Não, Putin não está blefando sobre armas nucleares

por Scott Ritter
Artigo traduzido do The American Conservative*

Trump diz que ninguém quer uma corrida armamentista, mas os russos já estão na frente

No início do mês, em discurso para o Parlamento russo sobre o Estado da Nação, o presidente Vladimir Putin revelou várias novas armas estratégicas desenvolvidas para anular qualquer escudo antimíssil que os Estados Unidos tenham implantado, estejam implantando ou tentarão implantar nos próximos 10 anos a 15 anos.

Putin disse que as novas armas russas se tornaram necessárias com a decisão unilateral do ex-presidente George W. Bush de sair do Tratado de Mísseis Antibalísticos de 1972, iniciando, com isso, um processo que levou à instalação de defesas de mísseis balísticos em território norte-americano, na Europa e na Ásia. Ele anunciou que “o crescente poder militar da Rússia é uma garantia sólida da paz global, pois preserva, e preservará, a paridade estratégica e o equilíbrio de forças no mundo, que, como se sabe, foi, e continua sendo, um fator chave da segurança internacional depois da Segunda Guerra Mundial até os dias de hoje.

Putin, que acabou de ganhar a reeleição na Rússia, garantindo outro mandato de seis anos, continuou:

“Aqueles que nos últimos 15 anos tentaram acelerar uma corrida armamentista e procuraram vantagem unilateral contra a Rússia introduziram restrições e sanções ilegais do ponto de vista do direito internacional, com o objetivo de restringir o desenvolvimento de nossa nação, inclusive na área militar. Vou dizer uma coisa: tudo o que vocês tentaram evitar com tal política aconteceu. Ninguém conseguiu conter a Rússia. Temos que admitir essa realidade e entender que tudo o que eu disse hoje não é um blefe – e acreditem, não é um blefe -, pensar nisso e desconsiderar aqueles que vivem no passado e são incapazes de olhar para o futuro”.

Depois do discurso de Putin, o mundo ficou imaginando o que fazer com suas declarações presunçosas.

Em comentários que se referiam diretamente ao discurso de Putin, o presidente Trump falou sobre os perigos de uma corrida armamentista, para depois se gabar, dizendo que os Estados Unidos “estavam gastando US$ 700 bilhões por ano” a fim de garantir que continuem sendo “de longe, mais fortes do que qualquer outra nação no mundo”.

Quer dizer, então, que a investida de Putin nas jogadas de superpotência pós-Guerra Fria foi só um blefe? Certamente, o The New York Times achou que sim. Um artigo de primeira página escrito em coautoria por dois dos proeminentes correspondentes de segurança nacional da Gray Lady*, Neil MacFarquhar e David Sanger, enfatizou o que eles chamaram de “teoria do blefe”, citando a opinião de especialistas sobre o discurso de Putin. Um desses analistas “independentes”, Alexander Golts (notável por seu discurso anti-Putin), comentou que Putin descreveu uma geração totalmente nova de armas. “Mas será que isso é verdade?”, pergunta Golts.

Garimpando nas mídias sociais, MacFarquhar e Sanger selecionaram um comentário no Facebook de outro especialista, Douglas Barrie, pesquisador sênior do setor aeroespacial militar do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, em Londres, cuja análise das capacidades militares russas é carregada de ceticismo. Barrie disse que as armas descritas por Putin “poderiam alterar o equilíbrio de poder”. Entretanto, MacFarquhar e Sanger destacaram que Barrie questionou se a Rússia estaria mesmo perto de implantar tais sistemas: “A realidade é a de que existe um item no orçamento especificando desenvolvimento de propulsão nuclear para míssil? Ou significa que teremos um pronto para usar em breve? Eu, com certeza, quero ver mais evidências para acreditar nisso”.

O desdém dos incrédulos citados no The New York Times foi parecido com o dos conselheiros mais experientes do presidente Donald Trump em questões de defesa e segurança nacional, o secretário de Defesa, James Mattis, e o diretor da CIA, Mike Pompeo. Chamando os programas balísticos anunciados por Putin de “corrida armamentista com eles mesmos”, Mattis declarou que a Rússia “pode investir todo esse dinheiro”, que “isso não muda meu cálculo estratégico”. Pompeo disse na Fox News que “estamos acompanhando e rastreando tudo isso de perto”, e que “os americanos podem ter certeza de que temos um entendimento muito bom do programa russo e sobre como garantir que continuem a salvo das ameaças de Vladimir Putin ”.

A paralisia intelectual exibida por Mattis e Pompeo é perturbadora. Estes não são os chamados “especialistas” do The New York Times, arregimentados para promover a narrativa anti-Putin que se tornou a peça central da cobertura do Times ao longo dos anos, mas profissionais sérios que têm a segurança dos Estados Unidos nas mãos. Os pronunciamentos de Putin durante seu discurso sobre o Estado da Nação não eram uma articulação de fantasia momentânea, mas, como ele deixou bem claro, o subproduto de mais de uma década de foco em combater a ameaça imposta à segurança nacional da Rússia pelos programas de defesa de mísseis balísticos dos Estados Unidos. Não só a Rússia não disfarçou suas intenções a esse respeito, como fez tudo para que os Estados Unidos soubessem o que ela estava fazendo e o porquê. Em 2007, a Rússia vazou intencionalmente para a CIA os detalhes sobre o míssil pesado “Sarmat” RS-28, destacado no discurso de 2018 de Putin sobre o Estado da Nação, no esforço inútil de fazer com que os Estados Unidos se envolvessem seriamente em negociações para controle de armas.

