Internacional

A ausência dos EUA do novo Acordo Pandêmico da OMS: entre riscos e oportunidades  

Logo da OMS (Fonte: Wikimedia Commons)

Por Henrique Menezes* [Informe OPEU] [Trump 2.0] [Pandemia] [Covid] [Saúde] [Multilateralismo] 

A pandemia da covid-19 expôs as fragilidades da governança global em saúde, potencializadas pelas ações unilaterais e egoístas de países ricos e empresas farmacêuticas. A crise generalizada e a insuficiência dos mecanismos institucionais existentes, assim como daqueles desenhados para enfrentar as desigualdades no combate à pandemia, catalisaram o impulso por um novo arcabouço normativo internacional para responder a futuras emergências sanitárias. 

Saiba mais sobre o assunto no artigo: BORGES, Luciana C; MENEZES, Henrique Z; CROSBIE, Eric. More pain, more gain! The delivery of COVID-19 vaccines and the pharmaceutical industry’s role in widening the access gap. International Journal of Health Policy and Management, v. 11, n. 12, p. 3101, 2022. 

Em 16 de abril de 2025, o Órgão de Negociação Intergovernamental (INB, na sigla em inglês), da Organização Mundial da Saúde (OMS), finalizou a proposta do Tratado Internacional sobre Prevenção, Preparação e Resposta a Pandemias, cujas negociações haviam sido iniciadas ainda em dezembro de 2021. O resultado é um feito histórico, em meio à fragmentação da política global e ao ressurgimento de práticas nacionalistas. O texto final será apresentado na 78ª Assembleia Mundial da Saúde, que ocorre entre 19 e 27 de maio de 2025. Se aprovado, marcará apenas a segunda vez em que a OMS adota um acordo vinculante com base no artigo 19 de sua Constituição — o primeiro e único, até então, é a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, de 2003. 

Paradoxalmente, esse avanço no campo da saúde global ocorre sem a participação dos Estados Unidos, que se retiraram das negociações com a volta de Donald Trump à Presidência, no início de 2025. Tal atitude sinaliza não apenas uma disposição ativa para enfraquecer as estruturas multilaterais de saúde e de resposta a pandemias, mas também reafirma uma estratégia de soberania sanitária. Embora a ausência dos EUA represente uma perda substancial em termos de capacidade produtiva e liderança financeira, ela também pode abrir espaço para o fortalecimento de um novo multilateralismo guiado mais fortemente por princípios de equidade e solidariedade, especialmente marcado por uma maior descentralização do poder entre seus participantes. 

O Acordo Pandêmico: ambição, limites e inovação normativa 

O Acordo Pandêmico da OMS nasce de uma conjuntura crítica em que a memória das desigualdades vividas durante a covid-19 — sobretudo, o acesso desigual a vacinas, diagnósticos e medicamentos — ainda está vívida. Estruturado em torno de um objetivo geral, conforme disposto no Artigo 2 (“prevenir, preparar e responder a pandemias”), pode-se dizer que o tratado incorpora dois objetivos estratégicos que orientam um conjunto de iniciativas e compromissos com impactos diretos sobre a governança sanitária. São eles: garantir acesso equitativo às tecnologias farmacêuticas mais relevantes para o enfrentamento de futuras pandemias; e fortalecer as capacidades nacionais e internacionais de prevenção e vigilância epidemiológica, com ênfase na abordagem Uma Só Saúde. 

Esses objetivos se desdobram em um conjunto de compromissos operacionais. O acordo propõe: (i) a construção de capacidades de pesquisa e desenvolvimento (P&D), de maneira geograficamente distribuída (art. 9.1); (ii) a facilitação da transferência de tecnologia e de conhecimentos relevantes para o desenvolvimento e a produção de vacinas, especialmente (art. 4.6); (iii) a criação de um sistema internacional de acesso a patógenos e repartição de benefícios (PABS, na sigla em inglês); além da (iv) constituição de uma rede global de cadeias de suprimento e logística. 

Apesar da ambição inicial, o texto final foi sendo enfraquecido ao longo das negociações, notadamente no que tange às obrigações de transferência de tecnologia e à diversificação geográfica da capacidade produtiva. Ainda assim, um dos pilares do novo sistema PABS foi mantido: a obrigação de alocação de 20% da produção em tempo real de vacinas, testes diagnósticos e medicamentos à OMS durante futuras pandemias (sendo 10% como doação), por parte de todos os fabricantes que desejarem participar do sistema. Essa cláusula representa um importante precedente jurídico e político, pois insere obrigações de acesso equitativo na arquitetura normativa da resposta, em contraste com os arranjos voluntários que marcaram a covid-19. 

A Ausência dos EUA: consequências imediatas e implicações sistêmicas 

A retirada dos Estados Unidos das negociações do acordo após a reeleição de Donald Trump representa um golpe considerável para o tratado, em termos de capacidade produtiva e de financiamento disponíveis, mas também de legitimidade política. Os EUA detêm um papel dominante na pesquisa biomédica global, além de abrigarem empresas líderes na produção de vacinas, medicamentos e outras tecnologias médicas relevantes. Além disso, a capacidade de mobilização do Estado, para o bem ou para o mal, ficou clara na primeira gestão Trump que, ao mesmo tempo que falseava a realidade, expondo trabalhadores ao risco de infecção, fomentou o mais amplo projeto de fomento ao desenvolvimento de imunizantes da história, a Operação Warp Speed. 

