A nova estratégia eurasiana dos Estados Unidos e a Ásia Central

por Dmitry Suslov
Artigo traduzido do Valdai Club*

Apesar do caos político e administrativo em Washington, os Estados Unidos estão cristalizando sua estratégia de política externa para os próximos anos. Essa estratégia está sendo formada sobre o princípio do denominador comum, juntando ideias de diferentes lados, em vez de uma ideia abrangente transmitida de cima para baixo. No final da primavera de 2018, ela inclui três diretrizes principais: reduzir o componente liberal da política de liderança global dos Estados Unidos; preservar e intensificar a política de proeminência global, especialmente militar, bem como o  envolvimento militar global; e aumentar dramaticamente a contenção simultânea de Rússia e China.

A dimensão eurasiana da estratégia consiste no fato de que a política para enfraquecer o papel da Rússia e da China na Europa, na Ásia e no Oriente Médio vem ganhando, gradualmente, um lugar de destaque entre os objetivos dos Estados Unidos na Eurásia. Conter as duas é visto por Washington como ainda mais importante do que outras prioridades no continente eurasiano, incluindo a luta contra o terrorismo e outras novas ameaças, desenvolvimento econômico, e assim por diante. Isso já pode ser notado pela maneira como o país conduz suas políticas no Afeganistão e na Síria.

O que há de novo nessa estratégia é que, ao tentar conter a Rússia e a China ao mesmo tempo, os Estados Unidos promovem a aproximação entre ambas e a consolidação da Eurásia Central sem a sua própria participação. Tradicionalmente, os americanos procuravam dividir o espaço eurasiano e estreitar as relações com a Rússia e a China separadamente, ao mesmo tempo em que desencorajavam os dois países a terem a mesma relação entre si. Hoje, no entanto, vemos os Estados Unidos se tornando cada vez mais antagônicos em relação não apenas à Rússia, mas também à China. A retórica visa opor a Eurásia russo-chinesa à “ordem internacional liberal” liderada pelos americanos, que inclui a comunidade atlântica, a região do Indo-Pacífico e todos os países do Ocidente que geralmente são mais voltados para os Estados Unidos do que para a China ou a Rússia.

Então, qual é a razão dessa mudança?

Em primeiro lugar, a reação primordial e bastante natural ao fracasso de sua estratégia anterior, destinada a integrar gradualmente a Rússia e a China à ordem mundial, centrada nos Estados Unidos, como parceiros harmoniosos, ocidentalizados e menores. O reconhecimento do fracasso – dado que os Estados Unidos não estão prontos para tratar a Rússia e a China como grandes potências não ocidentais legítimas que têm direito a acordos internacionais regionais próprios e ao envolvimento na formação de acordos internacionais globais – automaticamente os trazem de volta às tentativas de contenção. O plano de envolvimento ficou em frangalhos e uma parceria igualitária é impossível. O que resta é contenção.

Em segundo lugar, a tentativa de dar a medida de integridade e a espinha dorsal às políticas dos Estados Unidos numa situação em que o país e a política mundial estão uma bagunça e não há diretrizes estratégicas claras. É muito fácil e conveniente encontrar tais diretrizes nos argumentos sobre o retorno do confronto global entre liberdade e não liberdade, bem e mal, ou uma nova espécie de Guerra Fria global. Após a nomeação do ideólogo neoconservador John Bolton, como conselheiro de Segurança Nacional, esse tipo de influência ideológica na política dos Estados Unidos só aumentará.

Em terceiro lugar, a forma de evitar o retrocesso na direção do novo isolacionismo e a redução da presença global dos Estados Unidos, uma demanda que cresce entre o público norte-americano. Para isso é necessário hipertrofiar as ameaças russas e chinesas e apresentá-las como um desafio sistêmico à ordem mundial liberal, à segurança americana, e até mesmo à sobrevivência do sistema político norte-americano.

