Diplomacia militar dos EUA no Vietnã é para chinês ver

por Solange Reis

Pela primeira vez em mais de quarenta anos, um navio militar dos Estados Unidos ancorou num porto do Vietnã. O porta-aviões Carl Vinson chegou à cidade de Danang, no dia 4, com mais de 5 mil soldados a bordo. Outros mil militares desembarcaram de um cruzador e um destróier.

Em quatro dias de visita, os militares foram a orfanatos, conheceram um centro para vítimas do agente laranja – arma química usada pelos norte-americanos durante a guerra do Vietnã – e jogaram futebol e basquete com os vietnamitas.

A agenda social tenta popularizar a diplomacia militar iniciada pelo governo Obama, mas a quantidade de marinheiros e a pompa da frota levam a aproximação para o nível do espetáculo característico da atual Casa Branca.

Ainda que mire todo o Sudeste Asiático, a encenação tem na China o público final. O primeiro objetivo do governo norte-americano é sinalizar apoio ao Vietnã e aos demais países que disputam com os chineses a soberania sobre ilhas do Mar do Sul da China.

O segundo propósito é marcar território numa região de importância estratégica e comercial. O Mar do Sul da China é rico em petróleo e gás, e por lá passam US$ 5 trilhões em comércio anualmente.

Mais do que isso, se os Estados Unidos quiserem preservar a supremacia geopolítica no Pacífico Ocidental, terão que neutralizar a estratégia naval chinesa na área. Manter e expandir o sistema regional de alianças em defesa e segurança é vital para isso. É nesse ponto que o Vietnã, inimigo de outrora, se torna alvo da sedução diplomática.

Cabo de guerra entre China e Estados Unidos

Danang não foi escolhida aleatoriamente. Foi lá que chegaram as primeiras tropas terrestres norte-americanas em 1965 para travar uma guerra que se revelaria o maior fiasco militar dos Estados Unidos.

A interferência política e militar no Vietnã, no entanto, não começou naquele ano. Anos antes, quando a Indochina (o que hoje se entende por Vietnã e Camboja) lutava contra a colonização francesa, os Estados Unidos se colocaram ao lado da França e das elites vietnamitas que rejeitavam a independência.

Os franceses foram expulsos em 1954, após a derrota em Dien Bien Phu, mas os subsequentes Acordos de Geneva levaram à divisão do jovem país. Ao sul, um governo marionete apoiado pelos Estados Unidos; ao norte, o regime comunista do revolucionário Ho Chi Minh, ajudado, mas não coordenado pela China.

A Guerra do Vietnã – ou Guerra Americana, como a chamam os vietnamitas – terminou em 1975 como uma das mais sangrentas do século passado. Estimam-se 6 milhões de mortos entre combatentes e civis no Vietnã, Laos e Camboja.

Os Estados Unidos perderam 58.220 soldados, mas também a guerra. O fiasco da intervenção, que há muito já se sabia condenada, resultou na consolidação do comunismo no Vietnã em plena Guerra Fria.

Rompidos desde o fim da conflito, Hanoi e Washington só voltaram a interagir no governo de George H. Bush. Mas os maiores avanços aconteceram no governo Clinton, que incluiu o Vietnã no radar internacionalista de sua doutrina conhecida como “Engajamento e Expansão”.

Em 1995, um ano depois de suspenso o embargo comercial contra o Vietnã, os dois países reataram as relações diplomáticas. No ano de 2001, concluíram um acordo bilateral de comércio que reduziu as tarifas de 40%, em média, para 3%.

Apesar dos contatos comerciais, o Vietnã manteve a política militar “Three-Nos”: nenhuma aliança militar, nenhuma base estrangeira em seu território e nenhuma dependência de outros países para defesa.

Essa estratégia de segurança foi adotada em 1991, após a normalização das relações com a China. Os dois países se enfrentaram em diversos conflitos militares de 1979 a 1990 devido à invasão vietnamita ao Camboja em 1978, às relações do Vietnã com a União Soviética e às desavenças sobre minorias e fronteiras.

Em 2016, no escopo da estratégia do Pivô Asiático, o então presidente Barack Obama suspendeu o embargo de armas ao Vietnã. No ano passado, os dois países assinaram um acordo de cooperação em defesa.

Não resta dúvida de que, embora o Vietnã mantenha a autonomia militar, a recente aproximação com os Estados Unidos nesse campo se deve à percepção de ameaça diante da projeção da China. Em 2014, a instalação de uma plataforma de petróleo chinesa nas águas disputadas pelo Vietnã só fez aumentar a insegurança.

As rusgas com Pequim não significam que o Vietnã abrace o outro lado incondicionalmente. Há muita desconfiança no lado vietnamita, principalmente depois que Donald Trump retirou os Estados Unidos da Parceria Transpacífico (TPP).

Mesmo sendo a República Socialista do Vietnã, o país adotou um socialismo de mercado no padrão chinês e apostou forte na abertura regional. Depois de assinar vários acordos de livre comércio, a nação de 90 milhões de habitantes, foi chamada de o próximo tigre asiático pela The Economist.

Apesar de toda cooperação em defesa e inteligência entre Washington e Hanoi nos anos recentes, o governo vietnamita continua negando aos Estados Unidos a jóia da coroa: acesso regular à base naval de Cam Ranh Bay. Considerada a base de águas mais profundas no Sudeste Asiático, Cam Ranh foi muito usada pelos norte-americanos nos anos da guerra.

A relação do Vietnã com a China é de amor e ódio. Foram quase mil anos de dominação no passado distante e décadas de solidariedade no processo de emancipação vietnamita em relação ao Ocidente. Os laços culturais, religiosos e econômicos são fortes, mas o crescimento regional e global da China desafia muitos pilares dessa história mútua.

De 1945 em diante, o Vietnã tentou evitar ser um cabo de guerra, ora puxado pela China, ora pelos Estados Unidos.

Para quem esteve recentemente no Vietnã, que é caso desta autora, a percepção é a de que o ressentimento popular é muito mais voltado para a China do que para os Estados Unidos. Estes são os inimigos de outrora, cuja derrota é exposta país afora como um triunfo romanceado. Abundam as imagens e as referências a aviões abatidos, militares capturados e abusos cometidos pelos soldados norte-americanos.

Mas uma coisa é o sentimento público; outra bem diferente é a política externa de um governo para lá de pragmático e independente.

Prudência e “pho” – sopa base da dieta vietnamita – não fazem mal a ninguém. E nada indica que o Vietnã esteja pronto para arriscar a adensada relação com a China em troca da pretensa segurança oferecida pelos Estados Unidos.

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