Corrida de Trump por vacina coloca Operation Warp Speed entre FDA, investidores e opinião pública

Entenda o que foi a Operação Warp Speed neste Panorama EUA de Edna Aparecida da Silva

Sem o envolvimento norte-americano, o sistema PABS — que depende da adesão dos principais produtores para alcançar sua eficácia plena — perde potência. Fabricantes estadunidenses, protegidos por um Estado que privilegia a soberania em detrimento da cooperação, poderão atuar fora das obrigações de doação e repartição de benefícios. Isso pode reduzir o estoque global disponível em emergências e comprometer a equidade de acesso que o tratado busca promover. 

No plano sistêmico, a decisão dos EUA de abandonar o processo de negociação representa mais do que um simples cálculo de política doméstica: ela sinaliza o aprofundamento de uma postura hostil à governança multilateral. A postura crítica e de oposição à OMS já havia marcado a primeira gestão Trump, sendo reacendida agora, justamente em um processo crítico para o planejamento de respostas coletivas a pandemias. 

Contudo, ao tentar minar a autoridade normativa da OMS, os EUA podem estar gerando um efeito colateral não intencional: a catalisação de um novo ciclo de mobilização em torno do multilateralismo, especialmente entre países do Sul Global e outros atores dispostos a assumir protagonismo na governança da saúde. 

Multilateralismo sem os EUA: uma oportunidade emergente? 

A ausência dos Estados Unidos no novo acordo da OMS significa, ao mesmo tempo, um enfraquecimento imediato da capacidade normativa e produtiva do tratado e uma oportunidade para a renovação do multilateralismo sanitário. A liderança global em saúde não precisa, necessariamente, estar concentrada em um único ator hegemônico. Pelo contrário, o distanciamento dos EUA pode abrir espaço para coalizões mais fortes em torno da proposta de equidade e justiça sanitária. 

Países do Sul Global, especialmente Índia, África do Sul, China e Brasil, têm demonstrado capacidade de articulação em defesa da regionalização da produção de vacinas e do acesso equitativo a tecnologias de saúde. Além do papel fundamental de desenvolvedores, produtores e fornecedores de vacinas durante períodos críticos, China e Índia têm-se destacado em proposições relevantes para a governança da saúde global. Os governos da Índia e da África do Sul lideraram a proposta de suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual sobre tecnologias farmacêuticas essenciais ao enfrentamento da Covid-19. A África do Sul, em parceria com a OMS, inovou com a criação do mRNA Hub, em 2021. Esse consórcio tem o propósito de capacitar países em desenvolvimento para produzirem vacinas baseadas em tecnologia de RNA mensageiro de forma autônoma, promovendo transferência de conhecimento e reduzindo a dependência de grandes farmacêuticas. Na Presidência brasileira do G20, em 2024, foi proposta e aprovada a Aliança Global para Produção Local de Insumos e Inovação, que pretende contribuir ativamente para a diversificação geográfica da capacidade de produção de insumos, medicamentos e vacinas. 

Reunião do G20 no dia 10 de abril de 2024(Arquivo) Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e OMS apoiaram proposta do Brasil de criar uma aliança para a produção e inovação local e regional em saúde, a ser liderada pelo G20, durante evento em Brasília, em 10 abr. 2024 (Crédito: OPAS/Karina Zambrana)

Apesar de tudo, essa oportunidade traz consigo desafios significativos. A fragmentação institucional — com regimes concorrentes em saúde, comércio e propriedade intelectual — pode comprometer a coerência da implementação do novo acordo. O caráter pouco impositivo do texto também coloca em risco o cumprimento dos compromissos assumidos. A eficácia do acordo dependerá, portanto, da construção de uma governança multilateral robusta, capaz de alinhar interesses diversos e garantir o cumprimento de obrigações. 

A conclusão das negociações do Acordo Pandêmico da OMS constitui um marco na história da governança sanitária global. Embora tenha perdido parte de sua ambição original, especialmente nas áreas de transferência de tecnologia e descentralização da inovação, o tratado preserva disposições importantes que podem, se implementadas, transformar a resposta internacional a futuras pandemias. 

Longe de ser apenas um obstáculo, a ausência dos EUA pode se converter em catalisador de um novo ciclo e rearranjo geopolítico no campo da saúde. Ao se colocar à margem do esforço coletivo, Washington corre o risco de enfraquecer sua influência normativa e diplomática em um campo de importância crescente.

 

Leia mais do autor no OPEU 

Informe OPEU “Tempo instável para Boeing: China pode cancelar pedidos em reação a tarifaço de Trump”, 16 abr. 2025 

Informe OPEU “O raio cai duas vezes no mesmo lugar: a indicação de RFK Jr. para Saúde no governo Trump 2.0”, 18 nov. 2024  

Informe OPEU “Retorno norte-americano à OMS traz otimismo e algumas dúvidas”, 3 mar. 2021  

Informe OPEU “Menos profissionais, mais subordinação: Pompeo cobra explicações da OPAS sobre ‘Mais Médicos’”, com Daniela Prandi, em 13 jun. 2020  

Panorama EUA “Trump e a pandemia de covid-19: nacionalismo, evasão e ameaças ao multilateralismo”, 31 de maio de 2020  

 

* Henrique Zeferino de Menezes é pesquisador do INCT-INEU e professor do Departamento de Relações Internacionais e do Programa de Pós-graduação em Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Contato: hzmenezes@ccsa.ufpb.br. 

** Revisão e edição: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 13 de maio de 2025. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU. 

*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mailtatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mailtcarlotti@gmail.com. 

 

Assine nossa Newsletter e receba o conteúdo do OPEU por e-mail.

Siga o OPEU no InstagramX/TwitterLinkedin e Facebook 

e acompanhe nossas postagens diárias. 

Comente, compartilhe, envie sugestões, faça parte da nossa comunidade. 

Somos um observatório de pesquisa sobre os EUA, 

com conteúdo semanal e gratuito, sem fins lucrativos.

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais