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Crise na Venezuela é tema de evento do Ineu

”Crise na Venezuela é inevitavelmente perigosa e ameaçadora para as populações civis”, alerta Monica Hirst

Por Tatiana Carlotti

Com a casa cheia, o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU) recebeu, em 12 de março, Mônica Hirst (foto, ao lado do prof. Sebastião Velasco e Cruz), professora da Universidade Nacional de Quilmes (Argentina) e especialista em Estudos Estratégicos Internacionais, para analisar a crise na Venezuela e o enquadramento dos Estados Unidos.

Dirigindo-se a um público predominantemente de estudantes e pesquisadores em Relações Internacionais, Hirst propôs uma análise que compreendesse quatro abordagens para lidar com a crise venezuelana. A primeira, que percebe o conflito como um “empate catastrófico”; a segunda, que coloca o foco na escalada da violência; a terceira, que coloca em discussão a identificação da Venezuela como um Estado frágil; e a última, que discute a situação sob o prisma do binômio defesa e segurança. Em todos os casos, parte-se do suposto que se trata de uma realidade “complexa, imprevisível e inevitavelmente perigosa e ameaçadora para as populações civis”.

Brasileira radicada na Argentina e autora de Understanding Brazil-United States Relations (Funag, 2013); Brasil-Estados Unidos: desencontros e afinidades (FGV, 2009); entre outras obras, Hirst também avaliou os interesses dos países da região e o entrecruzamento destes com suas respectivas agenda bilaterais com os Estados Unidos.

Acompanhe abaixo os principais pontos da palestra:

“Empate catastrófico” e escalada da violência

Segundo Hirst, uma das abordagens possíveis do conflito na Venezuela diz respeito ao conceito gramsciano de “empate catastrófico”, pelo qual “empate” não significa uma noção estática da realidade, mas um permanente estado de confronto e tensão entre duas partes envolvidas em um conflito. “O que parece o encapsulamento em um dos lados pode estar produzindo severas crises do outro lado; e cada vez que essa confrontação se torna mais expressiva, mais próximo ao abismo se move a crise e se reduzem os espaços alternativos”, explica.

Esse eixo de tensões existe tanto para o regime Maduro quanto para as forças de oposição em torno da crise Venezuela-Estados Unidos e de toda a geopolítica em relação ao petróleo na Venezuela”. Ao mesmo tempo, dá-se um processo de escalada da violência.

A Venezuela vive hoje uma situação de excepcionalidade. “Crianças não estão indo às aulas, e a vida cotidiana é precária em todo país. A capacidade de provisão de bens públicos, uma certa ‘normalidade’ do ponto de vista do funcionamento da vida cotidiana está comprometido. Observam-se problemas crônicos de fornecimento de água, oferta de saúde, transportes públicos, condições de saneamento etc.”.

Lembrando que “o mundo não inventa, ele se ajusta a realidades específicas, baseadas em memórias e em experiências concretas”, ela propôs comparações entre o caso venezuelano e outras experiências recentes, como a situação inicial do conflito ocorrido na Síria; além das crises e processos de desestabilização e intervenção, velados e prolongados nos anos 1980, na própria Venezuela e na América Central.

“Temos, necessariamente, que começar a pensar naquelas realidades, naqueles contextos e desenvolvimentos de crises que vão nos ajudar a entender a especificidade da crise na Venezuela. É preciso buscar, a partir de elementos mais contundentes, a partir de outras situações e realidades, algumas superadas e outras não”, alertou.

Estado frágil e questões de segurança e defesa

Hirst também chama a atenção sobre a utilização do conceito de “estado frágil”. “Nas discussões do Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre a Venezuela, as potências ocidentais vêm utilizando sistematicamente a noção de Estado falido, inferindo um conjunto de indicadores, que colocam a Venezuela num ranking muito alto, para justificar as intervenções”, denuncia.

Criado em meados dos anos 1990, o conceito de “estado frágil”, ou “estado falido” (Fragile States Index), diz respeito a um índice de classificação de países, elaborado pela revista Foreign Policy para avaliar, por meio de um conjunto de indicadores, aspectos que vão desde a falta de coesão entre as elites ao grau de conflituosidade, ou de intervenção internacional.

