China assume parceria militar com a Rússia em resposta ao Ocidente

por Solange Reis

Dois recados foram dados em alto e bom som pelo ministro da Defesa chinês na recente viagem que fez à Rússia. O primeiro mostrou ao mundo o fortalecimento das relações bilaterais de defesa e de cooperação estratégica entre China e Rússia.

O segundo, menos genérico, teve os Estados Unidos como destinatário. Wei Feng disse que o objetivo de sua visita foi “mostrar à América os elos estreitos entre as Forças Armadas da Rússia e da China, especialmente nessa situação”.

As declarações aconteceram durante o encontro com o ministro da Defesa russo, Sergey Shoigu, em 3 de abril, véspera da VII Conferência de Segurança Internacional de Moscou. Acompanhado de autoridades militares chinesas da mais alta patente, Wei falou em nome do presidente Xi Jinping.

A qual situação se referiu o ministro da Defesa da China, país que estruturou sua projeção internacional contemporânea sob o mote da ascensão pacífica? Talvez à velha lei da física sobre dois corpos não ocupar o mesmo espaço.

China e Rússia reclamam o direito de voz no diminuto círculo de poder global de países ocidentais sob a hegemonia norte-americana. Para tal pretensão existem basicamente duas reações: deslocamento ou resistência do status quo. Por enquanto, a primeira opção não aparece no horizonte. Ainda que as economias centrais tenham que ceder algo, em geral, reagem com práticas e discursos para conter a potência emergente e a ressurgente. São estratégias que passam por medidas como sanções e aumento de tarifas comerciais, até o discurso oficial e midiático sobre moralidade estatal.

Não sem antes justificar o aumento das despesas com defesa. Nunca é bom esquecer que os gastos militares dos Estados Unidos caminham próximos ao déficit fiscal, ambos na direção do trilhão. A Casa Branca solicitou US$ 716 bilhões para o orçamento de defesa de 2019, aproximadamente 23% a mais do que no último pedido de Barack Obama. Desse total, quase US$ 40 bilhões são destinados ao setor de defesa nuclear. Outros tantos para aquisição de navios de guerra, submarinos nucleares e o estado da arte em caças aéreos.

Segundo o secretário de Defesa, Jim Mattis, a prioridade americana deixa de ser o combate ao terrorismo. “Vamos continuar na campanha contra o terror, mas a competição entre grande potências, não o terrorismo, será o foco primário da segurança nacional dos Estados Unidos.”, afirmou.

Independentemente de qualquer justificativa para tal retórica, o cerco material e ideativo do Ocidente tem provocado a contrarreação sino-chinesa na área militar.

São dois para lá, um para cá

Quase nunca dois mais dois não são quatro em política internacional. As tensões internacionais apresentam mil nuances e interesses cruzados que impedem interpretações simplistas. As relações entre Rússia, China e Estados Unidos também são multifacetadas.

À despeito dos alardes de guerra comercial, China e Estados Unidos convergem em muitos aspectos econômicos. Apesar do antagonismo político e da competição militar, Washington e Moscou compartilham inteligência sobre terrorismo. Os três países se comunicam bem na exploração sideral, para citar apenas um exemplo de cooperação bilateral ou trilateral.

Contudo, as tensões afloram quando Rússia e China questionam a hegemonia dos Estados Unidos e demandam espaço de influência regional ou global. Na Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos de 2017, tal preocupação ficou óbvia.

“China e Rússia desafiam o poder, a influência e os interesses americanos, na tentativa de erodir a segurança e a prosperidade dos Estados Unidos. (…) China e Rússia estão desenvolvendo armas e capacidades que podem colocar em risco nossa infraestrutura crítica e nossa arquitetura de controle e comando”, expressa o documento.

Para os formuladores da estratégia de segurança nacional, Rússia e China são países revisionistas. Diz o documento que, com visões éticas anti-americanas, os chineses pretendem deslocar os Estados Unidos do espaço Indo-Pacífico, enquanto os russos almejam recuperar a qualidade de superpotência no seu entorno.