O RS-28 é um descendente direto do míssil balístico R-36, mais conhecido por sua identificação na OTAN, SS-18 “Satã”, que nos seus quase 45 anos de existência tem sido um notório divisor de águas em termos do equilíbrio estratégico russo-americano. A grande capacidade de peso do R-36 (quase 9.072 quilos) permitiu o carregamento de uma única ogiva extremamente grande, de 20 megatons, ou de dez ogivas de 500 a 750 quilotons cada (para efeito de comparação, as bombas atômicas americanas usadas para destruir as cidades japonesas de Nagasaki e Hiroshima no final da Segunda Guerra Mundial tinham impacto de 21 e 15 quilotons, respectivamente). Quando o R-36 se tornou operacional, ele deu aos soviéticos a habilidade real de primeiro ataque, capaz de eliminar mais de 60% das instalações para controle de lançamento de mísseis e dos silos para mísseis americanos, mantendo a capacidade de lançamento de outras mil ogivas num segundo ataque, caso os Estados Unidos decidissem retaliar.

Desde o seu esboço, os Estados Unidos consideraram o R-36 a arma estratégica mais desestabilizadora do arsenal soviético, e eliminá-la ou limitá-la tornou-se o foco dos esforços norte-americanos para controle de armas. O Tratado START I reduziu o número de mísseis R-36, de 308 para 154, e todo o arsenal do R-36 estava programado para ser eliminado nos termos do  START II. Entretanto, a decisão dos Estados Unidos de sair do Tratado ABM, em 2002, teve como resposta a retirada da Rússia do START II e, consequentemente, a manutenção da frota de mísseis R-36. A Rússia havia planejado deixar o míssil R-36 caducar por obsolescência, sem plano de substituição; esse era o objetivo do seu posicionamento na negociação do START II.

Segundo a narrativa russa, a retirada unilateral dos Estados Unidos do Tratado ABM mudou esse cálculo, levando a Rússia a embarcar em um programa caro para prolongar a vida útil do R-36 a fim de mantê-lo operacionalmente viável até 2020. A Rússia, de acordo com Putin, esperava retomar as negociações sobre controle de armas com os Estados Unidos, mas a recusa por parte dos americanos de reduzir seus planos de defesa contra mísseis balísticos tornou esses esforços natimortos. Em 2004, a indústria de defesa russa começou a pesquisar novas tecnologias de mísseis balísticos que pudessem superar as defesas antimísseis americanas. Segundo Putin, essa decisão foi anunciada publicamente na esperança de que os Estados Unidos admitissem os perigos inerentes desse tipo de sistema e voltassem a se engajar para valer em controle de armas. Uma das novas tecnologias de mísseis que vinha sendo explorada era a continuação do velho R-36, conhecida como RS-28 “Sarmat”.

O RS-28 é muito mais do que a continuação do velho míssil R-36 – fundamentalmente, é uma arma inteiramente nova, como nunca vista pelos Estados Unidos. O “Sarmat” mantém sua impressionante capacidade de lançamento de peso, ao mesmo tempo em que teve seu próprio peso total reduzido em quase 50% com o uso de materiais compostos avançados na estrutura do míssil e de um novo tipo de sistema de propulsão de combustível líquido – o mecanismo de “detonação por pulso” PDY-99 -, que hiper-acelera o RS-28 em órbita, reduzindo o rastro infravermelho do lançamento, assim como o tempo hábil para que os satélites americanos de alerta antecipado detectem o disparo. O RS-28 foi projetado para ser armado com 10.750 quilotons de ogivas com capacidade de manobra para atingir alvos independentemente, cada uma delas podendo destruir um silo para ICBM ou uma unidade de controle de lançamento dos Estados Unidos, ou entre 16 e 24 novos veículos hipersônicos, cada uma carregada com uma arma nuclear de 150 quilotons e igualmente capaz de remover qualquer bunker nuclear em solo americano. Qualquer dessas configurações dá à Rússia meios para evitar a detecção do lançamento, desviar de todos os sistemas de defesa antimísseis e destruir a força nuclear dos mísseis balísticos intercontinentais (ICBM) terrestres dos Estados Unidos. Em suma, com a RS-28, a Rússia possui uma capacidade genuína de primeiro ataque que anula um terço da tríade nuclear dos Estados Unidos.

Ao contrário do comentário desdenhoso do secretário Mattis, o RS-28, na verdade, altera fundamentalmente o equilíbrio estratégico entre a Rússia e os Estados Unidos. Além disso, Mike Pompeo sabe muito bem que os russos não estão blefando. Tanto Mattis quanto Pompeo vinham trabalhando sob a falsa impressão de que a Rússia não podia bancar a sequência do míssil R-36, principalmente considerando que ele foi construído na Ucrânia durante a era soviética e que, por isso, essas capacidades tinham sido pedidas pela indústria de defesa russa. O RS-28, no entanto, é uma realidade – os russos simplesmente reconfiguraram sua própria capacidade de produção de mísseis domésticos e terão pelo menos 50 dos novos mísseis operacionais até 2020. É uma realidade que a liderança dos Estados Unidos precisa considerar em qualquer política futura em relação a Moscou.

 

Scott Ritter é ex-oficial de inteligência do Corpo de Fuzileiros Navais, que serviu na antiga União Soviética implementando tratados de controle de armas, no Golfo Pérsico, durante a Operação Tempestade no Deserto, e no Iraque, supervisionando o desarmamento de armas de destruição em massa. É autor de “Deal of the Century: How Iran Blocked the West’s Road to War”.

* Artigo originalmente publicado em 22/03/2018, em: http://www.theamericanconservative.com/articles/no-putin-isnt-bluffing-on-nukes/

** Nota da tradutora: apelido do The New York Times

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