Em quarto lugar, a maneira de reunir aliados e parceiros temerosos da China e da Rússia em torno dos Estados Unidos, e impulsionar sua liderança e influência, apesar da tendência egoísta, desequilibrada e mercantilista das políticas econômicas estrangeiras americanas.

Em quinto lugar, o resultado do Russiagate, que, por sua vez, é consequência das tentativas da elite tradicional de se eximir da derrota de 2016 e manter sua posição. Inicialmente, a equipe Trump pretendia melhorar um pouco as relações com a Rússia para afastá-la da China e poder conter os chineses. Mas o Russiagate tornou isso impossível. Como é irrealista oferecer ajuda para a China contra a Rússia (afinal, a China é considerada a principal rival estratégica), os Estados Unidos tiveram que conter as duas. O provável enfraquecimento do Russiagate, particularmente se os republicanos mantiverem a vantagem no Congresso após as eleições de meio de mandato em novembro, não fará os Estados Unidos voltar à sua antiga estratégia e renunciar à dura posição de contenção em relação à Rússia. O tempo passou e agora Trump vê Moscou como um adversário.

Os Estados Unidos dão conta de conter a Rússia e a China de uma só vez? E por que ninguém na América (com poucas exceções) teme que a Eurásia se consolide como base antiamericana, tornando realidade o “pesadelo de Henry Kissinger”? Muitos no círculo de poder americano acham que sim. Sustentando essa crença estão quatro mitos que serão desmentidos, um a um, nos próximos anos, mas que, por enquanto, ainda são fortes.

O primeiro deles é que a Rússia é fraca e um aumento qualitativo da pressão (em comparação com o período de Obama) deve forçar a elite russa a fazer concessões e a lançar uma reação em cadeia que acabará por levar o novo eixo russo para o Ocidente. O aumento da pressão é entendido como novas levas de sanções, além daquelas não relacionadas à atual política externa da Rússia; uma campanha de demonização e informação sem precedentes, colocando a Rússia como um país falido; contenção de sua política externa (por exemplo, tentativas de mostrar a vitória militar russa na Síria como uma derrota política e impedir a implementação dos Acordos de Minsk na Ucrânia); corrida armamentista e pressão militar, e assim por diante. Em outras palavras, os Estados Unidos não vão conter simultaneamente a Rússia e a China por muito tempo. Mais provavelmente, eles pretendem derrubar a Rússia como o elo fraco nos próximos anos e, em seguida, resolver o problema com a China.

O segundo mito é que a Rússia e a China estão condenadas à rivalidade, tanto na Ásia Central quanto em outros lugares, enquanto atores cada vez mais assimétricos. Os Estados Unidos estão confiantes de que a China está facilitando a entrada da Rússia na Ásia Central e, em geral, transformando-a em um parceiro menor, tanto econômica quanto politicamente. Aqueles que mencionam uma provável aliança russo-chinesa enfatizam que a Rússia manterá uma posição subordinada e, portanto, deixará a aliança mais cedo ou mais tarde porque a elite russa se sentirá mais satisfeita em atender às ofertas do Ocidente.

O terceiro é que a Índia se unirá à contenção político-militar e econômica contra a China para se tornar parte harmoniosa do sistema centrado nos Estados Unidos na região do Indo-Pacífico, juntamente com o Japão e a Austrália. A estratégia Indo-Pacífico americana é uma tentativa de integrar Nova Déli no seu lado para assuntos da Ásia-Pacífico e criar um sistema integrado para conter a China no leste e no sul. A base militar e política dessa estratégia é o Quad, enquanto a base econômica é uma alternativa mística à política “Um Cinturão, Uma Estrada”.