Sergey Lavrov, ministro das Relações Exteriores russo, pensa o contrário. Na sua concepção, e evidentemente do Kremlin, os Estados Unidos são os que pretendem reformular o sistema internacional.

“Vemos a crescente desconsideração pelo direito internacional e pelas organizações multilaterais, como a ONU. A habilidade dos Estados Unidos de honrar seus compromissos foi colocada em dúvida, especialmente à luz das tentativas de desmontar grandes acordos internacionais como o Plano Abrangente de Ação Conjunta sobre o programa nuclear iraniano, as decisões da ONU sobre os assentamentos no Oriente Médio, a Declaração de Paris sobre o Clima, bem como princípios básicos da OMC. No conjunto, isso significa tentar revisar as questões do sistema internacional.”, afirmou Lavrov no discurso de abertura da conferência.

No encontro da ONU em setembro, Lavrov e sua contraparte chinesa, Wang Yi, criticaram a agressividade dos Estados Unidos e versaram sobre a transição para um mundo multipolar sem uma única superpotência.

Embates desse tipo darão o tom nas relações entre Ocidente e Oriente na próxima década, provavelmente aproximando ainda mais a China da Rússia em oposição aos Estados Unidos no que tange à segurança tradicional.

O flerte entre Moscou e Pequim não é recente. Foram algumas fases de aproximação e afastamento durante o século 20, até a assinatura do Tratado de Boa Vizinhança e Cooperação Amigável em 2001. Mesmo que nem de longe se pareça com a aliança militar da OTAN, o compromisso indica a afinidade entre os dois países na visão de mundo e de segurança regional. Diz o acordo, “Quando surgir uma situação em que uma das partes perceba que a paz está ameaçada, em que seus interesses de segurança estejam envolvidos ou em que se veja ameaçada  por agressão, os signatários deverão fazer contato imediatamente e se consultar a fim de eliminar tais ameaças.”

Resquícios de desconfiança histórica e competição geopolítica na Ásia Central dificultaram o processo de construção da cooperação desde então. Mais recentemente, porém, os dois países parecem ter conseguido amenizar as diferenças e encontrar mais pontos em comum.

As boas relações entre Vladimir Putin e Xi Jinping contribuem muito para isso e, se não chegam no ponto de desengatilhar a aliança estratégica, pelo menos, levam a cooperação para um estágio superior.

Ascensão não pacífica chinesa

De certa forma, a atitude do Ocidente, especialmente durante o governo de Barack Obama, destravou alguns cadeados na relação sino-russa. Entre a estratégia Pivot Asiático, para conter os chineses na Ásia, e a russofobia estimulada com a crise da Ucrânia, Obama deu tons de Guerra Fria à visão sobre o papel da Rússia e da China no mundo atual.

Talvez a história venha a apontar que o posicionamento do democrata terá sido um erro político, em se considerando o peso militar da Rússia e a força econômica, e cada vez mais militar, da China. Quando unidos, os dois países são competidores bem mais indigestos do que se seriam isoladamente.

Nos anos de Guerra Fria, um dos maiores temores dos governos americanos era a eventual aliança entre a República Federal da Alemanha e a União Soviética. As relações entre ambas ganhou qualidade com a Ostpolitik, do primeiro-ministro alemão, Willy Brandt, mantendo-se, desde então, em bom patamar no nível econômico e político. Mas a garantia de segurança negociada pelos Estados Unidos, em troca de alinhamento comercial e ideológico da Alemanha, foi um dos fatores que tornou impossível qualquer aliança estratégica russo-germana, ainda que não tenha impedido as boas relações comerciais na área de defesa.

Esse não é o caso da China, que não depende de proteção militar dos Estados Unidos e que se choca frontalmente com os interesses e a posição geopolítica dos americanos no Pacífico, no Índico e em outras regiões.

