Internacional

Relações EUA-Haiti: a crise alimentar e o caso do arroz

Por João Fernando Finazzi*

Na manhã de 8 de fevereiro, uma sexta-feira, após o primeiro dia da mais recente onda de protestos que tomou de assalto as maiores cidades do Haiti, o presidente Jovenel Moïse compareceu com mais de três horas de atraso a uma coletiva de imprensa marcada no Palácio Nacional. O motivo alegado foi que ele teria se estendido mais do que planejado em reunião com importadores de arroz da região de Artibonite. Conforme notificou, esta reunião teria como objetivo analisar as possibilidades de diminuir o preço do produto, num momento em que o país mais pobre das Américas passa por uma grave crise econômica e política.

Com a desvalorização da moeda nacional, o gourde, a capacidade de compra da população tem caído drasticamente, agravando novamente o cenário de acesso a alimentos por grande parcela de haitianos. Em dezembro de 2018, o Programa Alimentar Mundial da ONU projetou em relatório que, entre março e junho de 2019, cerca de 2.6 milhões de haitianos estarão passando por profunda insegurança alimentar e que algo em torno de 37% da população rural irá precisar de assistência emergencial para combater a fome.

O gesto de Moïse, embora tenha passado despercebido pela maioria dos analistas, merece maior atenção. Afinal, o “caso do arroz” expõe aspectos estruturais das relações entre EUA e Haiti.

Na primeira metade dos anos 1990, quando o presidente deposto Jean-Bertrand Aristide estava negociando com os governos de EUA, França e Canadá a sua volta ao Haiti (no que ficou conhecido como o Plano de Paris), além da permissão para que membros da “comunidade internacional” pudessem treinar as polícias e as forças armadas haitianas, acordou-se também que, uma vez em Porto Príncipe, o governo haitiano implementaria o que se chamou de Programa de Ajustamento Estrutural, em conjunto com o FMI, o Banco Mundial e o Banco Inter-Americano de Desenvolvimento. Tratava-se de medidas de liberalização e austeridade, como venda de empresas estatais, demissão de funcionários públicos e diminuição de tarifas alfandegárias. Com a intervenção da coalizão norte-americana no Haiti em 1994 e com o restabelecimento do governo Aristide, o programa de neoliberalização da economia do país passou a ser implementado. As tarifas de importação de arroz, que já tinham sofrido uma alteração no final da ditadura dos Duvalier em 1987 e se mantinham até então em torno de 50%, foram baixadas em 1995 para uma média de 3%.

A medida foi devastadora para os produtores haitianos de arroz, incapazes de competir com a imensa importação do produto norte-americano, mais durável e agora de preço muito mais baixo que o arroz haitiano. O episódio levou a uma intensificação da migração camponesa em direção às cidades haitianas, notadamente Porto Príncipe, e ajudou a aumentar a demanda de serviços de saúde, educação e também de alimentos, já sobrecarregados nos centros urbanos.

Uma das medidas que aprofundaram este cenário foi a Lei Federal de Melhoramento e Reforma Agrária (Federal Agriculture Improvement and Reform Act) aprovada pelo governo Clinton em 1996, que permitiu a realização de contratos de sete anos de pagamento fixo direto aos produtores agrícolas norte-americanos, independentemente do preço do produto e da produção. Nos anos que se seguiram, as exportações de arroz dos EUA para o Haiti cresceram rapidamente, tornando o país caribenho o quarto maior mercado de arroz norte-americano já no início dos anos 2000.

Durante este período, o Estado norte-americano do Arkansas, grande produtor agrícola, afirmou sua posição como maior produtor de arroz dos EUA. De acordo com a ONG Environmental Working Group, desde a decisão de 1996 até 2017, os fazendeiros do Arkansas tinham recebido por volta de US$ 13 bilhões em subsídios agrícolas, em que mais da metade (US$ 6,9 bi) foi para a produção de arroz. Importante destacar que foi a partir do Arkansas que Bill Clinton iniciou sua plataforma política em direção à presidência, quando o governou entre 1979 e 1992. De fato, em 2010, durante uma sessão do Comitê de Relações Exteriores do Congresso dos EUA, o ex-presidente reconheceu publicamente as consequências pela decisão relativa ao comércio de arroz com o Haiti, concordando que suas decisões transformaram radicalmente a sociedade e a economia haitianas. Segundo Clinton: “Pode ter sido bom para alguns dos meus fazendeiros em Arkansas, mas não funcionou. Foi um erro… Eu tive que viver todos os dias com as consequências da perda de capacidade de produção de arroz no Haiti para alimentar aquelas pessoas por conta do que eu fiz; ninguém mais”.