O quarto mito é que os pequenos e médios países asiáticos têm tanto medo da China, a mesma coisa na Europa com relação à Russia, e o Oriente Médio com o Irã, que eles voltarão a ficar do lado dos Estados Unidos (apesar do desequilíbrio e do mercantilismo da política americana), e, gradualmente, vão enfraquecer os laços com Moscou e Pequim. De certa maneira, é isso que infelizmente está acontecendo na Europa e também no Oriente Médio em relação ao Irã. A retirada americana do acordo nuclear é, em parte, planejada como uma provocação para fazer o Irã reagir e, assim, induzir a consolidação de uma coalizão anti-Irã liderada pelos Estados Unidos.

Desde que se sustentem, esses mitos parecem bons: a Rússia é forçada a se retirar do jogo, a China é deixada à própria sorte e todos os outros Estados se unem contra ela. A Índia, o gigante em ascensão, vai para o lado dos Estados Unidos, e o sistema Quad de alianças e parcerias pró-americanas cresce e se fortalece em torno da China, assim como uma ordem econômica orientada pelos Estados Unidos (não é por acaso que Washington anunciou que ainda pode retornar à Parceria Transpacífico).

O problema é que cada um desses mitos será inevitavelmente desfeito. A Rússia é muito forte, não entrará em colapso. Não terá uma aliança militar tradicional, nem um confronto com a China. Moscou e Pequim continuarão a organizar a comunidade da Grande Eurásia. Ambos têm muito mais interesses em comum do que diferenças, ainda menos antagonismos neste espaço. O crescimento da assimetria russo-chinesa é resolvido através da intensificação da cooperação com Rússia, Índia e Japão, através do envolvimento nos processos eurasianos e da criação da Grande Eurásia como uma nova comunidade política internacional que dissolva o crescente poder da China num sistema multilateral de regras e instituições. A Índia não sacrificará sua independência e não se tornará parte de nenhum sistema anti-China liderado pelos Estados Unidos. Finalmente, os Estados pequenos e médios relutam bastante em escolher entre os americanos e seus aliados, de um lado, e China e Rússia, de outro. Em vez disso, eles buscam diversificar laços econômicos e relações na esfera da segurança. Mesmo na Europa, onde a consolidação em torno dos Estados Unidos é mais forte, ela requer provocações como o caso Skripal.

Os Estados Unidos reagirão dolorosamente ao colapso desses mitos. As provocações são possíveis e até altamente prováveis, inclusive na Ásia Central, no Leste e no Sudeste Asiático. Na Europa e no Oriente Médio, essas provocações estão sendo encenadas e voltarão a acontecer. No entanto, daqui a alguns anos, o colapso desses mitos e de toda a estratégia eurasiana americana, bem como a rotação de suas elites políticas, levarão a um ajuste inevitável. Especificamente, é provável que os Estados Unidos mostrem mais flexibilidade nas relações com a Rússia e com a China, renunciem a qualquer tentativa de contê-los simultaneamente e iniciem um jogo mais ativo na Ásia Central.

Por enquanto, os Estados Unidos não estão tentando voltar a um grande jogo geopolítico na Ásia Central para reduzir a influência russa e chinesa na área. É claro que gostariam de pôr em prática o seu conceito de Ásia do Sul e Central, de modo a tornar os países da Ásia Central orientados, no máximo, para a Índia e para si próprios. Mas, até agora, isso é impossível. Os Estados Unidos não conseguem restringir o papel da China no desenvolvimento econômico desses países, nem o papel da Rússia na integração econômica ou no campo institucional e de segurança. Construir laços com a Índia tem a ver com o problema do Afeganistão. Além disso, um papel mais ativo dos Estados Unidos na Ásia Central intensificará automaticamente a cooperação Rússia-China para, no mínimo, reduzir esse papel.

