareciam finalmente prontos para oficializar um acordo de paz, ainda que temporário.

Em segredo, Trump planejou selar pessoalmente o compromisso em Camp David, casa de campo dos presidentes americanos. De olho na reeleição, quis pompa e circunstância para marcar o que seria um grande feito em política externa. Algo no nível do assassinato de bin Laden por Barack Obama. Encerrar o conflito não é somente o que o presidente acredita ser bom para o país em termos estratégicos; lhe renderia bons frutos em 2020, pois a maioria da população (59%) e dos veteranos (58%) considera que essa guerra não vale a pena.

Seriam dois encontros quase simultâneos em Camp David na segunda semana de setembro; um com o presidente afegão, Ashraf Ghani, e outro, com líderes talibãs. Mas um atentado suicida assumido pela organização nos últimos dias, no qual morreram um soldado americano e outras nove pessoas em Cabul, colocou tudo a perder. Pelo menos, essa foi a explicação oficial para o cancelamento. Para Trump, as conversas com o Talibã agora estão “mortas”. Até que um novo tweet do republicano diga o contrário.

Tudo degringolou depois do cancelamento dos encontros em Camp David. O Talibã atacou um local próximo da embaixada dos Estados Unidos em Cabul. Trump foi chamado nas redes sociais tanto como apoiador de terrorista quanto realista pragmático. A imprensa seguiu apontando as falhas do acordo de paz. Já a eleição presidencial no Afeganistão, no próximo 28 de setembro, corre risco de não acontecer e deixar o país em mais instabilidade.

Cancelando o segredo

O anúncio do cancelamento surpreendeu a população, a imprensa e quase toda a classe política, pois apenas os integrantes do círculo de segurança nacional sabiam do acordo de paz. A simples ideia de um chefe do Talibã – organização classificada como terrorista pelo governo americano – pisar em solo nacional às vésperas do aniversário do 11 de setembro também causou estupefação e desconforto.

Trump nunca escondeu a vontade de encerrar a guerra, que já custou mais de US$ 1 trilhão em gastos diretos, e de levar os quase 15 mil soldados americanos remanescentes para casa. Durante a presidência de Obama, o contingente americano chegou a 100 mil soldados.

De George W. Bush a Trump, todos os governos entraram em negociações bilaterais, trilaterais ou multilaterais para resolver a guerra. Algumas vezes, apenas com o Talibã; outras incluíam o governo afegão e/ou terceiros países, como a Arábia Saudita e o Irã. As últimas negociações vinham sendo feitas diretamente com o Talibã por Zalmay Khalilzad, enviado especial do governo americano para o Afeganistão. Khalilzad costuma dizer que Bolton fazia parte da “equipe B” do governo.

O plano costurado pelo enviado garantiria a saída de 5.400 soldados americanos, após 135 dias da assinatura do acordo, em troca de um cessar-fogo parcial pelo Talibã. Outros quase 9.000 soldados seriam retirados em até 16 meses, quando também já teriam saído todas as tropas aliadas.

Esse último processo de paz ganhou reforço com a entrada da Rússia nas conversas. Foram dois encontros de lideranças talibãs com membros do Kremlin no primeiro semestre, uma aproximação importante para uma solução sustentável.

O governo afegão foi escanteado na maioria dos encontros em 2019, causando ressentimentos que poderão vir a cobrar um preço mais tarde. Mas o presidente afegão não tem muita opção senão aceitar o que outras partes decidirem. Sem o apoio dos Estados Unidos e a anuência do Talibã, nenhum regime consegue se consolidar no Afeganistão. Assim, o presidente Ashraf Ghani se satisfez com o cessar-fogo parcial proposto. Ghani tentará a reeleição contra outros 17 candidatos, mas o pleito só acontecerá se houver interrupção temporária da violência. Uma das táticas do Talibã para minar as eleições é ameaçar matar os eleitores que comparecerem às urnas.

Achar o consenso entre os diferentes grupos no Afeganistão não é o único desafio para a Casa Branca. Trump tem dificuldade de apoio no seu próprio núcleo, pois vários integrantes preferem continuar a guerra até que se negocie termos mais consistentes. Assessores alegam que encerrá-la agora, nas condições acordadas, significaria mais insegurança para o Afeganistão e os Estados Unidos. O temor é que o Talibã domine o país, cresça mais no Paquistão e tumultue a região. Tal cenário enfraqueceria a capacidade de influência dos Estados Unidos, abrindo espaço para outros atores regionais, como a China, o Irã, a Índia e a própria Rússia.