Em sua avaliação, a necessidade de classificar determinadas realidades como frágeis “cria o argumento e a legitimação da intervenção humanitária, difundidos nos espaços da governança global como a ‘responsabilidade de proteger (R2P)’. Em grande medida, este conceito normativo vem substituindo, de fato, o direito humanitário internacional”, denuncia. Desta vez, no entanto, grandes agências humanitárias, como a Cruz Vermelha e as agências das Nações Unidas, reagiram e se mantiveram fora da estratégia, porque “apontaram a ausência de neutralidade política, um dos pilares do direito humanitário internacional junto com a imparcialidade e a humanidade”.

“É inegável a existência de uma crise humanitária, mas deve-se compreender esta crise a partir das precárias capacidades de o Estado lidar com esta crise; e essa compreensão revela o sentido catastrófico dessa realidade”, destaca. Daí a necessidade de se compreender a complexidade da realidade na Venezuela. Trata-se do país não em guerra mais violento do mundo, com maior taxa de homicídios da América Latina, conforme auferem os mais clássicos indicadores, aponta Hirst.

“Um país com 30 milhões de pessoas (apenas em Caracas são 3 milhões), significa que há muita gente a ser lastimada. Este é um aspecto de enorme importância, inclusive, nas avaliações mais prudentes e racionais sobre o impacto de uma intervenção. Os desdobramentos de conflito deflagrado são complexos, imprevisíveis, e inevitavelmente perigosos para as populações civis”, avalia.

“Não há dúvidas de que uma intervenção armada, uma ação violenta contra esse país poderá produzir mais violência, e por muito tempo, de formas muito variadas e absolutamente descontroladas até para as duas forças em confronto”, complementa.

Soma-se a isso a presença de forças paramilitares na região. “Dizem que as milícias bolivarianas, forças de apoio a Maduro não institucionalizadas, mantêm ad hoc dois milhões de pessoas. Digamos que sejam 800 mil pessoas, estamos falando de um segmento que impõe mais insegurança a essa realidade. Como se articularão estas forças à política defesa do atual governo frente a uma intervenção externa?”, questiona.

Um exemplo recente foi dado pelo próprio governo Maduro que, durante os conflitos na fronteira colombiana, preservou suas Forças Armadas para evitar qualquer hipótese de conflito com o país vizinho, levando adiante uma espécie de “terceirização” das forças paramilitares venezuelanas. Para obter “o resultado desejado”, no entanto, trata-se de “uma faca de dois gumes”, aponta Hirst.

Estados Unidos na direção do conflito

A partir de estudos comparativos sobre casos de intervenção e construção de opções de paz, nos países da América Central, no Haiti e na Colômbia, Hirst observou que, nos três casos analisados, os Estados Unidos assumiram um papel central, mas atuando como motorista do banco de trás (back seat driver), aquele sujeito que entra no táxi e, apesar de não conduzir o carro, orienta o caminho, “vai por ali, entra ali”.

Essa postura não será a mesma no caso da Venezuela, já que eles assumem a direção. “Em termos diacrônicos, na sequência do impacto catastrófico, ainda estamos em etapa de escalada (para ficar melhor, tem que ficar pior). Não vamos (dizem os americanos) intervir militarmente, mas vamos estrangular a Venezuela”.

No final do mês de abril, esgota-se o prazo para o início da implementação das sanções do conjunto de empresas norte-americanas. Será quando “as piores consequências do cerco vão começar a ser sentidas”, avalia. Daí as negociações estimuladas pelos Estados Unidos com os demais países, como o Brasil, procurando evitar perfurações às sanções contra a Venezuela.

“O objetivo político e ideológico da atuação dos Estados Unidos (e isso é dito) é o combate frontal ao socialismo. Uma lógica primária: se você derrubar o Maduro, você liquida as condições do Sanders. Essa não é a única equação, mas está lá, como também está qualquer tipo de mobilização na América Latina, no seu posicionamento em relação à Venezuela. O que leva ao posicionamento de ‘vamos derrubar o Maduro’ é a de derrubar a alternativa de ganhos e de políticas sociais, que fazem parte da nossa própria história”, avalia.