Portanto, o papel prático dos países da Ásia Central nas políticas dos Estados Unidos é, até agora, ligado principalmente ao Afeganistão: eles ajudam a transportar suprimentos para o contingente americano através da Rede de Distribuição do Norte, que teve de ser modificada para se adaptar ao desafio que é o confronto russo-americano. Hoje, a rede inclui a Geórgia, o Azerbaijão, o Cazaquistão e o Uzbequistão. O C5+1, único molde de cooperação que Washington estabeleceu com todos os cinco países da Ásia Central no verão de 2016, e que foi preservado pelo governo Trump, vem se desenvolvendo de forma lenta. Além disso, Washington tenta incluir, no mesmo formato, o Afeganistão – para o claro descontentamento de seus parceiros da Ásia Central.

Mas a agenda geopolítica dos Estados Unidos na Ásia Central será gradualmente fortalecida. Até mesmo o Afeganistão, uma questão antiterrorista do passado, adquiriu dimensão geopolítica. O objetivo da presença americana no Afeganistão, ao contrário de suas declarações oficiais, não é vencer. Seus 14 mil soldados não podem fazer com que o Talibã aceite um acordo político nos termos americanos, considerando que isso já falhou quando o contingente era de 100 mil homens. O verdadeiro objetivo dos Estados Unidos, aparentemente, é impedir a Rússia e a China de tomarem para si a definição afegã, manter sua influência predominante sobre o governo de Cabul e impedir sua derrota militar.

É esse aspecto do acordo de trânsito Afeganistão-Cazaquistão, recentemente ratificado, que causa ansiedade. Claro, não há dúvida sobre a existência de bases militares americanas no Cazaquistão. Também é certo que o Cazaquistão tem uma participação vital na estabilização do Afeganistão e na manutenção das relações com os Estados Unidos como parte de sua política externa multivetorial. O que levanta dúvida é a habilidade da missão americana no Afeganistão para conseguir um acordo enquanto a cooperação com o Cazaquistão lhe dá um trunfo extra.

Outra questão é que, assim como os Estados Unidos e a OTAN, a Rússia e a China dificilmente enfrentarão o problema afegão de forma independente. Até agora, eles seguiram rotas paralelas, trabalhando uns contra os outros em vez de tentar melhorar a situação naquele país. Como resultado, as coisas só pioram. É necessário juntar esforços e, nesse sentido, o Cazaquistão e o Uzbequistão, como países que cooperam com ambos os lados, poderiam construir pontes valiosas.

Assim, por mais paradoxal que possa parecer, o fato de o Cazaquistão e outros países da Ásia Central manterem relações de parceria com os Estados Unidos pode beneficiar a Rússia, tanto no Afeganistão quanto em um contexto mais amplo.

Em primeiro lugar, essa relação reduz a já escassa probabilidade de rivalidade russo-chinesa na Ásia Central e dificulta que a China conduza uma política hegemônica na região. Em segundo lugar, é estrategicamente desvantajoso para a Rússia permitir a consolidação da Grande Eurásia (formada por Rússia, China, países da União Econômica Eurasiática, países da Organização para Cooperação de Xangai e Irã) numa base antiamericana. Esse tipo de consolidação iria promover mais cedo a atual estratégia dos Estados Unidos, provocando uma divisão global entre a troika Rússia-China-Irã, de um lado, e as comunidades indo-pacífica e euro-atlântica, de outro. Para a Rússia, essa divisão é prejudicial. Pelo contrário, a Rússia tem participação na conectividade e na complementaridade mútua entre a Grande Eurásia, e as regiões Euro-Atlântica e Indo-Pacífica.

Neste contexto, o Cazaquistão e outros países da Ásia Central que mantêm relações com Washington e que fortalecem, com a assistência americana, os seus laços com a Índia, ao mesmo tempo em que são membros da União Econômica Eurasiática, da Organização do Tratado de Segurança Coletiva e da Organização para Cooperação de Xangai – bem como aliados da Rússia e parceiros económicos próximos à China – poderiam desempenhar o papel de uma ponte de conexão.

 

Tradução por Solange Reis
* Artigo originalmente publicado em 18/05/2018, em http://valdaiclub.com/a/highlights/new-us-eurasian-strategy-and-central-asia/

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