Mas, se por um lado, o governo chinês não precisa da segurança americana, por outro, tampouco está preparado para enfrentar o rival em termos militares. Daí a necessidade de estreitar os laços estratégicos com Moscou, que tem situação parelha com o Pentágono no que diz respeito ao poderio nuclear. Sem contar que o apoio da Rússia facilita a iniciativa chinesa “Um Cinturão, uma Estrada”, que expande o mercado euro-asiático para produtos chineses”.

A Rússia é o principal fornecedor de equipamento militar para o governo chinês. Em 2014, a China comprou o sistema de defesa aérea russo, S-400, e mais de vinte caças russos Su-35, considerado o que existe de mais avançado em tecnologia militar russa para aviões de combate.

Com os equipamentos adquiridos da Rússia, a China reduz a capacidade de os Estados Unidos cumprirem os acordos de defesa com aliados na Ásia. Sob esse aspecto, a que ponto não haverá na aproximação dos Estados Unidos com a Coreia do Norte o reconhecimento tácito de que o equilíbrio de forças na Ásia mudou e de que o Pentágono não mais possui a autonomia necessária para garantir a segurança regional?

A Coreia do Norte não é o único impasse envolvendo Washington e Pequim. Também há a situação inflamável no Mar do Sul da China, que contrapõe alguns aliados dos Estados Unidos à expansão territorial chinesa.

Em termos mais específicos, o recado do ministro da Defesa chinês em Moscou se direciona à decisão do governo Trump de revisar a política nuclear dos Estados Unidos em 2018.

Comendo poeira em tecnologia militar

Embora mantendo-se no New Start, tratado para redução de armas assinado com a Rússia em 2010, a Casa Branca decidiu desenvolver novas bombas nucleares daqui por diante.

O objetivo, segundo a Revisão da Posição Nuclear, é corrigir a percepção errônea da Rússia de que os Estados Unidos estejam em desvantagem nuclear. Mas se os russos estão errados, por que é preciso desenvolver bombas mais modernas para convencê-los do contrário?

Apoiadores de Trump dizem que a revisão da política nuclear nada mais é do que a resposta à modernização militar por parte de China e Rússia. Na semana passada, o almirante Philip Davidson, chefe de Operações Navais  dos Estados Unidos, testemunhou diante do Congresso sobre o perigo chinês. Segundo o almirante, a Marinha chinesa já domina o Mar do Sul da China, rota de comércio internacional, zona rica em minerais e motivo de disputa soberana em cortes internacionais.

Davidson, nomeado recentemente para assumir o Comando do Pacífico, foi mais longe. O impasse militar com a China justificaria a saída dos Estados Unidos do INF, tratado assinado com a Rússia, em 1987, para limitar os mísseis mútuos de curto e médio alcance.  O argumento do almirante passa pelo fato de a China não ser signatária do tratado. Segundo o militar, hoje, os Estados Unidos não conseguem se defender das novas armas hipersônicas chinesas.

Menos ainda das armas russas e chinesas ao mesmo tempo. Em entrevista recente, o chefe do Comando Estratégico dos Estados Unidos, general John Hytes, comentou que os Estados Unidos mantêm a dianteira tecnológica para mísseis hipersônicos. Mas o diferencial da Rússia e da China, segundo o general, foi realizar os “testes integrados completos destes recursos”.

Os Estados Unidos continuam sendo a maior potência militar do mundo e, somados, os gastos chineses e russos não chegam à metade do orçamento de defesa americano. Mesmo assim, a superioridade russa em mísseis e sistema de defesa nuclear é admitida até por especialistas militares americanos. Scott Ritter, ex-fuzileiro naval, que trabalhou nas negociações para o tratado de redução de armas com a União Soviética, considera os russos à frente da corrida armamentista.

Nesse contexto de competição entre potências, o reconhecimento público pela China sobre a parceria militar com a Rússia causa um efeito perturbador na estratégia global americana e na política mundial de poder.

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