Trata-se, portanto, de uma batalha muito dura e custosa, “não por conta do custo político apenas, mas, sobretudo, por conta do custo humanitário” e, neste sentido, a questão da opinião pública tem grande peso. “Qual foi a opinião pública latino-americana, na época da guerra contra o Iraque? Começamos silenciosos, mas quando apareceram as imagens, a opinião pública latino-americana se posicionou contra e a favor da solidariedade social”.

Uma coisa é a crise de governança, o êxodo produzido pela crise econômica, construindo a visão antimadurista. Outra é uma intervenção internacional, capaz de produzir uma catástrofe que mobilize e choque a opinião pública internacional e regional. Certamente, aponta Hirst, “o questionamento das posições assumidas seria infinitamente mais contundente e não estaríamos criando um vínculo positivo com esta opção”.

Busca pela coesão interna na Venezuela

O governo Maduro, por sua vez, procura identificar os Estados Unidos como os inimigos principais e a grande ameaça. “Independemente de isso ser, ou não, uma construção, o que se vê é a necessidade de se manter a coesão interna pró-Maduro em um contexto de enormes incentivos para a debandada. Não se trata apenas da preocupação com o dia de amanhã, do ponto de vista das retaliações dos incentivos econômicos materiais, mas da lealdade à construção de uma política baseada na identificação do inimigo maior”, destaca Hirst.

Neste xadrez, a grande incerteza é sobre como irá se mover o empate catastrófico. “Como o fará, quando e em quais condições. A partir do estrangulamento econômico? Vamos entrar em uma etapa de redução de espaços de governabilidade? De manobras da oposição?”, questiona.

Em sua avaliação, a oposição venezuelana tem uma imensa dependência dos Estados Unidos. “Os europeus prestam ajuda à oposição, mas muito limitada. Juan Guaidó não tem espaço de atuação sem a anuência dos Estados Unidos para levar adiante qualquer tipo de posicionamento”, avalia. Ao mesmo tempo, não há na região nenhum braço auxiliar da Venezuela, capaz de construir uma saída pacífica.

“Existe um esforço menor, mas não menos importante, de abrir um espaço de mediação, protagonizado pelo México e pelo Uruguai, em diálogo com países europeus, em busca de possibilidades de desativar a confrontação e trabalhar em uma opção negociada entre as duas partes. Por outro lado, temos uma articulação de apoio aos Estados Unidos, na condução de um projeto de mudança de regime na Venezuela, como se vê no Brasil”, completou.

E se o Brasil fosse diferente?

Hirst explicou que, em governos com posicionamento mais progressistas, a relação entre política externa e política de defesa tende a obedecer a “uma lógica de coordenação e de subordinação (por parte da defesa) a objetivos e estratégias de política externa”. Em governos mais à direita, o que se vê é uma “maior autonomia das Forças Armadas em termos de articulações”.

“Elas nunca perderam autonomia, mas havia uma coordenação, uma subordinação e disciplina das políticas de defesa às políticas externas que, neste momento, são menos importantes e menos visíveis”, aponta.

Outro aspecto é a mudança na diplomacia brasileira. “A diplomacia brasileira foi influenciada pelos debates no Conselho de Segurança sobre a Síria e a Líbia, que propuseram a transmutação da “responsabilidade de proteger” para a “responsabilidade ao proteger”. De acordo com esta perspectiva, explica Hirst, “o que se propunha era uma atuação responsável frente a contextos de conflito. Caso esta opção não fosse possível, o melhor seria evitar um envolvimento no conflito”.

Daí a pergunta, inevitável: o que seria do conflito na Venezuela para o Brasil, caso o momento político no país fosse outro?

“Seria de uma contribuição de peso nos esforços de desativação da confrontação. No Brics, por exemplo, quem está faltando é o Brasil para armar algum papel positivo e pacificador. Esta teria sido uma grande oportunidade para o Brics, para a Rússia e para a China. A África do Sul tem-se manifestado, a Índia também, e se poderia incluir a Turquia, em uma jogada dos emergentes, uma coalização dos emergentes trabalhando a favor de uma saída negociada”.

Mas, complementa Hirst, “tal como o nosso Brasil está hoje, em um momento de contundente e exagerada articulação ideológica com os Estados Unidos, isso é impensável”.

* Originalmente publicado no site da Carta Maior, em 3/4/2019.

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