Se, à época do retorno de Aristide nos anos 1990, o arroz não compunha em grande medida a dieta dos haitianos, baseada em milho e mandioca, em 2011, o arroz já compunha cerca de um quarto das calorias diárias consumidas pela média da população, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) reproduzidos pelo Departamento de Agricultura dos EUA. Atualmente, o Haiti já se tornou o segundo maior mercado para o produto norte-americano, sendo superado somente pelo México, de acordo com a própria USA Rice Federation.

Além disso, segundo a Oxfam, algo em torno de 80% a 90% do arroz consumido no Haiti é importado, um comércio controlado por apenas seis corporações. Uma das maiores é a Tchako S.A., afiliada à Riceland Foods, cooperativa baseada no Arkansas que recebeu sozinha mais de US$ 500 milhões do governo dos EUA entre 1995 e 2010 pelo programa de apoio à agricultura.

Ao se considerar a “espontaneidade” das revoltas de julho de 2018 no Haiti, os últimos protestos de fevereiro indicam um notório aprofundamento da capacidade de organização e mobilização dos grupos que, por meio de um esforço sistemático, formulam e imprimem cotidianamente um sentido e uma direção específicos às ações sociais. Isto porque, se a divulgação do relatório do Tribunal Superior de Contas esboçando o envolvimento do presidente Moïse e de seus principais auxiliares com desvios de recursos do acordo firmado com a Venezuela foi feita no dia 1º de fevereiro, foi somente a partir do dia 7, uma quinta-feira, que as ruas se tornaram palco de choque entre policiais e manifestantes. A data é especial: trata-se do aniversário da queda da ditadura dos Duvalier em 1986 e da assunção da presidência por Moïse em 2017.

Não foi também a primeira vez em que há altercações envolvendo o Petrocaribe, acordo firmado entre a Venezuela e vários Estados do Caribe a partir de 2005, prevendo tarifas preferenciais aos compradores do petróleo venezuelano. Em novembro de 2017, uma comissão especial do Senado haitiano já tinha acusado vários empresários e ministros da cúpula do atual governo e de gestões anteriores desde 2006 (os ex-presidentes René Preval e Michel Martelly) de terem-se enriquecido a partir do acordo com a Venezuela. Alguns meses depois, a então chefe da Minujusth (missão da ONU que substituiu a Minustah em 2017), Susan D. Page, manifestou seu apoio às investigações e criticou a falta de avanços num caso de violações de direitos humanos que teriam sido cometidas pela Polícia Nacional Haitiana. Como resposta, a Chancelaria haitiana convocou para consultas seu embaixador na ONU.

Atestando a veracidade das “portas giratórias” que caracterizam a política norte-americana, após ser afastada em agosto do comando da Minujusth, Page se tornou consultora do Stevenson Group. A empresa oferece serviços de consultoria e apoio legal para “médias e grandes corporações interessadas em expandir seus negócios nos EUA e globalmente”.

Mesmo que, em janeiro de 2019, o governo haitiano tenha manifestado apoio aos EUA em reunião na Organização dos Estados Americanos (OEA), ao não reconhecer a presidência de Maduro na Venezuela, ao que indica o encontro de Moïse com os importadores de arroz deu alguns frutos – mesmo que podres, dirão alguns –: na segunda semana de fevereiro, o governo Trump passou a divulgar plano de ajuda humanitária para o Haiti. No entanto, resta saber: como ficam os fazendeiros do Arkansas?

 

* João Fernando Finazzi é doutorando e mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). É bolsista do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) e pesquisador do Grupo de Estudos em Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP).

** Texto originalmente publicado no site Outras Palavras, em 2/4/2019.

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