Em termos geopolíticos, a Ásia Central é muito relevante. Por ela passa o ambicioso projeto de infraestrutura da China, “One Belt, One Road”, e rotas de distribuição de energia. Tem também importância estratégico-militar em tempos de ascensão da China. Já dizia o geógrafo Halford Mackinder, quem dominar o “heartland” (Eurásia), dominará o mundo. Entre aqueles que preferem continuar a guerra a qualquer custo, para que os Estados Unidos sejam o mestre absoluto dessa região vital, está o próprio Bolton.

Seria a sua demissão um sinal da predominância da diplomacia sobre a guerra? Há razões para acreditar que sim. O secretário Pompeo segue a linha dos “novos guerreiros frios”, que preferem empenhar os esforços humanos, materiais e imateriais na contenção de inimigos tradicionais. Pompeo vê na China, na Rússia e na Coreia do Norte o maior risco à segurança nacional dos Estados Unidos. Isso não significa que provocará guerras contra tais potências nucleares, mas deverá promover o retorno a uma política realista de equilíbrio de poder.

A guerra no Afeganistão é tudo, menos tradicional, pois o Talibã entra na categoria de inimigo assimétrico. Diga-se de passagem, duro de vencer. Nunca é demais lembrar que a derrota para o Talibã nos anos 1980 ajudou a selar o destino fatal da União Soviética.

O fator Irã

Bolton propôs soluções polêmicas para algumas das questões mais explosivas da política internacional. Sugeriu bombardear as instalações nucleares da Coreia do Norte, enquanto Trump se gabava de abrir o diálogo com Kim Jong-un. Quis remover Nicolás Maduro do poder na Venezuela, ao passo que Trump insistia em colocar “todas as opções na mesa”.

Fortes divergências também aconteceram em relação ao Irã. Ambos defendem a linha-dura com Teerã, mas os objetivos são distintos. Trump quer a redução do programa nuclear iraniano e a retração do Irã nas questões do Oriente Médio. Bolton pretende tudo isso e mudar o regime teocrático.

Há alguns meses, a Casa Branca tenta retomar o diálogo com o Irã para renegociar o acordo abandonado por Trump à revelia dos demais signatários. O presidente enviou uma carta ao aiatolá Ali Khamenei, se fez representar pelo primeiro-ministro japonês, Abe Shinzo, e tem falado abertamente em dialogar. Outro indício de que o presidente procura uma via menos radical, não obstante tudo o que já disse de negativo sobre o Irã, foi a indicação do senador Rand Paul para negociar. Como libertário, pode-se dizer que Paul seja um isolacionista. Em questões de guerra, está para Bolton como yin para yang; pomba para falcão.

O clima de tensão recente entre Irã e Estados Unidos passou perto de um conflito, o que teria consequências globais imprevisíveis. Bolton foi muito responsável pelo acirramento, e a sua saída cria um ambiente mais propício para a diplomacia, embora não seja garantia de paz.

Trump, um realista sem princípios

Bolton é neoconservador, portanto intervencionista, enquanto Trump mostra-se cada vez mais um reformista no sentido de reduzir o envolvimento militar dos Estados Unidos no exterior. Caso seja reeleito, essa reforma poderá vir a ser seu maior legado em termos de segurança. Isso não o torna pacifista ou um bom presidente, mas o mérito de colocar freios nas ações militares precisa ser destacado.

Por conta dessas diferentes visões de política externa, vazamentos de dentro da Casa Branca para a imprensa têm sido uma constante. Para minar os planos do presidente quanto ao Afeganistão, funcionários do governo teriam divulgado os pontos fracos do plano de paz. O próprio Bolton, ex-comentarista da Fox News, pode estar por trás das informações vazadas. O objetivo é ganhar o apoio da mídia contra a retirada dos soldados. Há muitos interesses envolvidos no estado de guerra permanente, como os caríssimos contratos de terceirização de segurança e de infraestrutura no Afeganistão.

Uma das táticas dos “whistleblowers” é difundir a ideia de que nunca será possível alcançar um bom acordo enquanto Trump ocupar a presidência. Pois, sabendo do desejo do presidente por encerrar a guerra, o Talibã tem aproveitado para exigir condições mais frouxas.

Após o cancelamento do encontro, uma das informações aparentemente vazadas para a imprensa foi a de que o Talibã exigiu que o encontro acontecesse depois da divulgação pública do acordo de paz. De olho na reeleição, Trump teria preferido aparecer como grande estadista negociador, colocando tudo a perder.

A divulgação jornalística visa mostrar como o ego de Trump destrói qualquer racionalidade política, que suas decisões não são bem fundamentadas e, no fim das contas, que ele representa um risco para os Estados Unidos e o mundo. Após três anos de um mandato repleto de escândalos, polêmicas e heterodoxia, pouca gente discorda dessa visão. Em contrapartida, um presidente americano menos intervencionista e beligerante seria de grande ajuda para a paz mundial. Por incrível que pareça, Trump pode ser esse presidente.

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